A Organização

Capítulo 18 – A grande dor, um alento

— Aqui está melhor. — Renee falou enquanto ajudava Helen a se deitar na cama. — Mas vou passar um gel desinfetante na banheira antes de você tomar banho. Sabe se lá, quem esteve aqui e se limparam essa coisa direito.

Helen esboçou um leve sorriso, mas logo seu semblante voltava ao estado de dor. Loren entregava um comprimido para Helen e um copo d’água, enquanto tomava outro para aquietar a própria dor em seu pé.

— Deus! Será que essas balas continham veneno também? Como dói essa porcaria!

Renee voltava do banheiro.

— Loren, vá para seu quarto e descanse um pouco. Não poderemos ficar muito tempo. Comprei bastante itens para fazer os curativos seu e de Helen. Leve alguns com você.

— Helen vai ter que dormir um pouco, Renee, se quisermos que ela tenha condições de pegar um voo em breve. Não vamos poder levantar suspeitas no aeroporto. Por mais que eu consiga falar com nosso contato, pode ser que não consiga um avião da Organização a tempo, para nos levar direto, que seria o melhor. Sabe que nas condições de Helen, pegar um voo comercial levantaria suspeitas, mesmo que para nos levar a um aeroporto, em que pudéssemos pegar nosso avião particular.

— Eu sei, mas me preocupa ficar tempo demais aqui. Se ficarmos mais de dois períodos, também vamos levantar suspeitas. As pessoas vêm só para descansar e vão embora. Não ficam mais que o tempo de dormir.

— Sim, mas pelo menos doze horas podemos ficar e daremos tempo ao contato de tentar um avião para nós, além de Helen se recuperar um pouco.

Renee suspirou. Não gostava da ideia de permanecer naquele lugar. Eram muitas variáveis. A polícia fazendo bloqueios, a Távola poderia não ter engolido o embuste que armaram, estavam sem qualquer documento e ainda tinham a mesma aparência e digitais de quando saíram de Paraty. Suspirou novamente antes de responder a mentora.

— Ok. Vamos nos cuidar, descansar e comer. Nem lembro qual foi nossa última refeição. Tem blusa limpa, calcinha, sutiã, meias para amanhã e um short para dormir dentro daquela sacola. Leve também as coisas para seu banho e higiene. Comprei para nós todas.

Apontou em direção a mesa, onde as sacolas haviam sido depositadas. Loren pegou os itens.

— Obrigada, Renee. Tô me sentindo cansada. Um bom banho e tirar essa roupa vai dar uma aliviada.

— Fique com o mobile. Se algo acontecer, você terá mais condições de fugir. Eu ficarei com Helen.

Loren assentiu com a cabeça, pois sabia que não adiantaria retrucar. Renee não deixaria Helen para trás.

— Vou dividir o dinheiro, então. Vocês ficam com uma parte e eu com outra. Levarei uma pistola e uma metralhadora para o quarto também.

— Ok.

Depois que Loren pegou tudo, saiu em silêncio. Renee foi até o banheiro e desligou a água que enchia a banheira. Testou a temperatura com a mão e viu que era agradável na pele.

Ainda sentada na borda da banheira, a agente expandiu sua percepção. Queria sondar as pessoas que estariam nos quartos próximos para garantir que não havia um perigo imediato.

O primeiro sentimento que a tocou foi de sofrimento e aflição. Estava muito próximo. Soube que era Helen que emanava tal sentimento e lhe causou uma grande dor no peito. Se concentrou mais, para ir além das paredes de seu quarto e direcionou para o quarto ao lado direito. Não poderia deixar que os sentimentos de Helen a fizesse perder a objetividade. Conseguiu chegar a alguém que estava sereno, levitando em seus pensamentos. “Esse está dormindo tranquilamente. Na certa veio descansar para seguir viagem”. — Pensou. — Voltou sua sondagem para o quarto do outro lado. Havia duas pessoas diferentes e uma carga altíssima de excitação. Interrompeu o elo imediatamente.

