― Eu não sei como não me atentei ao nome dela quando li e assinei os papéis de contratação, Max.

― Vic, você acabou de dizer que não a conhecia?

O diretor havia sentado em um puff vermelho e gigante do outro lado da mesa de centro no espaço de estar da sua sala.

― Não sei o que deu em mim. Eu reagi de forma estranha, eu sei. Estava esperando que ela se lembrasse de mim e quando presumi que não se lembrava então fiz aquilo para me vingar.

Uma das mãos dela estava nervosamente recostada do lado do rosto alisando sua têmpora direita. Os olhos cerrados eram prova de que estava confusa com o papel infantil que acabara de pregar.

― Por favor, Max, eu só preciso transferi-la, assim não perderemos o seu talento. Não quero desmerecer seu trabalho. Ela irá continuar conosco, só que não aqui no prédio. Podemos transferi-la para São Paulo, Brasília, alguma central nossa.

Parte da formação de Maximiano era em Psicologia e ele era o responsável pelo programa de aconselhamento da BRASFLY. Em quase cinco anos ele já havia aconselhado ou entrevistado praticamente todos no prédio menos Victoria e embora fossem amigos ele sabia que ela devia a ele uma boa conversa de cunho pessoal.

― Isso significa que ela não fará mais parte da diretoria, certo? ― perguntou o diretor. Sua expressão era neutra, como se quisesse ler o que havia por detrás das expressões da CEO.

― Sim… Mas ela pode ficar envolvida em projetos grandes na área de segurança, não precisa estar necessariamente aqui na sede.

Ele mantinha os braços cruzados defensivamente. Olhava para cima como se estivesse tentando encaixar as peças. Luminárias vermelhas ornamentavam a sala, pendendo do teto. Pousou o olhar sobre elas como se a resposta estivesse ali.

― Só uma pergunta, posso? ― Maximiano levantou as costas do puff. Sua calça social já era apertava e marcava ainda mais do jeito que estava inclinado agora para frente.

― Lá vem! Só uma.

― Por que esse repentino arrependimento, Vic? Você vai me contar o que aconteceu? Imagino mil e uma coisas e…

― E… Só para te lembrar, você já fez duas perguntas e está caminhando para a terceira!

― Vocês brigaram por causa de namorados ou algo assim? Talvez por causa de algum projeto.

― Digamos que foi uma briga feia. Algum dia eu te conto a história toda. É uma longa história.

― Sei que você é bastante discreta, mas sabe que pode se abrir comigo, não sabe? Já nos conhecemos há bastante tempo.

― Sim, eu sei. Mas se for para te contar tem que ser com tempo, Max.

― Resuma em uma frase, Vic. Assim eu já fico feliz!

― Bendito dia que você resolveu ser psicólogo, hein?

Ela se levantou chegando ao seu limite. A verdade era que se sentia completamente indecisa sobre Martina. Uma parte queria sentar com a ruiva e escutar dela como foi sua vida depois que as duas nunca mais se viram. Outra parte queria fugir para bem longe sem olhar para trás.

O diretor também acabou se levantando e indo em direção à mesa. Quando estava de costas a ponto de se virar e sentar, Victoria resolveu falar ligeiramente, sem encará-lo nos olhos.

― Nós tínhamos uma excelente relação e Martina era minha melhor amiga desde o começo da faculdade até que no começo do penúltimo ano eu conheci o William num congresso de aviação e daí para frente ela ficou estranha comigo. Quando pisquei os olhos estava grávida da Lucy, fui contar a Martina e…

Empacou como se sua voz não conseguisse mais sair. Sua mente se transportou até a última vez que tinha visto Martina, há dezenove anos. Seu estômago revirava com as lembranças. Pensou em como Maximiano iria reagir e chegou à conclusão que ele não se importaria, afinal, era gay. Tomou coragem e continuou. ― Ela disse que eu era o amor da vida dela. ― Victoria deu uma pausa com os olhos fechados, como se tivesse doído dizer aquilo. ―

― O que eu poderia fazer? Ela me assustou!

Há dezenove anos, naquela mesma manhã, Victoria havia descoberto que estava grávida e sua cabeça estava a mil. Ela tinha vinte e um anos e era imatura. Um dia depois, algo tão imprevisto como Martina ter interesses românticos por ela ocorreu: seu pai faleceu.

― O resto da história eu sei, Vic.

― Então… Eu estava para assumir a empresa como presidente, estava grávida e nem tinha terminado a faculdade ainda! Eu só queria que todos sumissem da minha frente!

Victoria demonstrava sinceridade em cada letra de palavra que falava e agora dirigia o olhar a Maximiano querendo que ele captasse o real sentimento por detrás das palavras.

― E que resposta você deu a Martina?

A presidente agora havia se sentado e buscava nos pensamentos um motivo para ter decidido cortar a relação com Martina, mas o motivo não vinha.

Maximiano sabia de como foi difícil para ela a perda de seu pai, mas ainda não entendia como Martina poderia a deixar tão fora de si. Presumiu que talvez Victoria correspondesse ao amor da amiga.

― Eu a expulsei da casa que dividíamos. Eu disse a ela coisas horríveis. Hoje eu sei que eu a culpei por meus problemas injustamente. Eu a fiz sair da casa e mudei de faculdade logo depois porque não aguentava olhar no rosto dela todos os dias no campus. A sede da BRASFLY era em São Paulo na época, contribuindo para que eu sumisse da vida dela de vez.

