A Organização

Capítulo 16 – Audácia

A agente da Organização sentiu um cheiro forte e ácido. Sua cabeça latejava. Aos poucos abriu os olhos, mas a forte claridade, obrigava-a cerrar as pálpebras.

— Vamos lá, poderosa agente. Acorde do seu lindo sonho.

As palavras eram ditas com desdém. A raiva e a humilhação a tomavam por dentro, ao escutar a voz tão conhecida por ela, pronunciar tais palavras. Espremeu fortemente os olhos, tentando dissipar o desconforto que a luz causava. Moveu suas mãos, pois sentia dormência nos braços. Tinha duas algemas, uma em cada mão, presas ao espaldar da cadeira em que estava sentada. Conseguiu abrir os olhos devagar e a visão de Helen em frente com uma arma na mão, deu-lhe a certeza de sua enorme decepção.

Reparou o ambiente em que estava. Era um quarto grande de paredes lisas, pintadas em um tom branco-acinzentado. Apenas uma porta ligava o local ao exterior, onde quer que ele fosse.

— Muito bem, já acordei e reparei que vocês adoram clichês. Uma cadeira, um quarto branco e uma porta. Que podre isso!

Sorriu cínica.

— Clichê, mas funciona, minha cara amante!

Helen devolveu de forma cínica a provocação.

— E seu amiguinho aí do lado? É ele que vai fazer o papel do homem mau? A cara horrorosa ele já tem!

Helen gargalhou.

— Agora eu é que falo. Que clichê, agente Renee, usar de deboche para desestabilizar emocionalmente. Mas garanto que meu amiguinho aqui nem se abalou.

— Ainda estou esquentando.

— Você não precisou de muito tempo para esquentar a umas quatro horas atrás.

“O que Helen está fazendo? Ela não seria tão estúpida me dando esta informação de bandeja!”

— É, tem razão. Mas dependendo da “vadia” que está com a gente…

Renee encolheu os ombros em sinal de descaso, mas reparando bem nas expressões de sua “inimiga”. Helen sorriu e suas expressões faciais não alteraram, exceto um ligeiro estreitamento no olhar.

— Bom, minha cara, chega de conversa. Meus amigos estão querendo umas informações e como acho que você não falará por bem, pularemos esta etapa. Eu vou na sala ao lado, ver como a sua amiga está, enquanto isso, vai pensando se você quer passar pela dor ou vai ser boazinha. Quando voltar, tenha certeza que a cada pergunta não respondida, seus gritos chegarão aos ouvidos da sua querida mentora.

Mais uma vez, Helen deixou escapar informações para Renee e esta não entendia por quê. Primeiro havia dito o tempo que a agente tinha ficado apagada, fazendo com que Renee entendesse que eles estariam próximos ao local onde as pegaram. E agora, não só falou que Loren também havia sido pega, como estaria viva e presa, exatamente na sala ao lado. O torpor ocasionado pela bomba de gás que utilizaram para apaga-la, estava dissipando e Renee conseguiria sondar as pessoas presentes.

— Nossa, que selvageria! Não dá para rolar uma droga ou algo do tipo? Existem algumas bem eficazes, viu?! A gente acaba falando pelos cotovelos. É uma beleza! Até o que vocês não querem saber, a gente fala!

— Mas não é tão divertido.

Helen falou enquanto caminhava na direção da porta.

 “Se não tivesse bloqueado, talvez estivesse em outra situação. Só não entendi porque Loren não captou os pensamentos de Helen”. – Pensou.

Nesse momento, Renee expandiu sua percepção. O sentimento que permaneceu do homem calado ao lado da doutora, oscilava entre a indiferença e o desprezo. Mas a Helen, essa era um verdadeiro enigma. Seus sentimentos circulavam entre a apreensão, tensão, angústia e sentido de alerta.

Quando ficou sozinha, tentou mover seu polegar no intuito de desloca-lo e tentar escorrer sua mão através do vão da algema. Já havia feito isto antes, mas suas mãos se encontravam presas na mesma algema e não necessitara fazer a técnica na outra mão. Era um processo doloroso e ter as duas mãos lesionadas não ajudaria muito, mas se libertasse apenas uma, pensaria como poderia agir depois.

Concentrou-se para quando conseguisse deslocar, não demonstrar dor em seu rosto. Depois de alguns minutos, conseguiu. Fechou os olhos, pois a dor aguda permanecia irradiando através de seu punho intensamente. Juntou os dedos estendidos com muito esforço. A dor a estava deixando atordoada. Empenhou-se para tentar tracionar a mão através da algema. Conseguiu. Girou o polegar para que a articulação encaixasse novamente ocasionando outra dor aguda. Permaneceu com as mãos atrás da cadeira como se ainda estivesse algemada. Nada poderia fazer enquanto estivesse só. Talvez quando estivesse sozinha com um dos agentes, pudesse tomar uma ação em prol da liberdade.

