A Organização

Capítulo 1 – Para quem eu sou?

“Eu não sei por que tenho que pegar uma novata sob a minha tutela?!” Os pensamentos se amontoavam na mente de Renee, que acabara de voltar de um trabalho realizado nas fronteiras da Rússia, quando foi interrompida em seus pensamentos pela sua mentora.

— Às vezes acho que você teria que retornar ao seu treinamento, Re?

— Por que diz isso, Loren?!

— Porque você sabe muito bem, que as pessoas quando entram para organização, tem que ter um mentor, afinal de contas como passaríamos a nossa filosofia se nós não ensinássemos aos novatos?

Embora soubesse que Loren não utilizaria suas “habilidades especiais” para saber o que ela estaria pensando, sabia muito bem que a amiga e mentora, conhecia-a mais do que ela a si mesma. Não apenas por respeito a “Organização”, não era somente honra, mas para que a Organização funcionasse da forma para a qual foi idealizada, era seu dever passar seus conhecimentos para os novatos, como foi um dia passado a ela por Loren.

— Sabe que não me aborreço em ensinar, ou melhor, me aborreço sim, mas não é por mal, Loren, apenas acho que há tantas coisas a fazer, que sinto que, perco tempo!

— Não acho tempo perdido em melhorar o nosso pessoal e acredito que ninguém da Organização também.

“Loren estava certa”. Pensou Renee. “Ela estava ficando sem paciência e isso era inadmissível para alguém que trabalhava em sua profissão”.

— Loren, você acha que tenho mesmo que voltar aos meus treinamentos? Você acha que tenho saído das linhas de conduta da Organização?

— Não das linhas de conduta, mas dos preceitos fundamentais talvez. Você tem trabalhado sem parar, não tem tirado férias, não tem vida social. Qual foi a ultima vez que recebeu amigos em sua casa, coisa que gostava de fazer com prazer e alegria? Ou visitou amigos? Ou mesmo teve um relacionamento íntimo com alguém?… Você sabe bem que, quando começamos a nos anular como pessoas, seres que respiram e sentem, nós deixamos de nos realizar e nos tornamos intolerantes É tudo que não queremos e nem esperamos que ninguém da Organização seja ou esteja. É contrário ao que concebemos e ensinamos. Ter uma pupila pode ser bom para você se lembrar de certas considerações. Além disso, você ainda terá quatro dias antes que a Doutora Helen chegue. Poderá passar em sua casa, se programar e principalmente descansar.

— Tem razão, e eu estou morrendo de saudades de Zeus e tenho certeza que ele de mim.

— Isso com certeza. Passei todos os dias para colocar comida e água, mas ele andava muito tristonho, não estava com aquela alegria que é peculiar a um “Labrador”.

— Obrigada por me trazer em casa, Loren, até mais.

— Seja bem vinda, Re, até mais.

Renee desceu do carro e logo abriu a porta com um largo sorriso no rosto, sabendo que Zeus a receberia abanando o rabo e trazendo para ela, um de seus brinquedinhos na boca. O abraçou com carinho, alisando seu pelo negro. Nesse ultimo ano, Zeus havia sido seu companheiro mais fiel. Não que, não tivesse amigos, pois na Organização todos eram muito bons e cordiais. Ao longo de quase metade da sua vida vivera lá, desde que fora convidada a participar da Organização e largara sua vida no mundo capitalista e egocêntrico. Hoje com princípios nobres e sólidos de redirecionamento das políticas mundiais, na qual a Organização atuava, e, por debaixo dos panos é claro, tivera uma oportunidade de vida que havia abraçado com unhas e dentes. Naquela ocasião, achava utopia os conceitos de vida e humanidade da Organização. Era uma instituição secreta e fundada a partir do caos mundial que imperava na época.

Por volta do ano de 2140, o mundo estava envolto em várias guerras de cunhos políticos e disputas por qualquer forma de poder; água, comida, armas, terras para plantio, tecnologias, combustíveis… qualquer coisa que estivesse se extinguindo era motivo para guerras e invasões. O ser humano ainda não havia aprendido que o mundo era de todos e que se a sociedade não se unisse, para aprender a viver em paz e achar meios sensatos de existência, dali a poucos, mas muito poucos séculos mesmo, já não existiria mais nada para ser disputado. O caos engoliria e destruiria tudo.

Renee despertou de seus pensamentos, percebendo que cada vez que ia além das fronteiras da Organização, retornava consumida pelas coisas ruins que presenciava. Percebeu que a observação de Loren estava correta, precisava de férias e refazer suas esperanças a respeito do mundo exterior.