Maximiano sentia-se chocado com a reação de Victoria na época e se colocando no lugar de Martina imaginou o quão dolorido havia sido para a ruiva.

― Realmente deve ter sido muito difícil para você. A gravidez, o falecimento de seu pai… Mas porque toda essa raiva da Martina? Ela era sua melhor amiga, não era? O que me dá a entender é que você sentia o mesmo por ela e como não poderia viver aquilo, ficou cheia de raiva e descontou nela. Você já parou para pensar o sofrimento que causou a ela?

― Como assim, Max? ― Victoria agora tinha levada a palma das mãos ao rosto. ― Eu não sei!

Não. Victoria nunca havia pensado nisso antes. O diretor parecia ter tocado no seu ponto fraco, no que não queria admitir a si mesma. Victoria sentia-se completamente nua e envergonhada.

Não queria resgatar os sentimentos do passado.

― Dormente? ― perguntou o diretor.

― O que? ― Victoria não entendeu sobre o que ele se referia.

― A forma como a avalanche de emoções te cobriram como uma onda e em como seus sentimentos e sensações ficaram: dormentes.

Victoria o olhava rendida e já se encontrava sentada a sua frente na mesa e largada no assento de forma desleixada. Ele traduziu em apenas uma frase sua confusão mental na época. E se tivesse correspondido a Martina? Ela de fato não sabia, pois tudo foi tomado por uma tsunami de acontecimentos traumáticos.

― Eu sinto como fosse pecado revisitar esses sentimentos novamente. Só quero viver em paz. Eu estava em paz antes de Martina chegar, Max. É isso que eu quero!

Maximiano poderia jurar que viu uma lágrima cair do olhar da chefe.

― Mesmo?

Ela não confirmou as suspeitas dele.

― Conversamos melhor sobre isso depois? Apenas, por favor, vamos transferi-la.

Ele olhava as mãos pensativo. Aquela conversa já tinha atingido o ponto que ela queria instaurar. Com certeza havia plantado a semente da dúvida na mente de Victoria e isso já bastava para que aliviasse um pouco seu sofrimento embora ela não soubesse do poder curativo daquela conversa.

― Você poderia aproveitar para fazer as pazes com ela, sabe? Mas como quiser. Enfim, vamos transferi-la então.

― Certo.

A CEO expirou aliviada relaxando os ombros.

― Certo!

Sentada a frente dele, viu o diretor acessar o computador e começar a vasculhar por algum projeto grande dentro da empresa no qual Martina se encaixaria como uma das responsáveis.

Passando páginas e páginas dentre os catálogos eletrônicos achou um projeto que seria excelente para ela. Uma parceria com a Airbus para a compra dos primeiros A380 da BRASFLY. Os A380 eram o passaporte para voos mais longos e com mais passageiros. Esse sem dúvida era o maior projeto internacional que a empresa tinha no momento e a parte da segurança demandava uma liderança especializada.

Os dois se olharam e concordaram que se encaixaria perfeitamente dentro do perfil da ruiva. Só restava dar uma boa olhada no currículo dela, que estava numa das pastas da área de trabalho do diretor. Ele imprimiu duas cópias, que saíram direto numa impressora na mesa.

― O currículo da Martina é fantástico. Segure-se na cadeira. – disse Maximiano.

― Eu confesso que esperava mais páginas. ― Victoria não entendia como um currículo daqueles tinha apenas uma página e estando extremamente resumido podia conter tanta experiência.

― É um currículo bem resumido, mas também bem profundo. Olhe aqui…

Maximiano apontou para o segundo tópico abaixo da segunda experiência no currículo de Martina.

― Ela monitorou a implementação dos primeiros aviões A380 na frota da Singapore Airlines?

― Não disse que o currículo dela era bom?

― Muito mesmo! Cada linha dele.

A Singapore Airlines foi a primeira companhia aérea do mundo a comprar e receber um A380 ― o maior avião de dois andares do mundo para passageiros. Victoria imaginou o quanto a vida da ruiva devia ter sido interessante viajando pelo mundo a trabalho. Estar trabalhando naquela companhia aérea e naqueles anos soberanos da aviação deve ter sido o auge da carreira dela.

A CEO começava a se arrepender piamente de estar recrutando Martina para outro projeto longe dela agora que via com os próprios olhos o que a ruiva tinha realizado.

― O fato de Martina ter sido doutoranda em Toulouse, especificamente perto do aeroporto de Blagnac na época do lançamento do A380 a torna absolutamente perfeita para a vaga.

Maximiano falava com certa empolgação, porém com sentimento de perda contida. Os dois se olharam etados se perguntando internamente por quê deixar Martina escapar.

O telefone de Victoria toca de repente. Ela olha o visor, esperando ler o nome de Vanessa Valle nele. Não era a assistente, mas sim do setor de controle aéreo da BRASFLY no aeroporto internacional do Rio de Janeiro.

Victoria fica apreensiva no mesmo instante. Ela sabia que havia apenas duas ocasiões em que a torre deveria ligar diretamente para a presidente. E uma das ocasiões era por perda de aeronave.



Notas:



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3 Respostas para 3. A Ilha

  1. Boa tarde, D.G!
    Minha curiosidade está grande, com o que Victória possa fazer. Será que ela vai realmente conseguir tirar a Martina, sem mais de sua vida?
    Um beijão, D.G.!

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