A mulher que ara pedras

1. A mulher que ara pedras

Tenho asco dessa gentinha enraizada que passa vinte anos no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa. Quando deixei aquele vilarejo tudo o que queria era comer poeira, correr mundo. Tinha medo de continuar eternamente pequeno. Desde a infância a mediocridade – até mais do que a ignorância e a fome – me parecia a pior coisa do mundo.

E, como você sabe, comodismo e mediocridade são irmãos.

Então botei o pé na estrada e rodei por aí quase vinte e cinco anos.

Não foi com alegria que recebi a notícia de minha volta. Lido o telegrama, o amassei com raiva e atirei contra a parede do quarto. Como se com isso pudesse alterar o eixo da terra, fazer transbordar os oceanos ou simplesmente mudar a ordem natural das coisas.

Mãe morta. Agora você vem? Ass.: André

Claro que não tinha sido uma escolha fácil! Mas duas certezas me moviam: eu só tinha uma vida para viver; e ninguém a viveria por mim. E, claro, para fazer uma coisa você certamente deixará de lado outras…

Minha família tinha raízes naquelas terras. O pequeno sítio de meu pai, que antes foi de meu avô, e antes de meu bisavô, e ainda antes de meu tataravô que veio jovem da Europa. Ninguém sabia ao certo de onde. Uns diziam que da França, outros da Holanda. Havia quem jurasse que era alemão. O fato é que os meus olhos claros são herança dele.

E não só os olhos, eu dizia pra mim mesmo, com orgulho. Pois para chegar naquelas cercanias e fundar família, meu tataravô não largou pai, mãe, irmãos? Quiçá até esposa e filhos? Para esses ele fora, certamente, um aventureiro irresponsável. Mas para minha família era o herói, o desbravador, o fundador de uma dinastia.

Pobre dinastia! Donos de parcas terras em um vilarejo metido num sertão rude, assolado frequentemente pela seca. Há quatro gerações lutávamos contra a fome. Há quatro gerações labutávamos pedra. Essa foi a vida que conheci na infância. Foi dessa vida que escapei com pouco menos de vinte anos.

Acho que ainda no colo de minha mãe eu sonhava com outros mundos. Sempre quis sair dali, saber o que havia fora das cercas de nosso quintal. Mas, como eu disse, minha família tinha raízes naquelas terras. Estavam presos ao solo, como vidas ressequidas pelo tempo. Não se moviam. Um simples convite do tipo vamos até ali e voltamos já parecia-lhes ofensivo. Como, então, seria possível conciliar minha alma aventureira e meu amor familiar?

Embarquei num pau-de-arara com lágrimas nos olhos e uma felicidade transbordante no coração! E apesar das noites mergulhadas em saudade, meus sonhos aqueciam meu corpo, embalavam a alma em ritmada cantiga de ninar.

Fui ganhando chão, conhecendo gentes e paisagens. Virei doutor. Ganhei renome. Morei em três continentes. O planeta ficou pequeno e hoje sonho com as estrelas. Trabalho com astrofísica. Por que não? A lua é logo ali para quem tem disposição e coragem.

E então voltei. Por qual motivo, você pergunta. Por uma questão de justiça. Meu irmão não me entende, mas a terra é dele por direito. Há quase trinta anos enfrenta diariamente a enxada, de sol a sol. Primeiro ao lado de meu pai, depois sozinho. Mas o juiz lhe nega a posse. Parece que tenho que assinar qualquer coisa dizendo que aqueles alqueires de pedra não me interessam. Não volto pela mãe morta, como pensa ele, mas por ele mesmo.

E também por Nice.

Nunca soube o que foi feito dela, minha irmã caçula. Deram-me conta há anos de que havia se casado. Depois nem uma única palavra.

Sou omisso, não nego. Mandei dinheiro em várias ocasiões, mas evitava as cartas. Talvez por nunca encontrar uma reciprocidade em meus sentimentos. Da primeira vez que ganhei algum dinheiro enviei metade em um envelope junto de uma carta emocionada. Nem um muito obrigado retornou. Ainda assim mantive a prática por dois anos. E só quando sequei a fonte é que recebi uma carta de resposta. Haviam recebido o dinheiro e tinham meu endereço. Por que não responderam antes? Porque era difícil viajar até o correio da cidade próxima, disseram-me. E foi minha vez de me calar.