Resolveu canalizar as suas energias para sondar a outra sala. Relaxou na tentativa de expandir sua percepção.

Percebia nitidamente o sentimento de três pessoas distintas na sala. A primeira pessoa tinha sentimentos fortes de frustração e recriminação.  A segunda pessoa que percebeu era de alguém objetivo. Alguém que gostaria de resolver a situação brevemente. E a terceira pessoa tinha um sentimento de obstinação misturado a ansiedade.

“Posso quase afirmar que é Loren a pessoa frustrada e Helen quem está ansiosa. As duas emanam bem os seus sentimentos”.

Algum tempo depois, percebeu que a pessoa frustrada se inundava com um sentimento de alívio e de esperança.

“O que é isso? Será que a frustração não era o sentimento de Loren? Por que sentiria alívio?!”

Poucos momentos depois, Helen entrava com o outro agente a reboque. Ela estava com as mãos vazias e o agente portava uma pistola automática de grosso calibre. Renee entendeu que, quem seria sua torturadora era a Helen, deixando o outro agente como suporte. Precisava agir rápido e de forma precisa.

Quando se aproximaram, Helen se postou à sua direita, pouco a frente de sua cadeira e o homem se posicionou ao lado esquerdo na mesma direção que Helen.

— Muito bem. Acredito que já teve tempo suficiente para pensar, agente Renee. O que vai ser? Com ou sem dor?

Helen deu um passo atrás se afastando ligeiramente. Foi a oportunidade para a agente da Organização agir. Levantou-se de súbito, tracionando a cadeira de metal, com a mão que ainda estava presa nas algemas e arremeteu sobre a cabeça do agente que acompanhava Helen, num ato contínuo. Antes mesmo do homem cair desacordado, a agente inimiga sacava uma arma, pegando-a na parte de trás da cintura. Renee segurou a cadeira com as duas mãos e impulsionou seu corpo sobre Helen desequilibrando-a, fazendo com que a arma caísse de sua mão.

Helen reagiu deixando seu corpo cair, arremetendo logo em seguida, uma de suas pernas sobre as pernas da agente da Organização, jogando-a ao solo. A agente da agência inglesa tateou em busca de sua arma. Pegou-a rapidamente.

— Pare, Renee!

Helen falava baixo apontando a arma para a fronte da outra.

Renee sabia que havia perdido, mais uma vez, por conta de seu amor por essa agente. Não conseguiu machuca-la. Não conseguiu imprimir toda a força que precisava para derrubá-la, verdadeiramente. Ainda a amava, apesar ter sua alma devastada pelas ações desta mulher sem coração.

— Você não poderia esperar só mais um pouquinho, não é?

— O quê?!

— Droga, Renee! Agora estamos encrencadas! Como vamos sair daqui depois do que fez?

— O que você está falando?

— Porra! Eu pensei que vocês podiam fazer coisas mirabolantes, como ler mentes e essas coisas. Merda! Como é que eu pude interpretar tão mal, as conversas de vocês sobre percepções?

Helen havia abaixado a arma e vasculhava os bolsos do agente caído. Retirou uma chave e veio em auxílio de Renee para abrir a segunda algema.

— Você quer explicar o que está havendo?

— O que está havendo agora é uma fuga desesperada. Graças a Deus eu te coloquei nessa sala sem câmeras. – Helen parou olhando-a profundamente. – Eu não ia te machucar… — Falou suavemente. — Quer dizer, não ia te machucar de verdade. — Voltou à tarefa de soltá-la. – Talvez uns três ou quatro socos…

Encolheu os ombros e terminou de abrir as algemas. Retirou apressadamente do bolso lateral de sua calça, uma “bomba de feixe” e mais uma pequena pistola, depositando na mão de Renee.

— Esse galpão tem quatro salas neste corredor e mais uma grande área que dá para fora através de uma porta de garagem. Loren está ao lado, presa do mesmo jeito que você estava. Prenda esse cara com algemas e…

— … Sei. Sei! Colocar uma mordaça nele para que não faça barulho quando acordar. Mas ainda não me respondeu.

— Não há tempo. Só posso dizer que o que fiz, foi para nos livrarmos da Távola definitivamente, mas você não se aguenta, não é?! – Olhou Renee irritada.

— Ah! Eu não me aguento? Se você não lembra, me traiu no exato momento que terminamos de transar! O que você acha disso?

