A Ilha - Livro 1

19. A Ilha

Locker: armário.

Cockpit: cabine onde ficam piloto e co-piloto durante o voo.

Landing: descida e pouso do avião.

Take off: subida do avião (decolagem).

*

Quando Martina entrou na aeronave, Victoria estava se trocando num dos toaletes da parte de trás do luxuoso avião e quando saiu do toalete estava ao telefone. Vestia uma espécie de moleton de ginástica preto e um tênis confortável.

Bombardier era separado em dois ambientes: um traseiro, onde havia uma poltrona que virava cama, um toalete com ducha e um espaço de estar com TV; e um ambiente frontal, onde Martina se encontrava, com duas poltronas uma ao lado da outra e na outra extremidade um sofá com mesas reclináveis e outras amenidades, como lockers e um mini bar.

Duas tripulantes loiras zanzavam para lá e para cá enquanto Martina se acomodava até que uma delas veio buscar seu casaco para colocá-lo no locker. Martina agradeceu a tripulante e sentou-se ao lado da saída de emergência. Ela presumiu que Victoria ficaria na parte mais recôndita da aeronave.

A porta do cockpit ainda estava aberta e dali dava para enxergar boa parte dos trabalhos iniciais do voo. Uma coisa que poucos, quase ninguém sabia: Martina era piloto de avião. Preferia que ninguém soubesse e isso a ajudava em seu trabalho. Era bem mais fácil saber se um piloto estava mentindo para ela ou tentando enganá-la se ela escondesse que também era piloto. Isso a fez que se destacasse ainda mais em sua carreira.

Sentou-se na poltrona esquerda e pediu uma taça de vinho branco a uma das loiras, que trouxe de imediato. Tocava no fundo, bem baixinho, uma ópera instrumental que parecia ser uma interpretação de Bach. A divisória que separava os dois ambientes do avião foi fechada por uma das loiras.

― A Sra. Weber pediu para avisar que não se sente muito bem e que estará recostada na suite traseira. Pede que fique à vontade.

Martina lembrou do episódio no restaurante onde a chefe havia desmaiado e perguntou-se se ela havia de fato procurado um médico.

― Obrigada. ― respondeu Martina educadamente recebendo da loira o cardápio da ceia. Havia opções interessantes, mas assumiu que comera demais na virada então ficaria apenas com o vinho.

Após alguns minutos o avião começa a taxiar entrando numa extensa fila de aeronaves de diferentes tamanhos e destinos. A pista estava bem movimentada naquela hora devido aos voos intercontinentais, aqueles cujo objetivo é chegar a seus destinos no amanhecer do dia europeu.

O comandante iniciou as comunicações com as passageiras dando detalhes técnicos sobre a viagem, mostrando claramente que sabia quem estava transportando, o que arrancou um sorriso dos lábios de Martina.

A ruiva recolhe a taça a um suporte seguro e se prepara para o take off.

O avião então teve sua vez na fila e acelerou. Quando chegou a 240 quilômetros por hora subiu suave e as luzes da cidade logo começaram a aparecer passando rapidamente e cada vez mais distantes.

O avião deu uma guinada para a esquerda e seguiu caminho subindo mais e entrando nas nuvens, passando por um trecho bastante turbulento, mas nada fora do normal. Após 5 minutos um aviso sonoro soou e as tripulantes se levantaram e começaram e servir a ceia que Victoria provavelmente havia solicitado e conforme padrão ofereceram um cobertor e travesseiros para que Martina pernoitasse de forma aconchegante.

Victoria recostou-se na cabine traseira, não pretendia dormir, tampouco sentia-se mal. A verdade era que não queria ver Martina. A ruiva escolheu a companhia de Mark e não a dela. Poderia estar curiosa para saber o que aconteceu entre os dois na virada, mas aquilo havia a machucado. Sabia da tamanha infantilidade que era, mas decidiu assim.