Não sei ao certo se por remorso ou se pra ganhar minha simpatia começaram a enviar cartas periódicas. Mas não mostravam alegria ou surpresa com nada do que eu contava. Eu já não lhes pertencia, é isso o que aquele monte de papéis amarelados, que faço questão de guardar, confidenciam a quem os lê.

Poderia ter mandado um procurador assinar a papelada do juiz. Teria evitado o constrangimento do encontro com meu passado. Mas alguma coisa me dizia que Nice precisava de mim.

A última vez que a vi era um bebê de dois meses. Então por que eu deveria me importar? Talvez por ter sido ela a única a me enviar algumas cartas decoradas e alegres. Falava de sonhos, de anseios. Dizia que não pertencia àquele lugar. Talvez eu devesse ter mandado buscá-la. Mas quando tive essa ideia soube do casamento e a coisa ficou por aí.

Como era longe aquele sítio! Avião de Paris a São Paulo. Outro voo até Recife. Entre viagem e traslado quase vinte horas consumidas. E era só metade da viagem. Depois veio a via-sacra até São José do Egito.

O escritório europeu providenciou carro com um motorista da região. O início não foi difícil, mas a estrada piorava a cada quilômetro. E tínhamos cerca de quatrocentos a rodar. Um pouco mais, na verdade. Na Europa faria isso em menos de quatro horas. Em Pernambuco sacolejei por mais de nove.

O sol morria e a terra ficava vermelha como se o sangue do astro-rei caísse nessas paragens. Quando chegamos à cidade mais próxima, a dor nos ossos me consumia. Dei um dinheiro extra ao motorista, reconhecendo seu esforço.

Dormimos no único hotel da cidade. A cama era limpa para compensar a falta de conforto. No dia seguinte partimos para o pequeno sítio de minha família. Os povoados foram ficando para trás. Tudo terra ressequida e enrugada como os velhos. E sem quase nenhum registro da passagem do tempo. Naquele sertão de Pernambuco era eternamente Agora, nada mudava. Constatei isso protegido pelo ar condicionado do carro. Aquela aridez toda me arranhava. Queria ir embora o quanto antes.

Avistei a casa ainda de longe. O mesmo alpendre torto de quando eu era um moleque brincando no açude. André aguardava na varanda quando o carro finalmente parou. Crianças e cachorros cercaram-me assim que desci. Nunca fora tão estrangeiro antes.

Apertamos as mãos como desconhecidos. Falamos dos papéis e de advogados. E cada gesto, cada entonação de meu irmão, faziam-me vislumbrar nosso pai. O garoto que chorou no dia em que parti existia apenas em minha memória. Pareceu-me naquele instante que, os que persistem, herdam não apenas a propriedade mas também o destino e a pele de seus antepassados. Talvez reencarnar seja rejeitar o destino que lhe deram por certo e se reinventar.  Eu reconhecia o lugar, a casa e as pessoas. Mas nada daquilo me pertencia. Eram cenários de uma vida anterior.

E então perguntei por Nice. Casara-se com o capataz, foi o que fiquei sabendo. Mas demorou dois dias até que me deixassem vê-la. Sua casa estava na divisa com a propriedade vizinha, já quase fora dos limites do município. Fui a pé e me arrependi no meio do caminho. O sol batia na pele como garras de um animal e achei que não viveria até o anoitecer. A caçula de nossa família era uma mulher rude, de olhar duro e sem nenhum traço de vaidade. Mas que vaidade pode ter uma mulher criada em paisagem tão árida? Não a recriminei por seu modo de ser. A culpa era minha. Se a tivesse levado para a Europa…

Mas então ela sorriu e foi como se um vento fresco me resgatasse do inferno. Muito tempo depois descobri que não me esperava. Não lhe disseram que eu estava em casa. Ainda assim me reconheceu e correu para meus braços. E pela primeira vez desde o retorno ao Brasil eu era bem-vindo em algum lugar.