Como era bom estar em casa, tomar um belo banho, fazer comida, ler um bom livro ou apenas brincar com Zeus. Talvez ligasse para alguém… “É. Acho que vou ligar para Ruth, Irina e Werneck para jantarmos juntos”.

Por volta das 7:30h a campainha soou.

— Chegaram cedo! Entrem, pelo menos a tábua de frios já está pronta para podermos beliscar!

— Hummm! O que temos hoje para comer?

— Nossa, Irina, você nem perguntou a Re como foi de viagem?

— Não esquenta, Werneck, eu sei que Irina adora minha comida.

— Desculpa, Re, mas não sou só eu não, a Ruth também estava no carro, só imaginando!

— Eu tô calada aqui e vocês me enfiando em conversas.

Todos riram, pois Ruth costumava ser reservada e se envergonhava com facilidade.

— Mas… hoje, tem alguma coisa especial para comemorar?

— E precisa ter alguma coisa, para os meus amigos virem à minha casa jantar, Irina?

— Há algum tempo atrás não, mas de uns longos meses para cá… você chegava, partia e nós nem sabíamos!

— Meninas, vocês não acham que estão sendo rudes com Re?

— Não tem importância, Werneck, elas têm razão, eu andei deprimida durante um tempo e acho que me afastei um pouco, mas quero reparar isso.

— Eu definitivamente não te entendo, você sabe que se não tiver legal, você pode contar com a gente! Não tem “essa” de se esconder, ou pensar no que a gente vai pensar.

— Eu sei, Ruth, também sei do carinho de vocês por mim… Alguém quer uma bebida?

Renee mudou de assunto. Não queria discutir naquele momento, suas angústias e seu recente sentimento de solitude.

— Adoro seus vinhos.

— Eu tenho um brasileiro ótimo para hoje, Werneck.

— Re, se eu não soubesse que você “gosta do mesmo que ele”, diria que está paquerando meu marido, tudo é para ele!

A risada permeou o ambiente. Irina costumava contrariar suas “raízes” norte-asiáticas e sempre fazia piada com tudo.

— Não fique com ciúmes, eu te amo também, Irina!

Renee falou sorrindo e mexendo com a loirinha.

— Tá com ciúmes também, Ruth? Eu amo a todos!

Abraçou o grupo rindo.

— Meus ciúmes são outros…

Ruth falou baixo, para que só Renee escutasse e esboçou um sorriso malicioso. Há muito tempo, haviam tido um relacionamento, que por circunstâncias da época, não se consolidou. Porém, Renee hoje tinha um carinho tão grande pela amiga, que era difícil vê-la como mulher. Em outras épocas, tentaram se aproximar novamente, mas não gostava de pensar em nada fugaz e muito menos com a amiga de longa data. Desconversou para não transparecer a seu desconforto.

— Que bebida vai querer, Ruth?

Perguntou com um largo sorriso.

— Vou acompanhar vocês no vinho.

— Irina?

— Você sabe que eu não nego a minha origem e sei que você sempre tem uma vodka maravilhosa no gelo. Você ainda não nos falou o que temos para o jantar?

Irina mais uma vez provocou, arrancando risos de todos.

— Hoje é simples. Filé de frango ao alho torrado no azeite, arroz de açafrão e salada de aspargos.

— Acho que vou me enfastiar hoje.

— Sempre muito educada, né, Irina?

Werneck arrematou, arrancado mais risos e deixando o ambiente tranquilo. Ao final da noite, quando todos já se despediam, Renee se empertigou e sabendo que Ruth e Irina trabalhavam no núcleo, diretamente com o “Círculo da Irmandade”, resolveu perguntar quem era a tal doutora Helen. Estranhava, pois a Organização há algum tempo não convidava alguém para fazer parte. Os rumores a respeito da existência da mesma estavam acentuados entre as nações e cada vez menos pessoas de bem, íntegras, de personalidade e convicções limpas e idôneas existiam. A humanidade estava se perdendo e mudando conceitos e valores há muito tempo.

— Re, na realidade o que eu sei é que vai chegar. Sei que é paleontóloga, com especialidade em diversas áreas, inclusive forense, mas não sei “o porquê”. Entendo a sua preocupação. Se fosse há alguns anos, não estranharíamos, pois tantos chegavam à Organização todos os anos, que dispúnhamos de tempo praticamente para o acompanhamento e adaptação, e, para fazer tais pessoas, se sentirem parte da “Organização”. Ao mesmo tempo, hoje temos que nos cuidar mais e tão poucos se encaixam no perfil e requisitos, que eu acho que o “Circulo da Irmandade” quando acha um, quer logo arrebanhar. Mas eles sabem o que fazem.

— É verdade. Obrigada por essa noite, adorei estar com vocês. 