Fora isso estava se sentindo mal por Vanessa. O momento que teve com a assistente fora incompreensivelmente bom e antiquado considerando a discrepância de expectativas entre as duas. Definitivamente odiava a ideia de tê-la usado para descobrir-se, encontrar-se e logo após fazê-la perder-se em seu amor. A fez pensar que, às vezes para descobrir-nos temos de machucar e prejudicar. A morena por fim escolheu um filme para assistir, após degustar a ceia, vindo a cochilar após.

Martina também resolveu recostar-se e relaxar um pouco, talvez até dormiria pois o dia seguinte seria um tanto aventuroso. Para ela a virada longe de Victoria significou colocar os pingos nos “i”s. Ela era sua empregada, não sua amiga. Ela não queria misturar as coisas, ainda mais com Vanessa na jogada. Poderia sim arriscar-se, mas teria de saber estar pisando em solo seguro.

Após algumas horas de voo tranquilo, Victoria acordou e resolveu ir até a cabine frontal ver como tudo estava. Se não fosse o barulho das duas turbinas poderia dizer que era um silêncio total.

Martina recostada na poltrona de forma despojada. Ela tinha uma feição tranquila, quase angelical. Sentou-se na poltrona da direita ao lado da ruiva, apertou o cinto e ficou a observa-la dali, séria, meditando no que sua vida poderia ter se tornado se tivesse largado tudo e tivesse criado sua filha com aquela mulher ao invés de com William.

Só posso estar louca de pensar nisso, pensou.

Alguns raios de sol já eram percebidos no horizonte quando Victoria por fim acabou cochilando ali, a admirar Martina.

*****

Como um tiro ensurdecedor no ar e um solavanco violento, Victoria abre os olhos sem ter noção do que realmente estava acontecendo. Um outro barulho seco, seguido de vários solavancos começam a acometer o avião e objetos começam a cair de todos os lados da aeronave.

As máscaras de oxigênio caindo dos suportes ocultos anunciavam que algo grave acontecia. Sua primeira reação foi olhar para Martina que fazia gestos para que ela colocasse logo a máscara e passasse a fita por detrás da cabeça.

Quando Victoria conseguiu fazer isso, Martina pega a outra máscara que caiu ao lado da de Victoria e agarrando-se ao suporte lateral, começa a olhar em volta, avaliando o que poderia estar acontecendo. O olhar da ruiva era um olhar nunca antes visto por Victoria.

As tripulantes nesta altura estavam apavoradas, sentadas em seus lugares e aguardando o pior. A porta do cockpit chegava a bater, tendo sido aberta pelos solavancos que o avião deu. Uma névoa começou a surgir na cabine e foi quando o avião começou a sua descida. Martina olha fundo nos olhos apreensivos de Victoria e aperta sua mão, em forma de apoio. O barulho era ensurdecedor e nada poderia ser dito naquela hora. Martina então resolve ir de encontro ao cockpit.

Andando até lá com certa dificuldade, consegue sentar-se numa poltrona atrás do copiloto e colocar os cintos. No cockpit havia no total de quatro poltronas, que eram usadas para voos de pesquisa e coletas metereológicas. Colocando o fone e microfone ela então começa a escutar a conversa do comandante e copiloto por alguns segundos e resolve intervir.

― Senhores! Desculpe, o que tivemos foi uma despressurização, certo?

― Sim, senhora.

Martina decidiu não interferir mais, pois poderia atrapalhar ao invés de ajudar. Ali ela já enxergava uma série de falhas. Em casos de despressurização, o protocolo era avisar a toda a aeronave segundos após o ocorrido, isso não foi feito. Mesmo com o barulho, daria para ser ouvido algo. Nem se quer o aviso dos cintos afivelados fora acionado.

Outra falha foi o desespero das tripulantes que se comportaram como se fossem morrer ao invés de se certificar que ela e Victoria estavam a utilizar as máscaras corretamente.