Bebi água de moringa e nada no mundo me pareceu mais fresco e agradável. Depois sentamos no chão como duas crianças. Ou como velhos amigos que, resgatados da dor da saudade, não se importam com as convenções mundanas. E fomos felizes na sombra por horas a fio.

Com a noite chegou o marido. Não disse nada, nada perguntou. Agarrou-me pelo colarinho e caí pesado sobre meu ombro esquerdo, do lado de fora da casa. Tonto, tentei levantar às pressas, preocupado com Nice. Mas a essa altura ela já vinha com a peixeira na mão, berrando animalescamente, empurrando para fora o homem bêbado.

Encontrei meu cunhado duas outras vezes e ambas foram tão desagradáveis quanto a primeira. Era um homem sem sensibilidade. Tratava tudo aos chutes: plantas, animais, crianças, criados, utensílios, mulheres. Corpulento e forte conhecia apenas a lei da força bruta. Mas então se deparou com minha irmã.

Quem via Nice com seu parco metro e meio não entendia como controlava aquela fera. Mas controlava. A relação entre eles era de rivalidade e medo, não de amor. Notei isso em poucas horas e quando Nice confessou seu sofrimento nenhuma de suas palavras me surpreendeu. Decidi tirá-la dali.

Mas havia a papelada por assinar e as exigências mudavam a cada dia. Faltava sempre um documento, um papel qualquer. Meu motorista deslocou-se duas vezes a Recife em busca de certidões estranhas que só podiam ser obtidas em órgãos públicos de lá. E nada disso foi suficiente para encerrar o inventário. Dias perdidos com uma burocracia burra que nos arrastava para lugar algum. E Nice sofrendo naquele casamento infeliz. Não suportava vê-la sufocando sob o peso daquele mundinho rude. Então a trouxe para o hotel da cidade. E foi assim que nos conhecemos.

Ficou encantada com meu notebook e ficava horas bagunçando tudo. Esperta, aprendia rápido os comandos. Demonstrou especial apetite por minhas fotos. Olhava deslumbrada para paisagens completamente diferentes do mundo que conhecia. O mundo é grande, Nice, eu lhe dizia. E ela sorria quando eu perguntava se queria partir comigo. Queria, era claro que queria. E assim traçamos nossos planos.

Foi remexendo o computador que descobriu minha ex-mulher. Olhou atentamente a primeira foto que encontrou, depois procurou outras. Devassou meu passado com olhar tão faminto que me senti constrangido. Ela é tão bonita, disse finalmente, por que se separou?

Boa pergunta, também queria saber. Era linda, de fato. E encantadora. Mas provavelmente merecia alguém melhor do que eu. Alguém que pensasse mais em constituir família do que em criar projetos. Eu vivia viajando. Era responsável por pesquisas na Europa e nos Estados Unidos. Lorene tolerou as dificuldades no início. O amor inicial sempre parece forte para superar qualquer coisa. Mas quando o tempo passa descobrimos que o amor suporta menos do que nos diz à primeira vista. Cansou de ficar sozinha enquanto eu explorava mundos. Voltei de uma viagem, encontrei os armários vazios e um bilhete de despedida. E ficamos nisso.

Agora Nice enchia-me de perguntas, queria saber tudo sobre aquele passado que eu já considerava morto e sepultado. Depois perguntou como eram as mulheres europeias, quantas eu já tinha namorado, quais as mulheres mais bonitas do mundo.

Tentei consolá-la dizendo que não havia mulher como a brasileira. Mas quão longe eu estava das preocupações de minha irmã! Ela pensou um pouco sobre o que eu disse, depois sacudiu a cabeça e comentou que mesmo assim queria ir embora comigo. Não entendi o que pretendia dizer.

O processo no fórum chegou a um ponto de não ter mais para onde ir. Pela terceira vez o juiz pedia um mesmo documento alegando erros de carimbo, assinatura ou sei lá mais o quê. Perdi a paciência, pedi suporte ao jurídico da empresa. Três dias depois chegou um advogado de São Paulo. Terno e gravata no inferno sertanejo. Achei que o sujeito fosse morrer desidratado de tanto que suava. E enquanto o homem labutava com o juiz, meu irmão e o marido de Nice cercaram-me na rua.

