― Senhores passageiros, favor retornar a seus assentos. Daremos início ao nosso processo de aterrissagem dentro de alguns minutos.

A voz do comandante ressoava pelo avião causando certa agitação nos passageiros. Um som breve de sirene começa a tocar e o aviso dos cintos acende. O processo de descida é iniciado e outro som de sirene indica que o comandante havia desligado o piloto automático.

A cinco quilômetros da cabeceira da pista o trem de pouso é abaixado e os flaps acionados a trinta graus, ajudando o avião a planar.

Pelas janelas da aeronave as águas da baía de Guanabara já são visíveis e passam rapidamente, anunciando a iminente chegada da pista. O avião por fim toca o chão com suavidade.

― Bem-vindos ao Rio de Janeiro. Por medidas de segurança queiram permanecer sentados com os cintos afivelados até que os sinais luminosos se apaguem. É proibido utilizar o telefone celular até sua chegada ao saguão do aeroporto. Obrigado por voarem com a BRASFLY. Tenham todos um excelente fim de semana. ― finalizou o comandante William, já taxiando para o terminal.

Ao encostar o avião na posição final, liga imediatamente o telefone, indo contra o que havia acabado de dizer aos passageiros. Após alguns segundos, infinitas notificações começam a chegar.

A uns três quilômetros dali as setinhas que antes estavam cinza ficaram azuis no aplicativo do telefone de Victoria, sua esposa.

O escritório da presidente da BRASFLY tinha uma vista estupenda da pista do aeroporto Santos Dumont graças a três janelões de vidro. Sentada em sua confortável cadeira de couro, ela aguardava o café que havia pedido à sua secretária.

Victoria se sentava de costas para os janelões e a exuberante vista recusando-se a admirá-la dia após dia. Era verdade que sempre tinha uma infinidade de coisas a resolver como presidente de uma das maiores empresas aéreas do mundo. Não via a hora de a bebida chegar. O líquido quente e forte era tudo que ela precisava naquela manhã de Sexta-feira.

Um perfume de flores cítricas de repente invade a sala. Uma figura morena de cabelos lisos longos, alta, extremamente asseada e elegante num conjunto branco executivo entra na sala. Era Vanessa trazendo a bebida e a depositando sobre a mesa da chefe vindo depois a se sentar diante dela.

Victoria alcança a pequena colher que veio acompanhada com a bebida e mexe no café mostrando falsa calmaria.

― Ele acabou de aterrissar. ― informa Vanessa.

Victoria a olha nos olhos e tenta disfarçar sua surpresa ao ver que a assistente tinha mudado o corte de cabelo. Desvia o olhar desconcertado e respira fundo.

― Você conseguiu o que te pedi?

― Entrei em contato com uma empresa especializada no que você quer investigar. Eles mantêm tudo anônimo. Você não precisará recebê-los. ― afirmou Vanessa com seriedade no olhar.

Victoria ponderou por uns segundos, tomando um gole do café. Sentindo o líquido quente descer por suas entranhas, se virou para a mesa ao lado, abriu uma gaveta e retirou um envelope escuro. Por debaixo da mesa sacolejava as pernas cruzadas, inquieta.

― Apresente este material ao investigador. Faça questão de ler antes de apresentar a ele. Posso confiar em você?

― É claro, Vic. ― respondeu Vanessa, se perguntando por dentro se Victoria realmente confiava nela. ― Acho que sei do que se trata. ― Arriscou a assistente. ― William não é tão discreto.

Victoria ergueu uma das sobrancelhas. A assistente tinha razão. Mas o que Victoria não tinha ideia era de como reagir se o detetive conseguisse informações que comprovassem a traição. Ela não estava pronta para encarar as consequências que a verdade traria consigo.

― Temos de resolver logo, é tudo que mais quero. ― desabafou a presidente, quase gaguejando. Retirou os olhos de Vanessa e recostou-se na cadeira, direcionando o olhar para uma imponente estante no canto da sala, repleta de prêmios e condecorações. Tinha o olhar perdido. Ela não suportaria a verdade.

― Vou tentar fazer isso o quanto antes possível. ― A assistente escaneava a agenda com os olhos por debaixo das lentes.

― Você é muito eficiente, obrigada. E desculpe não ter reparado antes, seu corte de cabelo ficou lindo. Realçou mais o seu sorriso. ― mente Victoria. Na verdade, ela havia percebido a mudança em Vanessa desde o momento que a morena havia entrado na sala.

Vanessa corou levemente com o elogio e deu a entender por sua linguagem corporal que iria se levantar. Sua chefe lhe dedicava um sorriso aberto e suave que logo se desfez quando reprimiu aquele sentimento. A assistente sentiu-se aquecer por dentro com o olhar que recebeu, mesmo por míseros segundos até que a porta se abriu bruscamente.

― Será que você não sabe bater na porta antes de entrar? ― rugiu Victoria após o susto. Vanessa se pôs de pé num pulo e saiu da sala discretamente.