— Ô! O bicho está pegando aí do lado. – Sorriu consigo mesma.

Seguiu até o quarto e viu Helen dormindo. Não queria acordá-la, mas também não poderia deixa-la sem se banhar e sem tratar os ferimentos. Aproximou-se e tocou suavemente seu rosto, contemplando-o com carinho.

— Ei! – Sua voz era baixa e suave. – Vamos tomar um banho?!

Helen abriu os olhos sentindo o toque suave da agente. Olhou em seus olhos e eles expressavam carinho e preocupação, emocionando-a.

— Sua pervertida. – sorriu jocosa. – Quer se aproveitar de uma mulher indefesa?

Tinha a voz abafada, mas fez com que Renee gargalhasse diante da troça.

— Você não tem jeito mesmo. Nem com um furo no ombro consegue segurar sua ironia, não é?

Falava carinhosamente e mantinha o afago no rosto da ex-agente da Távola.  Pousou seu olhar no ferimento e permitiu que a tristeza a invadisse, pela primeira vez, depois da fuga.

— Oi.

Helen chamou a sua atenção, pois via onde iam os pensamentos da outra.

— Obrigada. – Disse Helen.

— Pelo que?

— Por vir atrás de mim, por me ajudar a despistar a Távola e por voltar para me pegar. Poderia ter deixado que eu fosse embora da Organização e não ligar para o que me acontecesse depois. Também, poderia ter me deixado para trás, quando fui alvejada.

— Eu…

Renee queria falar que estava amando. Que era apaixonada por ela, mas teve medo.

— Você?

A agente da Organização recuou em seu ímpeto. Não poderia expor sua alma. E se Helen estivesse impressionada com a figura de Mila? Ela ainda tinha a aparência de “Mila Ortiz”. Perguntava a si mesma, se Helen gostaria dela novamente como Renee Marquez, ou se já havia substituído a imagem pela da sua personagem.

— … eu vou ajudá-la a levantar. Vamos tirar essa roupa suada e vamos tratar desse ferimento após seu banho.

Percebeu um sentimento de decepção emanando de Helen, mas pensava que era melhor assim. Preservava a si e a própria Helen de ter que mais a frente, enfrentar a aparência de Renee. Poderia cair na consciência de um engano, quando voltasse a ver a sua real aparência.

Apoiou-a para que se levantasse e caminharam até o banheiro. Helen olhou a banheira convidativa.

— Deixei a toalha em cima da bancada para não ter dificuldade de pegar. O sabonete está no anteparo da banheira. Se precisar de ajuda, é só chamar.

Renee já se virava para sair do banheiro, quando escutou Helen chama-la.

— Renee.

— Sim! – Voltou-se para ela.

— Não acredito que alguém que tenha enfrentado tudo com objetividade, consiga achar que posso tirar minha própria roupa, com esse ombro que não posso mover!

A agente se sentiu estúpida em sua intenção de não invadir a privacidade da outra.

— É… Desculpa, realmente não me liguei. Eu queria te deixar à vontade. Mas vamos lá.

Renee retornou para o banheiro e começou a ajudar Helen a tirar a camisa. Ela desabotoava com cuidado, pois a camisa havia aderido nas bordas da perfuração que a bala havia feito. Após ter aberto todos os botões, se posicionou atrás de Helen, puxou cuidadosamente pela gola para que a camisa escorresse pelo tronco da ex-agente da Távola. Helen retirou o braço sadio da manga e girou o corpo para facilitar o desprendimento do tecido de suas costas.

— Acho melhor pegar um “filtro antisséptico para passar nas bordas do tiro. Do jeito que está, vamos acabar retirando a pele cicatrizada.

A agente da Organização recolocou a outra parte da blusa sobre os ombros de Helen e foi ao quarto, voltando com o material para limpar o ferimento.

— Senta aqui na borda da banheira.