Nice era casada, pertencia ao marido. Reagi com escárnio ao pensamento medieval e recebi um soco como resposta. Levantei mas caí novamente com o segundo. Então reagi por baixo, ginguei o corpo e usei as pernas como alavanca. Derrubei o grandalhão que se vangloriava de ser meu cunhado e depois pulei aos socos em seu rosto. Quebrei seu nariz logo no primeiro murro e teria feito pior se meu irmão não me segurasse.

Ninguém sai de um povoado no fim do mundo e encontra espaço na civilização se não for bom em briga de rua. E eu era. Compensava a pequena estatura com muita agilidade e esperteza. A maioria dos grandalhões acredita que músculo é tudo. Mesmo dois contra um era simples naquela circunstância. Meu maior inimigo era minha falta de prática. Ainda assim me livrei rapidamente dos braços de André e derrubei novamente o capataz com um chute no rosto. O homem foi a nocaute e André, sem seu guarda-costas, tentou correr para lugar seguro. Fui mais rápido e o joguei no chão.

Ao fim da tarde eu retornava derrotado ao pequeno hotel que me servia de moradia na cidade. Dizia a mim mesmo que pouco me importava o destino de Nice. Não a vira crescer, não construí vínculos com ela. Por que me importar se sua vida era enfrentar a enxada e um marido grosseiro?

Subi a escada até o terceiro andar com o firme propósito de devolvê-la a seu mundo. André estava certo, não devia me meter na vida deles. Que direito eu tinha, afinal? Laços de sangue são o bastante pra formar uma família?

Minha família era a rua, o mundo, a estrada. Liberdade era meu sobrenome. E que se danasse o resto.

Mas Nice sorriu quando abri a porta de seu quarto e me perguntei como poderia ser. As palavras de André, e a felicidade maldosa com que as disse, doeram de novo em meus ouvidos. Mas e ela? O que me diria a própria Nice? Por que ouvir apenas as palavras maliciosas de André?

Ir embora. Era esse o certo, pensei. Apertei no bolso da calça os papéis que garantiam o fim da contenda judicial. O advogado de São Paulo e uma módica quantia em reais mudaram a opinião do juiz local. O assunto que me trouxe a São José do Egito estava encerrado, nada mais me prendia ali ou àquela gente. Enfim a liberdade total dos laços desfeitos. Nenhuma culpa para carregar, não mais. Fazer as malas e partir. Sozinho. Era isso, só isso que me separava do futuro perfeito.

Mas Nice sorria indiferente a tudo o que se passava comigo. Apontava o computador e perguntava se poderia ter um desses quando chegássemos à Europa. Não chegaremos a lugar algum, me ouvi dizer. O rosto dela ganhou uma expressão cinzenta. Cerrou os dentes e, de alguma forma, pareceu-me brutal. Ela fez mal a uma menina, ouvi novamente a voz de André. A uma me-ni-nA, enfatizava ele, quase em êxtase por me contar a verdade.

Minha irmã fechou o notebook e ficou em pé. Você é como eles, acha que sou um monstro. Sua acusação gelada me deu calafrios. Não parecia disposta a discutir, não esperava nada de mim. Juntou as poucas coisas que tinha e rumou para fora do quarto. Mas a dúvida me obrigou a para-la. Eu não era como eles. Não podia julga-la sem saber a verdade.

O que você fez, Nice? Em minha cabeça a pergunta era acompanhada por uma imagem sórdida, a mulher adulta violentando uma garotinha. Por que eu pensava assim? Por que tomava ao pé da letra as palavras de André? Não sei, mas tomava. E ela, já muito ferida pela vida, puxou o braço que segurei e depois, olhando-me nos olhos, disse que não se arrependia de haver amado. Uma vez, uma única que seja, mas de verdade. Amei e fui amada. Quantas pessoas podem de fato se vangloriar de tal fortuna? E o que importa se era outra mulher? Como pode um amor ser errado? Por que haveria Deus de nos encher com uma felicidade pecaminosa?