Outra possível falha que ela particularmente estava se coçando na poltrona para perguntar era a tal angulação que o piloto estava usando naquela descida. Isso de fato revelaria que ela tinha conhecimento, e MUITO em pilotar aviões. Se ele não acertasse a angulação correta, o avião demoraria muito a chegar a cerca de 3000 pés, a altitude correta para um avião voar sem estar pressurizado.

Nesse momento, Victoria entra no cockpit e senta da cadeira da esquerda para ouvir o diálogo. A CEO também entendeu o que ocorrera. Talvez a chegada dela fosse bastante oportuna, pois se Martina decidisse intervir não conseguiria fazer com que o comandante aumentasse a angulação sozinha.

Ela não conseguiu ficar quieta. Ela tinha de fazer o que era correto, ainda mais se tratando da segurança da presidente da empresa. Aproveitou uma pausa nos diálogos dos pilotos e perguntou:

― Desculpe, posso dar uma rápida sugestão?

― Senhora? ― Os dois pilotos se olharam descrentes. Quem era aquela mulher, afinal? O que ela entendia sobre o protocolo a ser seguido em caso de despressurização?

― Ajuste o ângulo… Abaixe mais 10 graus…

Martina olhou para Victoria na esperança de o piloto acatar sua orientação. O co-piloto folheou algumas páginas do que parecia ser um manual, um amontoado de papéis no grampo do joystick, e retornou ao comandante.

― Ela está certa. Pode aumentar. O espaço está livre.

O piloto colocou o avião numa angulação maior e prosseguiu com o protocolo no rádio procurando pelo aeródromo mais próximo. Até que Oporto respondeu. Estavam há uma hora de lá.

Ao chegar a 3.000 metros o barulho diminuiu e os pilotos avisaram que Oporto estava os aguardando.

As duas sentaram-se no cockpit e permaneceram. Martina já tinha em mente o relatório que iria fazer da completa incompetência daquele voo e Victoria sentia-se apreensiva, principalmente porque era muita coincidência elas terem problemas naquele voo, exatamente um dia após um dos voos intercontinentais ter sido perdido. Mais um acidente e a BRASFLY acabaria, fecharia as portas, pois ninguém confiaria mais na segurança dos seus voos.

Após quarenta minutos, o visual da pista já era visto de longe e a torre autorizou o landing. 400 metros fora, o copiloto libera as rodas do avião e nenhum barulho se escuta. Ele aperta novamente o botão e nada!

― Droga! As rodas estão presas. Teremos de arremeter!

Martina em nada podia ajudar. Parecia que o destino não estava a favor. O avião subiu novamente começou a dar voltas e mais voltas e várias tentativas de soltar as rodas foram feitas. Victoria olhava para Martina, que balançava a cabeça em negação.

Martina pensava se aqueles homens eram competentes para pousar o avião de barriga. Tal manobra não era para qualquer um. Demandava muito equilíbrio e agilidade, pois o que se espera é ralar no chão a parte debaixo do avião e não as turbinas. Para isso teria de equilibrar entre o vento o próprio peso do avião.

Fora a mobilização que esse evento causaria. Deveriam preparar a pista antes com um produto antichamas, ambulâncias, bombeiros… O aeroporto iria ter de parar para aquilo e iria com certeza estar na televisão e nos jornais: Presidente da BRASFLY é vítima de despressurização em voo e avião pousa de barriga em viagem a Londres para conversa com rainha. Em anos que isso não acontece em lugar nenhum do mundo. Da última vez o piloto ficou famoso e a empresa teve queda nas ações.

― Senhoras. Teremos que pousar sem as rodas. Peço retornem à cabine e fiquem em posição de colisão quando solicitarmos. Teremos de voar por mais 40 minutos para queimar combustível e deixar o avião mais leve.

Martina quase teve um treco quando ouviu isso, pois ela queria estar ali para ver como aquele piloto iria fazer a manobra. Quando se deu por conta Victoria estava a seu lado com a mão estendida, quase tirando-a da poltrona.

Droga! Eu nunca vou me perdoar se algo acontecer, pensou Martina.

E assim ela seguiu Victoria para a parte de trás da aeronave. 



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