Flashback on…

Parte 1

― Que tal VICTINA Airlines, Tina?

― Que? Do que “cê” ta falando?

― Da matéria Gestão de Projetos do professor Salvatore…

― Ah! Lembrei! O nome da companhia fictícia… Mas que falta de criatividade, Vic! ― Martina riu com a ideia da amiga.

― Qual a piada? Te agradeço muito por seus cálculos e toda matemática financeira, mas se a empresa não tiver nome, não rola, Ti!

― Estava pensando algo como BrasilAir, ou RioFly.

― Não acho que seja legal, pois é quase BRASFLY e tipo, não estou a fim de ser acusada de plágio ou algo do tipo.

― Não seria plágio, afinal você é a herdeira da empresa do seu pai.

― O que chamaria mais atenção para mim e não para o projeto.

― Escuta, o nome é o de menos. O que vale é a ideia que temos e o modelo financeiro.

Victoria não parecia convencida e mordia a ponta da caneta olhando para cima como se o nome fosse surgir no teto da biblioteca.

― Pode ser VM Air? V de Victória e M de Martina?

Martina olhava a amiga tentando descobrir se a ideia era verdade ou zoação. Como Victoria falava sério, Martina gargalhou alto.

― Tinaaaaaa, estamos na biblioteca. Cala essa boca! – sussurrou Victoria.

― Vic, você é uma comédia mesmo. ― se levantou pegando suas coisas. ― Tenho que ir. Tenho monitoria de Aerodinâmica com os calouros. Te vejo a noite?

― Claro, Ferret.

Martina odiava ser chamada pelo sobrenome e Victoria odiava que ela fosse a monitora de Aerodinâmica. “Perdia” sua melhor amiga para os calouros três vezes na semana.

― Por que não vem dar monitoria comigo, Vic?

― Por que sou péssima em Aero?

― Mais um motivo.

Foi se afastando e Victoria observou quando a porta da biblioteca deu passagem à sua amiga e fechou de leve. Não estava tão cheia como de costume e ela adorava estar ali, era calmo e silencioso como adorava que fosse. Estavam no final do penúltimo ano e faltava apenas duas semanas para o fim do semestre.

Parte 2

O que era mais excitante ainda para Victoria era seu novo crush: William Weber. Há três meses haviam se conhecido em São Paulo num congresso de aviação e vinham desde então trocando mensagens, que rapidamente se tornaram um tanto calientes. Ela havia tido namoradinhos antes, mas nada sério demais para ir além dos beijos. Pensava que finalmente tinha achado alguém decente e maduro o bastante para ter algo mais.

Ele era piloto, anos e anos mais velho. Aparentava ser um homem extremamente viajado e responsável. Podia afirmar com certeza que já era um pouco grisalho, coisa que seu pai havia lhe dito ser importante antes de considerar ter algo mais com um homem. De onde ele tirou isso?

Ninguém sabe.

A tarde passou batida. Victoria estava a descongelar feijão quando Martina entrou na cozinha, segurando uma espécie de pano branco num dos olhos.

― O que houve? Bateu a cara em algum lugar, Ti?

― Acho que estou com conjuntivite.

― Ham? Assim de repente?

― Só pode. Há uma hora atrás começou essa queimação. Parece que tem areia nos meus olhos.

― Senta aqui, deixa eu ver.

Martina sentou e olhou para cima na direção da amiga. Victoria olhou perto os olhos verdes da ruiva. A parte branca estava ligeiramente irritada e ela mal conseguia ficar três segundos sem piscar.

― E aí doutora, o que eu tenho?

― Fogo? Fricote? Ataque de pereca?

― Vou passar pra você, vamos ficar nós duas de molho e pode esquecer a apresentação do Salvatore.

― Nada disso, sai da minha cozinha então… Brincadeira, Ti. Vamos ao hospital amanhã.

― Amanhã? Amanhã não vou conseguir nem abrir os olhos!

Martina agora estava com o pano cobrindo todo o rosto e Victoria a observava, com sua preocupação crescendo. A campainha toca.

― Deixa que eu atendo. Sugiro que venha para a sala, pois vou fazer o molho de cebola e pode irritar mais seus lindos olhos verdes.

Parte 3

Victoria abriu a porta num pulo. Estava descabelada, mas mesmo assim não perdia o charme. Suas mechas pretas e onduladas caiam pelo lado de seu rosto displicentemente. Vestia uma saída branca, confortável, que demarcava bem sua cintura.

― William?

― Vic.

Os dois se abraçaram matando uma saudade que parecia nunca ter fim. Ela tinha que ficar na ponta dos pés para abraçar o comandante.