― Bom dia para você também, minha vida.

― Vida? ― retrucou ela.

― Você gasta muito tempo neste escritório. Por isso está estressada. Sabe que não precisa trabalhar. Temos dinheiro suficiente para manter nossa família.

Victoria o olhava sem reação. Todas as palavras ditas por ele eram rejeitadas em seus pensamentos.

― O que você quer? Que eu viva apenas para você, nossa filha e para as coisas fúteis da vida, academia, shopping, roupas? Eu estudei, William! E tenho uma carreira e desafios pela frente.

À medida que ia falando, o marido largava sua pequena mala em qualquer canto e afrouxava a gravata que o incomodava. Por fim se sentou a frente da mesa da mulher, cruzando as pernas.

O casamento de William e Victoria já não era o mesmo há eras. A empolgação dos primeiros anos de relacionamento havia desaparecido completamente e embora convivessem bem. Victoria se via perdendo cada vez mais a admiração e confiança por ele. Os dois se destacavam bem profissionalmente, todavia seguiam se distanciando cada vez mais. Era óbvio que iam em direções diferentes.

William tinha uma figura alta e bastante atrativa. Victoria pedia que ele pintasse os cabelos grisalhos, mas ele se negava. Sinais de calvície já eram percebidas. Os fios brancos davam um charme especial. Os olhos verdes profundos e o queixo bastante expressivo contribuíam para chamar atenção de qualquer mulher que passasse por ele.

― Já sabe a novidade? ― perguntou William cortando o silencio. A mulher estava absorta em seu computador respondendo a um e-mail.

― Oi? ― continuou ele almejando atenção.

― Só um minuto, Will. ― Os dedos cândidos e delicados dançavam sobre as teclas do teclado com maestria.

― Aquela sapatão… Martina Ferret? Lembra desse nome?

― Muito engraçado, Will! – exclamou ela sem arrancar os olhos da tela.

― Quem diria? A sua mais nova vizinha de sala!

Desta vez ele havia conseguido chamar a atenção da mulher mais absorta de todo Rio de Janeiro. Ela congelou. Amorteceu os dedos no teclado e o olhou atônita, pálida por alguns intermináveis segundos.

O tempo parou.

Como tinham contratado Martina Ferret sem seu consentimento e aprovação?

― Como soube que ela foi contratada? ― balbuciou Victoria.

― Você mesma assinou os documentos numa reunião com o RH no semestre passado.

― Não me lembro de ter lido o nome dela na lista. ― Victoria ponderou, transportando seus pensamentos para aquele dia no qual assinara vários papéis com Maximiano, o diretor de recursos humanos. Rebuscava na memória, mas não conseguia se lembrar.

― Só cuidado para ela não te agarrar aí pelo corredor a fora. Mas acho que ela mudou. ― William olhava para ela com certo ciúme.

― Mudou como?

― Parece que mudou de time ou joga nos dois. Ela teve um filho, eu acho. Não sei ao certo. Você sabe que ela se destacou no mundo da aviação? Olha só esse vídeo.

Ele abriu o iPhone num aplicativo de vídeos e estendeu o aparelho para que ela olhasse. Ela hesitou, com medo de como iria reagir. Pegou o celular, enrijeceu os ombros, apoiando os cotovelos na mesa e começou a assistir. Era uma entrevista de algum jornal famoso onde Martina falava sobre inovações no mercado da aviação.

Sua figura ruiva permanecia a mesma, o rosto delicado, o nariz levemente arrebitado. Só que os cabelos, que antes eram mais curtos, se revelavam longos e ondulados, recaindo sobre sua frente. Seu corpo continuava magro. Algo em sua magreza parecia extremamente atrativo.

Victoria sorriu ao pensamento de se sentir curiosa por estar conhecendo a visão desta “nova” Martina com relação ao mercado global da aviação. Acabou por se acostumar com aquele sentimento que suavizava sua expressão facial. Estava de boca aberta com tamanha inteligência e expertise de sua ex-amiga de faculdade. Ela realmente havia se tornado uma grande referência na indústria e uma grande mulher. A presidente sentiu querer verbalizar sua admiração, no entanto, se conteve.

― Olha. Que legal! ― fingiu ânimo. Ela não acreditou que depois de tanto tempo se pegou a admirando. O tempo parecia não ter passado. Quando o vídeo terminou sentiu que poderia continuar assistindo a ruiva falar por horas.

― Vai mostrar essa mesma empolgação quando a reencontrar hoje à tarde na reunião da diretoria? ― frisando o “reencontrar”, ele gesticulou as aspas com os dedos das mãos.

― Pelo visto você está mais a par da minha agenda do que eu. E não. Ela não me interessa dessa forma. Você sabe que sou hetero.

As palavras de Victoria soaram o máximo que podiam fingir.