— Para de drama que você não viu nada, apagou antes de pensar em qualquer coisa!

— E acordei com você apontando uma arma para a minha cabeça!

— O que eu posso fazer se sou melhor que você. – Encolheu os ombros. – Vamos parar com essa discussão e vamos agir logo. Vou até a sala de vigilância tentar desativar a câmera do corredor. Existem mais cinco agentes circulando por aí. Dê-me cinco minutos e vá libertar Loren. Teremos que sair daqui explodindo tudo, para que pensem que todos morreram, inclusive nós. Não poderá ficar nenhum traço de DNA. Agora “deixa eu ir”, antes que alguém venha ver o que está acontecendo aqui dentro. Depois que desligar a câmera, despistarei os outros agentes e seguirei para encontrar com vocês. “Me aguarde”.

Helen se virou para sair, mas retornou da porta e beijou Renee subitamente. Apartou-se e seguiu para o corredor.

— Cara, essa mulher está me enlouquecendo!

Renee falou para si sorrindo, com um novo alento na alma.

Após prender o agente, que ainda se encontrava desacordado, esperou mais uns minutos e abriu a porta. Espreitou o corredor e saiu, fechando a porta atrás de si. Foi rapidamente até a sala ao lado e experimentou abrir a maçaneta. Estava destrancada.

Viu Loren presa na cadeira e se adiantou para soltá-la.

— Já sabe o que está acontecendo ou preciso te colocar a par?

— Mais ou menos. Consegui “lê-la” quando esteve aqui. Mas uma coisa não encaixa. Como não conseguimos “percebê-la” até agora? Na verdade só consegui ler seus pensamentos em alguns poucos momentos, desde que estamos juntas. Isso não faz sentido.

Renee conseguiu soltar Loren e elas ficaram atentas, próximas à porta, cada uma de um lado.

— E o que é pior. Não sabemos se toda essa ação de Helen é verdadeiramente para nos livrar, Loren.

— Não é possível ela dissimular pensamentos. Eu os li com clareza desta vez, Re.

— E não seria possível ela bloqueá-los. A não ser que ela…

A porta se abriu e as agentes ficaram de prontidão. Helen colocou a cabeça para dentro.

— Vamos, rápido!

As agentes seguiram Helen pelo grande corredor. A agente da Távola entregou uma pistola na mão de Loren e caminhou na frente demonstrando confiança nas outras duas. Helen parou de frente a uma porta e fez um sinal para que as outras duas fizessem silêncio. Quando iria abrir a porta um estampido ecoou, logo após, um baque seco se ouviu no corredor. Olhou o corpo que caíra de cima de uma passarela próxima ao telhado de zinco. Retornou seu olhar para Renee em reprovação e segurou a maçaneta da porta, para que os agentes que estavam dentro, não saíssem.

— Não me olhe assim. Ele nos viu lá de cima e mirava um rifle em nossa direção. Deveria tê-lo deixado atirar em nós?!

Renee e Loren se juntavam a Helen para manter a porta fechada.

— Segurem aí!

— O que você vai fazer, Re?

— Não deixem essa porta abrir em hipótese alguma!

Renee retirou do bolso a bomba de feixe, acionou-a e jogou por um basculante que dava para o corredor.

— Você é maluca?!

Os agentes que estavam dentro da sala, tentavam abrir a porta com força. Elas precisavam contê-los por quatro segundos, antes que a bomba acionasse. Parecia uma eternidade, e, de repente tudo ficou calmo.

— Quantos faltam? – Perguntou Loren.

— Temos que abrir a porta. Tem um preso na sala, um morto por Renee e outro por mim que estava na sala de vigilância. Se tiverem três aí dentro, estamos no lucro.

Enquanto falava, Helen era auxiliada por Renee para abrir a porta. Os corpos estavam bloqueando o caminho. Quando conseguiram afastar a porta viram dois homens e uma mulher caídos no chão.

Helen passou a mão pelos cabelos e suspirou. Sua cabeça estava baixa e pela primeira vez, desde que começou a perseguição, as agentes da Organização viram uma genuína expressão de alívio em seu rosto.

— Esta quase acabando… Estou quase me livrando desse inferno…

— E agora? Você pode explicar o que aconteceu para sermos pegas pela Távola?

— Vamos. Vou contando, enquanto mando uma mensagem para o QG dando um alarme de fuga de vocês. Temos que fazê-los acreditar que houve uma ação aqui e algo saiu errado antes de explodir uma bomba de “fusão”. Eles têm que acreditar que todos nós morremos.

— E agora quem está maluca? Uma bomba de “fusão”?!