— E nós com você, Renee. – Falou Werneck. – Não se distancie, pois sabemos o quanto é difícil, para quem tem que sair de nosso conforto e nosso lugar, ter que intervir em um mundo tão conturbado. Sabemos o quanto é desgastante.

Depois que seus amigos saíram, Renee pegou um livro para ler. Apesar do cansaço, continuava agitada e queria relaxar para poder dormir. A notícia dada assim que chegou, de que ia ser mentora de um novo membro, deixou-a apreensiva. Ficava imaginando, se conseguiria acompanhar novamente uma pessoa em sua adaptação. Não estava fácil lidar com os sentimentos negativos que a assolaram nos últimos tempos. Estava pessimista quanto a um futuro melhor. Seu pessimismo, também permeava em relação ao árduo trabalho que a Organização praticava, para tentar colocar o mundo em eixos mais harmônicos. Os caminhos pelos quais a humanidade caminhava, não eram lá muito promissores.

Depois de ler três vezes a mesma página sem conseguir se concentrar, fechou o livro e foi para o quarto para tentar dormir. Sua cabeça continuava em um vórtice de pensamentos, mas tinha que forçar para o sono chegar, pois de outra forma, não descansaria. Tomaria outro banho para ajudar a relaxar e conseguir dormir.

Seu cão caminhou a seu lado fazendo companhia. Renee fez um carinho em seu pescoço, sorrindo, tirou a roupa e foi para o banheiro. Abriu a água do chuveiro e deixou que caísse até aquecer. Misturou com água fria até que atingisse a temperatura morna que gostava de banhar-se. Entrou e deixou que a água caísse sobre seu corpo a acalentando. Começou a rememorar a sua última missão.

As imagens de garotas mortas, umas tantas a tiros e outras espancadas até a morte, vieram a sua mente como um furacão. Deixou que as lembranças tomassem sua mente, numa tentativa de expurgar tais imagens. Sabia que esta era uma das coisas que estava desgastando-a, desde que terminara o trabalho.

Há seis meses, havia se infiltrado em um grupo criminoso, que contrabandeava órgãos humanos, meninas forçadas à prostituição e escravidão sexual. Esta máfia tinha braços no mundo todo. Conseguiu juntamente com outros agentes, desmantelar o grupo, mas não sem antes, ver e presenciar horrores por dois longos meses, quando o grupo criminoso adquiriu confiança nela, e passaram a mostrar suas atividades. Presenciou inclusive, este massacre que havia ocorrido na Rússia, pelo simples fato desta máfia, desconfiar que estavam sendo vigiados.  Na época, ela não pôde interferir e muito menos, conseguiu evitar. O que mais a consumia, era o fato de ter que demostrar prazer ao ver a cena, para que não desconfiassem dela.

Depois de tanto tempo presenciando tanta dor, maldade e ira, tendo o dom da empatia, se conectou aos criminosos mais próximos, para tentar suportar tanta perversidade. Sabia que era perigoso e que poderia mexer com as suas estruturas e sanidade, mas era preciso. Se não o fizesse, possivelmente não conseguiria chegar ao fim e se denunciaria. Quando no último ato, conseguiram desbaratar o grupo criminoso, sua ira chegava a tal ponto, que perdeu o controle, atirando na cabeça do chefe do grupo e o pior aconteceu. Sentiu o terror nos olhos do bandido e ao mesmo tempo, sentiu prazer ao matá-lo. Estes sentimentos caíram como concreto sobre si, pois nunca em sua vida poderia imaginar-se tendo este tipo de prazer. O que a sustentou, foi o fato da mais “nova namorada” do criminoso, que estava presa a cordas pelos punhos, vir de encontro a ela, abraçando-a e sussurrando agradecimentos entre os soluços do choro.

As lembranças e os sentimentos estavam tão fortes e presentes, que parecia que não estava sob as águas de seu chuveiro, e sim, sob uma tempestade escura, ao som de trovões. Sentiu uma vertigem acometê-la e uma dor profunda rasgando seu peito. As lágrimas vieram fortes aos seus olhos. Deixou que o choro convulsivo a tomasse por inteira e que seu corpo escorregasse pela parede do box. Mais tarde, quando jazia deitada em sua cama, não soube ao certo, quanto tempo permaneceu chorando com as águas açoitando seu corpo. Soube menos ainda, como se enxugou e retornou ao quarto para deitar. Parecia que uma parte de si havia sido arrancada violentamente.

Na manhã seguinte, Renee ligou para sua terapeuta. Ainda estava mexida e sabia que teria que retornar à terapia para tentar se estabilizar, mas pelo menos, havia conseguido dormir dez horas inteiras, tamanho o desgaste. Depois da terapia, resolveu voltar a sua rotina de atividade física. Sentia-se bem quando treinava suas lutas.