― Tina! Olha, finalmente você vai conhecer o William que te falei tanto. Que surpresa boa!

Martina estava praticamente deitada num dos sofás da ampla sala. Tinha os olhos cobertos pelo pano agora umedecido.

― Oi William. Desculpa o mau jeito, não consigo abrir os olhos. Fique a vontade.

― Tudo bem. O que você tem? ― Ele perguntou e se sentou ao lado oposto iniciando um diálogo com Martina, que continuava esparramada no sofá. Enquanto isso Victoria foi até a cozinha esperando terminar o jantar em tempo recorde para dar atenção ao namorado, se assim pudesse chamá-lo e talvez levar a amiga ao hospital.

O jantar foi terminado e servido. Comeram. Martina parecia um Stevie Wonder de óculos escuros para não contaminar ninguém com sua suposta conjuntivite e sim, se deram muito bem os três, obrigada.

― E vocês? Qual o feedback? Namoro? Enrolo? Amizade colorida?

― Tiiiiii?

Parte 4

Ele olhava para Victoria com um olhar apaixonado. Mal sabia ela que ele havia reservado uma suíte num luxuoso hotel na orla de Ipanema para passarem a noite.

Assim caiu a noite: jantar, hospital, Martina medicada e repousando seus olhos verdes e o mais novo casal de namorados selando sua paixão num quarto de luxo. Martina sabia que Victoria era virgem, mas não conversavam sobre isso. Ambas não levavam meninos a serio embora ficassem com eles esporadicamente. As duas sempre haviam sido nerds assumidas desde pequenas e apenas recentemente haviam começado a ter paixonites.

Fora que Victoria não imaginava que tudo aconteceria tão rápido. Quando deixaram Martina em casa ele disse que tinha uma surpresa e a levou ao hotel onde deixou claro que queria apenas ter a companhia dela naquela noite. Garantiu que não precisaria acontecer nada entre os dois, que poderiam apenas conversar, saborear da presença um do outro se assim acontecesse.

Quando menos esperavam já estavam debaixo dos lençóis. Victoria avaliou o sexo como muito bom, algo novo que repetiria. Todavia, pensou em algo que nunca havia pensado. Se estava a fazer sexo, poderia engravidar. Tinham se protegido sim, mas isso não tirou a preocupação da mente dela. Até onde sabia, até aquele dia havia sido virgem e a partir dali deveria procurar um ginecologista para tratar do assunto da contraceptividade.

No outro dia tudo normal. Contou a Martina do ocorrido e ela quis saber detalhes, que a amiga contou com o mínimo de vontade, pois tinha um pouco de vergonha. Não dava para ver a expressão de Martina. Estava de olhos fechados e realmente mal por causa da inflamação. Escutava atentamente a cada detalhe tímido de Victoria.

Queria saber se Victoria havia se protegido. Ela disse que sim, mas que precisava de mais informações. Era leiga no assunto. Percebeu Martina um pouco calada após a conversa e assumiu que era seu estado e o remédio. A amiga pediu que ela ficasse ali com ela deitada e ela assim o fez. Pobre Martina.

Parte 5

Um mês se passou, tudo transcorria normalmente. Victoria e William se falavam diariamente. Cada hora ele estava em um lugar por causa dos voos, mas nunca esquecia da amada. Ela amava conversar com ele e não via a hora de o rever, matar a saudade num quarto, talvez no dela desta vez, ou no dele. Martina seguia mais séria que o normal, ainda se recuperando da inflamação. Fazia menos piadas que o usual. Gritava menos na biblioteca. Encanava menos a amiga que cada vez mais jazia na sua nuvem de amor.

A apresentação de Gestão de Projetos transcorrera bem e valeu um A com mérito. O projeto seria apresentado no verão num evento da faculdade, o que deixou as duas radiantes. A felicidade parecia ser algo constante agora na vida de Victoria.

A quatro dias de terminar o semestre, faltavam apenas sair algumas notas para partir para as férias. Naquele dia Victoria havia ido ao hospital por não estar se sentindo bem e Martina havia ficado na faculdade para pegar algumas notas para as duas. Victoria havia combinado de passar as férias em São Paulo com William.

― Estou grávida.

Martina olhava incrédula para Victoria deixando o queixo cair displicentemente e franzindo a testa. As duas estavam sentadas na sala do apartamento, uma do lado da outra. Ao ver a reação da amiga e pela emoção que sentia, começou a chorar. Martina a abraçou, sem saber o que dizer. De todo não era algo ruim, mas também não era a hora perfeita para tal coisa acontecer. As duas choravam juntas se abraçando parecendo uma ser o amparo para a outra não cair.