Elas caminhavam pelo corredor apressadamente para chegar até a sala de vigilância.

— Não é exatamente o que está pensando. Não é como uma enorme bomba nuclear. Ela é contraída em uma mínima partícula. Faz estrago, mas não é o que parece. Eu sei que toda vez que um grupo é designado para uma missão, nos dão pelo menos uma bomba de fusão, caso tenhamos que “limpar” um lugar, para não deixar qualquer vestígio. Contei com isso e acertei.

Entraram na sala de vigilância. O agente que Helen havia eliminado, estava jogado sobre a cadeira de frente para as telas de vigilância. Loren pegou o homem pelas pernas e Renee pelo tronco para retirá-lo, enquanto Helen assumia a tarefa de enviar a “falsa” mensagem. A doutora continuava explicando a sua ação.

 — Depois que fomos perseguidas na mata, vi que não haveria saída para mim, se não simulasse a minha morte. No entanto, teria que ser algo que não deixasse dúvidas. Foi quando entrei em contato com a Távola, lá na primeira cidade que paramos, após nossa escapada da mata. Disse a eles que atrapalharam a minha missão. Que eu havia atraído vocês para fora da Organização

— Deu a eles o nome real?

Durante a conversa, Helen continuava a digitar na imagem holográfica que se formara quando ela acionou o sistema de comunicação.

— Claro que não! Eles colocaram o nome da suposta sociedade que achavam que existia de “Cavaleiros do Apocalipse”. Adoram esse tipo de chavão! Mantive o nome. Não havia tempo na ligação para maiores explicações. Disse, então, que me manteria próxima a vocês e que a Távola mantivesse os agentes em nosso encalço, mas sem interferir, até a hora que eu desse o aval para que capturassem vocês. Bom, meu plano funcionou, até a Renee conseguir soltar as algemas precipitando a minha ação.

— Muito legal. Agora eu sou culpada por sua falta de cumplicidade? Se você tivesse partilhado conosco…

— Vocês não deixariam!

— E eu nem imagino por que!

Renee falou olhando a mensagem, que Helen digitava, à medida que conversavam.

— Do que você é capaz, Helen? – Perguntou Loren.

— Como assim, do que sou capaz?

— Eu sei que desconfia de nossas habilidades… conseguiu nos bloquear.

Helen parou e olhou para as duas momentaneamente. Voltou à tarefa de enviar a mensagem. Precisava se concentrar para que a missiva fosse convincente aos olhos da Távola.

— Na verdade, desconfiei em Paraty, quando da nossa fuga e reunindo todas as informações desde a Organização. Mas depois… bem, não pareciam mais que tinham algum sentido sensorial, como eu pensava. – Encolheu e relaxou os ombros. — Não fiz nada, pois não havia o que fazer. Depois que consegui falar com a Távola e vocês não interferiram e nem desconfiaram, achei que eu tinha divagado.

Loren tentou expandir seu dom. Os pensamentos de Helen afirmavam exatamente o que havia acabado de falar, mas mesmo assim, sabia que algo não estava correto. Tomou a decisão de se atentar mais às atitudes da outra mulher. Nada do que estavam vivenciando fazia sentido.

— Acabei. Vamos programar a bomba no meio do galpão. Tem dois Jeeps fechados lá fora, podemos escapar em um deles. Teremos que estar longe, pelo menos três quilômetros daqui. Essa bomba destruirá tudo numa área de dois mil metros quadrados.

— Pode atingir alguém inocente!

Disse Renee com irritação.

— Não será inocente se estiver aqui dentro. É uma propriedade particular e com avisos.

— Como sabe disso tudo a respeito da propriedade?

Perguntou Loren, já intuindo o que Helen responderia. Se a Távola tinha este espaço tão longe de suas atividades era porque, certamente, Helen que já havia planejado toda a sua rota de fuga, o tinha. Esse galpão não era da Távola. Era de Helen!

— Porque fui eu quem comprou esse galpão. Fuga da rota de fuga. Mais ou menos como Renee, que tratou de arranjar aquela cabana na mata. – Helen elevou e baixou os ombros indicando que não era nada demais. — Ok. Enviei a mensagem, só temos que detonar a rede de transmissão. Pode fazer isso, Re? Aí fico liberada para armar a bomba.

— Passa a senha de Rede. Você sabe?

Falou Renee, já assumindo o posto de transmissão. Helen passou a senha e saiu em direção ao galpão sendo acompanhada por Loren. A mentora da Organização não daria espaço para Helen, até que entendesse o que estava ocorrendo. Helen olhou para trás e viu uma metralhadora de precisão na mão de Loren.



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