Renee havia convidado Loren para almoçarem juntas. Passou no núcleo para pegá-la. Estacionou o carro em uma vaga na frente do prédio de linhas retas e pintura branca. Olhou a construção e ainda se admirava da simplicidade e beleza da obra. Nada demais. Porém as grandes sacadas em balanço projetadas em linhas retas e as grandes portas em vidro, que davam para as sacadas, produziam um sentimento sutil de clareza.

Andou pelo caminho feito em pedras brancas e entrou pela porta principal. Passou pelo saguão e se dirigiu à última porta do corredor. Deu três pancadinha leves na porta e escutou a voz que sempre a tranquilizara manda-la entrar.

— Boa tarde!

Falou sorrindo para sua amiga. Loren elevou o olhar, antes fixo no monitor à sua frente e lhe sorriu também.

— Nossa! Fiquei emocionada pelo convite que recebi hoje de manhã para almoçar!

Falou zombeteiramente para a agente.

— Às vezes eu “dou uma dentro”.

Devolveu no mesmo tom zombeteiro.

— Não atrapalho?

— Ninguém nunca atrapalha quando me tira da minha mesmice e me leva para almoçar.

Renee sorriu balançando a cabeça e pensando que nunca vira Loren de mau humor, fora questões de trabalho.

— Está pronta?

— Onde vai me levar?

— Bom, depende… Hoje tem tempo ou tem que almoçar rápido?

— Acredito que tenho tempo. Não gostaria de pensar que o “Tadjiquistão” pudesse ser invadido, exatamente na hora de meu almoço.

Renee franziu o cenho.

— Algo sério?

— Algo danoso. Mas deixemos isso por agora. É uma tensão na região que, se prolonga por alguns meses. Estamos monitorando.

Loren pegou sua bolsa, travou seu sistema e caminhou até Renee.

— Temos gente lá?

Renee deu passagem à sua mentora e ela a olhou sorrindo.

— Queria que meu marido se lembrasse algumas vezes dessas gentilezas. Adoro sair com você. “Me faz” sentir graciosamente mulher!

Renee sabia que a amiga estava mexendo com ela. Sempre lhe falou que tinha uma gentileza natural e que isso era a sua beleza e sua marca.

 — Wow! Problemas no paraíso?

Devolveu a provocação sabendo que Loren a retrucaria de forma humorada.

— De que paraíso você fala? Case-se e irá descobrir que o único paraíso que existia era em sua imaginação!

Renee gargalhou. Conhecia o marido de Loren e sabia que ela o amava verdadeiramente e nada do que dizia era realmente verdade.

— Isso é alguma forma traumática de fazer com que não procure a minha “princesa encantada”?

— E por acaso você acha que ela existe?

— Você quer parar de me responder através de perguntas? Estou me sentindo, como se tivesse retornado ao meu primeiro ano aqui.

Riram divertidas.

Estavam no carro percorrendo a alameda principal quando Renee virou na esquina de sua casa.

— Ué? Você fez o almoço?

— Foi você quem aconselhou que fizesse coisas que gostasse de fazer e receber amigos em minha casa… você é uma de minhas amigas, não é?

Renee sorriu de lado, fazendo Loren sorrir junto e meneando a cabeça.

— Esqueci que depois de um tempo, você passou a ser uma mulher sensata e aplicada.

Falou em tom cínico.

Chegaram e entraram na casa. Renee pediu que Loren se sentasse.

— Vou pegar algo para beliscarmos. O que quer beber?

— Um suco, apenas.

— Laranja?

— Está ótimo.

Renee pegou o suco para as duas e trouxe uma tábua com pastas diversas e torradas. Sentou-se na poltrona à frente.

— O que está te incomodando, Re?

— Como assim, o que está me incomodando?

— Ora, Re. “Te” conheço há dezoito anos. Tudo bem que sempre me chama para sua casa para conversarmos, mas não na hora do almoço. O que há?

— Não sei, ando inquieta.

Loren suspirou e a olhou diretamente.

— Sabe que sou eu quem recebe os seus relatórios. Re, o que passou não é algo que a gente consiga digerir facilmente. Está fazendo terapia?

— Sim. Desde que retornei… mas ainda continuo intranquila. Não acha que seria melhor outra pessoa ciceronear a doutora Helen?

Renee perguntou com seriedade na voz.

— Com toda sinceridade, Re. Acho que seria até bom para você. Você se distanciaria um pouco de tudo que lhe aconteceu, pois seu foco seria outro.

Renee ficou pensativa por uns momentos e assentiu com a cabeça.

— Está certo.

Passaram a conversas amenas e Renee a levou de volta ao núcleo, depois de almoçarem.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.