― Eu estou aqui para te apoiar em tudo que você precisar, Vic. Ta bem?

Victoria apenas acenou a cabeça e continuou amparada na amiga. Martina sabia que nada seria como antes. Em seu interior sentiu um imenso sentimento de perda, que não podia explicar. Parecia que o sentido de estar ali, de viver, de prosseguir, havia terminado. Se levantou e foi até seu quarto em silêncio. Victoria vindo atrás.

― Está tudo bem, Ti?

Martina estava no banheiro, lavando as mãos e olhando Victoria pelo espelho. Soltou um pequeno sorriso que mais parecia de derrota. Se vira e observa a amiga encostada na soleira da porta enquanto seca a mão.

― Está tudo bem. Apenas me pegou de surpresa. Vai passar.

Parte 6

A noite estava estranhamente silenciosa após a revelação da possível chegada de um bebê. Victoria se refugiou em seu quarto se indagando sobre a reação de Martina e imaginando as possíveis mudanças que seu corpo iria sofrer. Ela não cogitava deixar de morar ali, pois isso implicaria em deixar Martina. As duas viviam juntas desde o começo da faculdade e eram como carne e unha, feijão com arroz, A Sentinela e Despertai, como diriam algumas Testemunhas de Jeová.

Martina aparece na porta do quarto de Victoria de repente. Seu rosto estava mais vermelho que tapete de Oscar. Seus olhos estavam inchados e não era conjuntivite, era porque havia chorado horrores. Mas por quê? Victoria a olhou etada e ergueu da cama.

― Não, não levanta. Vai passar.

― O que foi, Ti?

Uma fitou a outra sem saber o que dizer até que a emoção as dominou e as duas se abraçaram num ímpeto.

― Eu não quero te perder! ― Martina soluçava.

― Você não vai me perder, nunca.

― Vou sim. Uma hora ou outra. Eu não vou conseguir viver sem você.

De onde veio aquilo Victoria não sabia, mas de certa forma sentia um cado do mesmo.

― Nossa amizade é tudo pra mim, Tina.

― VOCÊ é tudo pra mim, Victoria. Eu não sei como aconteceu, mas…

Martina se desvencilhou da amiga e foi de encontro à janela, de costas para Victoria, que sentou na cama.

― O que aconteceu, Tina?

Martina se vira para ela. Não havia escolha. Ela sempre fora sincera com seus sentimentos. Sabia fundo no peito que não era a hora apropriada para aquilo, mas revelou.

― Eu te amo. É isso que aconteceu, quer dizer, acontece.

Martina se pôs de joelhos em frente a Victoria agarrando suas mãos.

― Eu também te amo, Ti. Que conversa é essa?

― Vic, não é nesse sentido. É amor, paixão… Eu me apaixonei por você. Só percebi hoje pois senti que vou te perder. Agora tenho certeza que essa coisa que sinto é amor!

Parte 7

O olhar de Victoria havia congelado, ela parecia não respirar. As palavras de seu pai evangélico eram taxativas com respeito a uniões homossexuais.

Flashes das falas dele vieram em sua mente como uma enxurrada:

“Deus não fez Adão e Ivo e sim Adão e Eva!”

“Gays são pedófilos!”

“Tenho nojo destas famílias de gays e lésbicas! Onde o mundo irá parar?”

Victoria se levantou, pois a revelação de Martina a sobrecarregou além da conta.

― Você deve estar louca. Eu nunca ficaria com você! Eu nunca insinuei nada para você, Martina. Por que isso agora?

Martina estava de pé com as mãos na cintura.

― Eu não sei. Eu não sei! Me perdoa, esquece o que eu disse. A culpa é minha.

Victoria não conseguia encarar Martina. Não aguentava ver a amiga assim, todavia, não sabia como reagir.

― Olha… Amanhã a gente se fala. ― Martina enxugou algumas lágrimas teimosas que caiam sobre sua bochecha e foi de encontro à porta. Sentia vergonha e repugnância de si mesma. Quando chegou até a porta, Victoria a chamou.

― Desde quando você sente essa “coisa”?

― Essa “coisa” é amor, embora eu não entenda ainda.

― ENTÃO É MELHOR ENTENDER. NÃO FAZ SENTIDO!

Martina não esperava que a amiga tivesse essa reação: raiva. Mas raiva de que?

― Vic, eu…

― NÃO FALA NADA!

Victoria esfregava o rosto nas mãos de forma frenética.

― EU QUE TENHO QUE TE DIZER UMA COISA… Existem sentimentos que não precisamos dar nomes. Todas temos sentimentos por amigas, mas isso passa, Martina. Não estrague a nossa amizade.

― Eu vou sair.