Seus olhos duros tinham lágrimas. De aflição, de saudade, mas também de decepção. Pensei que você fosse diferente, falou e saiu do quarto dando a discussão por encerrada. Não fui atrás, não tinha estômago. Fiquei deitado na cama por longos minutos, depois arrumei as coisas e encerrei a conta. Chamei o carro mas, ao olhar a estrada, mandei o chofer para o lado oposto. Para a pequena estrada de terra que levava à propriedade de meu irmão.

Alcancei Nice um quilômetro antes de sua casa. Abri a porta em lágrimas. Acabara de conhecê-la e já a amava tanto!  Em silêncio nos afastamos do carro. Não sou como eles, disse por fim, e minha voz não disfarçou a emoção. Conte-me sua história, Nice. Quer mesmo saber?, respondeu em tom de desafio. Depois contou. Contou como se encontrava frequentemente com uma jovem no açude. Como tomavam banho juntas e sonhavam com uma vida amena em algum lugar que não fosse ali. Contou como se sentiam plenas na companhia uma da outra, como a vida árida parecia mais fácil se estavam juntas, como suas peles arrepiavam quando estavam próximas. Contou do primeiro beijo e dos sonhos de fugir para a cidade grande. De como se vangloriava de ter um irmão no estrangeiro que as acolheria, e de como a outra não acreditava. Contou como tudo foi um sonho bom até o capataz de André surpreendê-las juntas.

Não é difícil imaginar a vergonha de meu irmão. E quando o empregado se ofereceu para casar com a pervertida,  coloca-la na linha, é claro que André aceitou. Nice não teve escolha. Levada à força para o altar e para a cama. Entregue pelo irmão ao brutamontes como uma propriedade qualquer. Tomada a força uma, duas, dezenas de vezes. Até o ódio crescer e lhe dar forças. Coragem. Já havia pensado em morrer, mas naquela noite, com ele feroz por cima dela, moveu os braços para a cabeceira e encontrou a moringa. Colocou tanta força no movimento que o homem ficou tonto. Livre, correu para a cozinha e se agarrou à peixeira. Trêmula, finalmente o impediu de tocá-la.  E o miserável jamais fará mal a mulher alguma outra vez.

Nem mulher alguma dali jamais foi forçada a algo sem que Nice saísse em sua defesa. Tornou-se aos poucos na fera do lugar. Mas nunca se importou com os olhares tortos e a fama de louca. Recolheu-se em sua casa cuidando de seus próprios negócios. Arava a terra com o mesmo fervor de nossos antepassados. E, como eles, acreditava em milagres. Mas o fruto que esperava produzir não eram as raízes comestíveis. Era um futuro melhor. Era uma vida nova num lugar distante. Rezava e esperava. Porque um dia o milagre viria.

E veio.

Partimos dali para o aeroporto de Recife. Viajamos abraçados, mutuamente consolados. Éramos irmãos. Na vida, nos sonhos, no anseio de voar.

A história que conto ocorreu há uma década. Nice desembarcou em Paris como uma mulher agreste de modos rudes. Falava apenas o português rudimentar de nossa terra natal. Consegue localizá-la agora nesse salão? Parece mais alta do que quando chegou. Mais altiva, sem dúvida alguma. Mantém o jeito franco de olhar nos olhos do interlocutor e sorri com uma sinceridade que quase machuca. Mas não há nenhum vestígio da timidez de menina sofrida. Fala francês e inglês como se o fizesse desde o nascimento. Está ali, bem no centro das atenções, rodeada por três belas mulheres. A ruiva é minha cunhada. Não conheço as outras duas. Alguns jornalistas ainda se aproximam para perguntas, mas a coletiva de imprensa terminou há quase uma hora. Estamos no vernissage de sua décima quinta exposição. Desenvolveu uma técnica própria de pintura. Mistura tinta, argila e areia moída. O resultado são telas de uma textura quase viva. Suas imagens de nu feminino são reconhecidas internacionalmente. As mulheres que retrata não são vulgares nem vulneráveis. São fortes e potentes, sem nunca perder a suavidade. Como a própria Nice, a mulher que ara pedras.



Notas:



O que achou deste história?

Uma resposta para 1. A mulher que ara pedras

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.