— Não está doendo tanto. Loren me deu um analgésico. Você comprou um bichinho forte mesmo.

Renee sorriu.

— Eu imaginei que, isso aí, devia estar bem dolorido.

Renee falava com brandura, enquanto passava o filtro sobre as bordas para descolar o tecido.

— Na verdade ele queima. Nunca fui alvejada por uma bala destas.

A voz de Helen se tornava mais suave também. Estava exausta, no entanto, sabia que deveria limpar bem o ferimento e aplicar um gel cicatrizante, antes que pudesse relaxar para dormir.

— Se tivesse sido alvejada antes, provavelmente não estaria aqui. Esses “drones” não costumam deixar sobreviventes.

— Loren fez um bom trabalho com aquela metralhadora. Eles estavam loucos tentando desviar dos tiros.

— Pronto. Aqui na frente o tecido soltou. Vire.

Helen levantou-se e virou de costas para Renee. Fez-se silêncio. As duas agentes se perderam em seus pensamentos. Pela primeira vez estavam, uma diante da outra, sem as máscaras, que permearam o relacionamento das duas desde o princípio.

— Prontinho. Aqui soltou também.

Renee jogou no lixo, o material que usara para limpar a pele ferida. Segurou a gola da camisa, tentando deslizá-la suavemente para baixo, na intenção de retira-la, sem que a outra precisasse mover o braço. Este gesto fez com que a camisa roçasse levemente sobre a pele de Helen, arrepiando-a. Renee permanecia atrás da ex-agente da Távola e olhava o dorso desnudado, revelando a magnífica obra esculpida que era seu corpo.

— Renee.

— Sim.

— “Me abraça.”

A vontade da agente era dizer; “sim, eu abraço”. Mas não queria machuca-la e muito menos, se aproveitar de uma fragilidade. Helen passava segurança, mas ela, Renee, sabia que a agente estava abalada com a saga que tinha transformado sua vida.

— Helen, você deve estar sentindo dor. Seu ombro está…

— Renee, por favor. Quase fomos mortas duas vezes, desde que saímos da Organização. Minha vida está uma bagunça, e eu, nem mais sei quem sou de verdade. Você é a única coisa de bom que surgiu dessa loucura.

Helen suspirou exausta e Renee se perguntava, se podia arriar suas barreiras tão cedo. Estavam tentando sair do país e retornar à segurança da Organização. Completando o quadro, ainda havia a última ação da ex-agente da Távola, que as colocou dentro do olho do furacão.

Helen voltou-se de frente. Estava apenas de sutiã e calça. A agente da Organização elevou uma das sobrancelhas e com um pequeno sorriso cínico, perguntou:

— Deram estas roupas para você quando denunciou a gente?

— Renee! Tá, entendi. Pode ir para o quarto. Sei que não confia em mim.

Helen enquanto falava, virava de costas novamente e se esforçava para abrir o cinto e o zíper da calça.

— Ei, calma! Só estava brincando.

Havia provocado a outra e se arrependia. Na verdade, não desconfiava mais dela. Desde que acordou naquela sala, não bloqueara mais seu dom. Havia desconfiado sim, no entanto, cada vez mais, sentia que a outra estava realmente imbuída na ação sair das garras da sua antiga agência e se tornar livre.

Aproximou-se e enlaçou a cintura da agente por trás, delicadamente, pousando suas mãos sobre a mão da outra, que tentava com sacrifício desatar o cinto. Helen retesou seu corpo a princípio, mas a suavidade e o carinho demonstrado por Renee, a desarmou. Deixou seu corpo apoiar de lado no corpo da agente, protegendo a lesão e sua cabeça apoiou em seu ombro. A agente da Organização terminou de abrir sua calça, ajudou-a a levantar e deixou que a calça caísse no chão. Ainda enlaçada em sua cintura, conduziu para que ela desse um passo atrás, se desvencilhando completamente da peça de vestuário.

— Agora vamos tirar isso aqui.