Martina se virou para sair, até que sentiu algo a puxar.

― NÃO VAI! VOCÊ VAI FICAR COMIGO.

Victoria puxou a amiga pelo braço e a abraçou tentando a impedir de sair.

― ME SOLTA, EU PRECISO DE UM TEMPO!

Victoria, como era mais alta e mais forte que Martina a empurrou para a cama de forma que Martina caiu de costas e Victoria caiu sobre ela de forma desengonçada.

― SUA BARRIGA, VICTORIA!

Victoria apoiou as mãos nos lados da amiga e não conseguiu não olhar nos olhos dela por estarem bem próximas. Os olhos verdes de Martina estavam tão brilhantes e vulneráveis que era impossível não admirar. As respirações estavam rápidas por terem se alterado.

― Você não vai a lugar algum. Não é assim que se resolve as coisas.

― Então como é? Me prendendo na cama?

― Não quero que saia e faça alguma besteira, Ti.

― Victoria, pelo amor de Deus, sai de cima de mim. Eu juro que só vou espairecer um pouco.

Victoria continuava imóvel.

― Eu também, Ti.

― Também o que? Também vai sair?

― Também te amo.

Victoria tinha uma expressão fria, nunca percebida por Martina antes. Tentou decifrar seus olhos, parecia que tinha vergonha como se tivesse dito algo muito errado.

Parte 8

Vendo que havia deixado Martina sem palavras se afastou dela e deitou-se ao lado, de barriga para cima. O som agora era só da rua, dos carros longe, das pessoas rindo alto de algo qualquer. Os sons entravam no quarto pela fresta aberta da janela.

Martina sentia-se magoada. De acordo com o que Victoria disse não tinha porque amá-la daquele jeito. Ela nunca havia insinuado nada. Aquele desejo só poderia ser algo errado e o fato de Victoria também a amar não tinha credibilidade para ela. Ela estava grávida de um homem que possivelmente a amava e estaria de qualquer forma fadada a seguir sua vida e seu destino com ele.

Martina levantou-se sem olhar para trás. Victoria já tinha os olhos molhados. A ruiva saiu do quarto, do apartamento, do bairro. Ela pegou o carro e dirigiu até o Centro, passou pelo Flamengo, passou pela orla, seguiu as rotas da cidade maravilhosa onde quer que a levasse.

Quando voltou já passava das duas da manhã. Foi ao quarto de Victoria e a achou dormindo, rodeada de lenços de papel. Ficou ali a olhando e pensando em como era divina. Seu cabelo era de um preto tão intenso que era fácil se perder na sua profundeza. Se deitou a seu lado sem encostar-se nela para não acordá-la. Notou uma folha de papel dobrado no outro lado no criado mudo. Estava escrito “Martina”.

Ela deu a volta na cama, abriu o bilhete e leu. Olhou a amiga, parecia estar sonhando. Seus olhos se mexiam frenéticos chacoalhando as pálpebras.

O que estaria ela a sonhar? Com certeza deveria estar em lugar muito melhor que a realidade. Estava a sorrir, suave, cândida.

“Ti, desculpe se te magoei ou confundi. Quando acordar quero conversar com você. Talvez seja recíproco, mas não sei. Minha cabeça está uma bagunça e a sua também. Tudo vai dar certo, eu não quero te perder, só sei disso.”

Vic

Deitou-se novamente, a abraçou de leve e adormeceu prometendo não desistir daquele sentimento e daquela nova jornada.

De volta ao presente…

A ruiva contava o histórico sem pudores e sem filtros, descarregando as emoções que havia segurado o dia todo.

(…)Eu a assustei. Eu só queria abraça-la, protege-la, embora soubesse que a perderia para sempre. Eu tinha sentido algo que nunca senti quando ela revelou que estava grávida… Foi uma mistura de tristeza com possessão e ciúmes de William. Ele era alto, forte, maduro, inteligentíssimo.

(…)Decidi que quando acordássemos iria pedir desculpas e ficar ao lado dela no que acontecesse. Daí amanheceu e quando acordei ela não estava a meu lado. Do nada ela surge na porta chorando e quando pergunto o que tinha acontecido ela disse que seu pai havia falecido. Foi outro choque para ela.

Após vários minutos de monólogo e se pondo em silêncio rendida, a terapeuta resolveu prosseguir.

― Temos de ficar por aqui. Por hoje é só.

A doutora levou Martina ao hall de saída e se despediu. Martina agradeceu e se foi. Saiu mais leve do que entrou. Havia algo muito libertador em abrir os sentimentos com uma completa estranha. Era pouco tempo para contar tudo que sucedeu em seu passado.



Notas:



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