― Só achei que seria interessante você saber disso antes de ter um ataque do coração ao vê-la. Pode me agradecer se quiser. ― acrescentou ele já de pé.

Ele estava certo.

― Está tão evidente assim?

William dedicava um sorriso falso na face e levantava e abaixava a cabeça.

― Ela era minha melhor amiga, Will. É complicado… Não quero que ela ache que tudo vai ser como era antes.

Trabalhar no mesmo lugar que Martina seria uma aventura e tanta. Victoria já estava atolada de emoções e contratempos. Agora teria de lidar com uma pessoa de seu passado que havia deixado marcas e traumas.

Os dois partiram para o almoço após Victoria responder mais alguns e-mails e ligações. Ela já havia repassado todo o material da reunião da tarde com Vanessa, mas agora não estava tão empolgada com a reunião após saber que Martina estaria lá.

O restaurante que escolheram ficava a poucas quadras do prédio e mesmo assim foram de carro. O lugar se chamava Cozinha Sucinta e tinha um cardápio simples, porém bastante refinado. Os pedidos eram feitos através de tablets que ficavam apoiados em hastes nas mesas e balcões. Ao fazer o pedido o garçom aparecia para tirar as dúvidas do menu e confirmar o pedido.

― Então… ― Victoria repousou o garfo no prato silenciosamente. ― O que pretende fazer nesse tempo que eu e Lucy vamos tirar férias e passar a virada do ano fora. Alguma programação?

― Bom, não vai ser muito diferente, Vic. Eu gostaria que a gente passasse mais tempo juntos, sabe? Como família… Acho que irei passar a virada com meus irmãos no Sul.

Victoria sentiu mentira no olhar dele. Os nervos dela estavam no limite. Não era de hoje que se afligia com isso. Se William fosse virar o ano no Sul com seus irmãos, as passagens já deveriam estar reservadas, e até onde ela sabia, não estavam.

― Também gostaria que passássemos mais tempo juntos, Will. ― amenizou ela.

― Está tudo bem? ― William percebeu o estado da mulher.

― Isso me aflige. Não sei como dizer. ― Deu uma breve pausa, passando a buscar as palavras corretas.

― Eu sou sincero com você todo tempo. Se há algo errado, me diga…

Ele havia pousado as duas mãos sobre a mesa. Fazia cara de descrente.

― Você está “vendo” alguém, Vic? ― A ficha dele começava a cair, só que para o lado errado.

― Eu? Como ousa? Se eu estivesse me envolvendo com alguém eu não estaria com você.

― Ah, sim, porque você sempre está certa e faz tudo certo.

― Nem vemos a Lucy direito. Eu quase nunca fico em casa. É complicado. As circunstâncias não contribuem.

― Não coloque a Lucy no meio dessa confusão.

Tudo o que Victoria queria era um ano “novo”, de mudanças e melhorias em sua vida. Não estava feliz e satisfeita. Nem raciocinar bem conseguia. Ela se culpava pelos problemas que tinha. Talvez William estivesse certo o tempo todo. Talvez se ela ficasse em casa cuidando dos dois a situação estaria melhor.

Tentou limpar sua mente e pensar no futuro. Ela estava uma pilha de nervos, mas deveria estar inteira para a reunião da tarde. Resolveu deixar a discussão para depois. Queria passar para os diretores a motivação correta para o ano novo, repaginar a empresa, alcançar novos desafios. Ela não queria estar cabisbaixa ou fingir falsa empolgação na reunião da tarde.

O iPhone de Victoria vibra sobre a mesa chamando sua atenção. Era uma mensagem de Vanessa.

O detetive analisou o material e acompanhará o William nestes dias que ele terá de folga. (Vanessa)

“Está acontecendo”, Victoria pensou. Ela não se sentia mal por aquilo. Ela queria sinceridade do marido, mas como não obteve diretamente dele, tinha de saber por seus próprios meios.

― Ano novo. Novas contratações. Novos diretores. Eu queria participar da reunião. Mas… sou um simples piloto de avião.

Com o ambiente mais leve, Victoria deixa seu pensamento dispersar e engata uma conversa animada com ele sobre as novas metas da BRASFLY, novas rotas de voo e prêmios que queria conquistar. Ela ofereceu a ele uma cadeira no como ouvinte na reunião, mas ele recusou.

― Eu vou começar minha folga esta tarde, Vic. Estou trabalhando sem parar ha duas semanas. Mas me mantenha atualizado sobre as mudanças. Mande lembranças a Ferret.

Ferret. Há quanto tempo não ouvia chamá-la por esse nome. Martina odiava ser chamada assim.

― Devo partir em cinco minutos. Você quer carona para o prédio?

Ele já estava em sua quarta taça de vinho e não parecia querer partir.

― Não, obrigada. Daqui uns minutos vou para casa.

Ela sai, deixando o marido à vontade, a ser observado já pelo detetive que estava com o carro estacionado do outro lado da rua.



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