Renee falou abrindo de pronto o fecho do sutiã.

— Acho que ele não vai mais servir.

Falou vendo a peça inutilizada pelo tiro. Uma das alças estava arrebentada.

Baixou ao nível do quadril, sem permitir que seu corpo rompesse o contato com a pele de Helen. Segurou as laterais da pequena peça rendada, que cobria o sexo da agente e desceu até que estivesse aos seus pés. Helen levantou uma perna permitindo que Renee a retirasse em um dos lados, se apoiou sobre ela, e em seguida, elevou a outra, deixando a agente da Organização retira-la completamente.

Renee subiu novamente e voltou a abraça-la por trás.

— Vamos tomar um banho, porquinha?

— Ei, olha o abuso. – falou sorrindo. — Já matei por menos que isso.

— Acredito. E era cara bom ou cara mal?

Helen a olhou com pesar sobre seus ombros. Deixou-os caírem em desânimo.

— Na maioria dos casos, não sabia quem era. Tinha uma missão e cumpria. Às vezes, eu questionava por que os caras estavam na nossa mira, mas diziam que, quanto menos soubéssemos, melhor seria para nós. Isso começou a me incomodar muito.

Renee viu o grande desconforto da ex-agente da Távola ao falar de suas antigas atividades. Apressou-se em desfazer o incômodo.

— Não importa mais. Se tudo der certo, estará livre disso, com novas perspectivas e com sua identidade de volta. Agora, já para dentro da banheira. – Falou insinuando uma pequena repreensão. – Percebi que não gosta muito de água…

Helen sorriu pela brincadeira despretensiosa. Entrou na banheira e foi descendo o corpo aos poucos para se acostumar com a água. Renee a amparou, colocando a mão em suas costas, dando segurança para que a agente recostasse completamente na banheira. Era uma imagem pela qual Renee poderia passar sem tê-la gravada em sua mente. O corpo de Helen despertava a luxúria da agente da Organização. No entanto, nesse momento, ela recriminava por não ter conseguido proteger a ex-agente da Távola.

— Arde muito? – Renee perguntou suave.

— O suficiente para o analgésico não fazer mais efeito.

— Eu sinto, mas vamos ter que limpá-lo. O gel cicatrizante que comprei é anestésico também e bem forte. Deverá dar alívio assim que o passarmos.

— É, eu vi qual foi o gel que você comprou. Já o utilizei. Anseio desesperadamente por ele, porque essa droga tá um inferno para suportar.

— Vou te ajudar com o sabonete.

Renee passou o sabonete por uma esponja macia que ganhara ao comprar os kits de banho na farmácia. Após embeber a esponja na água, deslizou-a pelas costas da ex-agente da Távola. Os movimentos circulares que executava com a esponja sobre o dorso, foram relaxando o corpo à sua frente. A espuma se formava sobre as costas de Helen fazendo com que a esponja deslizasse delicada.

— Quando estávamos na cachoeira e que ficamos durante um tempo grande sob as águas, parecia um tormento depois de um tempo. Agora, a água em meu corpo, está sendo uma das melhores sensações que tenho nos últimos dias. – Helen sorria enquanto falava.

— Pois eu acho que a sensação da água escorrer pelo meu corpo depois de ter me arrastado por aquele esgoto em Paraty não vai ter comparação por muito tempo.

A ex-agente da Távola gargalhou diante da observação da outra agente, mas logo contraiu o rosto em dor. Renee não podia ver seu rosto na posição que se encontrava e rapidamente Helen se aprumou continuando a conversa.

— Tem razão. Aquele chuveiro mirrado naquela cabana, parecia ser uma ducha maravilhosa naquele momento.

— Já passei por poucas, mas esgoto foi a primeira vez. Você não tem noção do nojo que senti.

As duas estavam descontraídas. Helen pegou a esponja da mão de Renee para terminar de passar pela frente de seu tronco e por suas pernas. Além de sentir dor, não queria que a agente da Organização tocasse da forma delicada a pele pela frente, como vinha se dedicando na lavagem de suas costas.

— Você poderia lavar meu cabelo? Acredito que isto eu não consiga fazer sozinha nesse momento.

–Ok. Vou pegar o xampu.

****

— Ai!

— Já estou acabando e não posso ter pena de você Helen. Tenho que introduzir o gel profundamente na perfuração.

— Eu sei. Eu sei, mas dói. Deixa eu gemer, tá.

Renee introduzia a extremidade do aplicador no centro do orifício, pela parte da frente, apertando o êmbolo, para que o gel chegasse o mais profundamente que pudesse.

— Sabe que até deu sorte de ser esse tipo de bala? Como ela entrou cauterizando, o diâmetro do furo está bem pequeno. Tá no mesmo diâmetro da bala.

— Percebi isso também. Se fossem as comuns, eu estaria sem ombro a essa hora. Ela sairia rasgando todo tecido. É estranho pensar nisso, pois são tão letais quando os drones disparam certeiramente. Torcemos tanto para que não utilizem esses bichinhos em missão e no meu caso, foi o que me ajudou.

O gel já fazia efeito, pois Renee havia passado na parte de trás da perfuração, por onde a bala havia saído, e Helen não sentira muito a introdução do aplicador.

— Como se sente?

— Bem melhor. Valeu, por ter comprado esse “garoto”.

— Sabia que tinha que comprar alguma coisa à base de “phobetfina” com nano condutores enzimáticos, senão, não moveria o braço até chegarmos na Organização. Tive medo que não vendessem sem receita.

— Hoje em dia? – Helen riu. – Se vacilar vendem até “Dionísio” como remédio.

— Acho inacreditável que tantas drogas como essa conseguem ser comercializadas com tanta facilidade.

— Renee, sei que isso é algo que te incomoda muito, mas acho que o fato de vocês se isolarem, traz uma falsa ilusão de que a humanidade pode ter salvação. Se querem ajudar, ajudem, mas com a intenção de que o que fazem, vai auxiliar em parte, mas não o todo.

— Entendo o que diz, mas não importa. Quero morrer pensando que fiz algo decente e não concordar com o senso geral.

— É isso que digo. Faça a sua parte para o bem, mas sem a ilusão de que a coisa vai melhorar de imediato. Talvez, quem sabe, daqui há alguns séculos, o trabalho da Organização venha a surtir efeito pela persistência. Mas de agora em diante, a Organização terá que se cuidar muito mais. Se a agência inglesa já desconfiava, outros virão. Principalmente depois de mim, e, depois que a desconfiança deles se tornou uma certeza.

— Bom, agora a nossa preocupação é descansar para sair daqui inteiras. Amanhã seu ombro estará bem melhor e fechando esse buraco. Daqui há dois dias haverá somente uma cicatriz. Se o poder de morte aumentou com armas mais letais, o de cura também.

— Engraçado que quando fui treinada, me falavam para matar com um tiro na cabeça e logo depois, disparar outro no coração. Isso diminui a possibilidade de reanimação e de tratamento de regeneração celular. É incrível como nos enredamos e passamos achar o assassinato uma coisa tão normal.

— “Me” responde uma coisa, você não tem cicatrizes em seu corpo. Provavelmente você fez reconstrução epitelial em seus ferimentos, mas tem uma cicatriz grande do lado direito do abdômen. Por que?

Helen sorriu e divagou na lembrança do que ocorreu quando acordou no hospital da agência sem saber quem era. Tinha uma enorme cicatriz, que disseram ter sido um estilhaço da explosão no metro quando perdeu seus pais.

— “Me” falaram, quando acordei no hospital da agência, que era de um estilhaço que havia introduzido no meu abdômen, quando da explosão terrorista no metro. Nunca quis tirá-la para ter a lembrança, de algo que não lembrava, não sei porque. Hoje nem sei mais se foi verdade…

— Bom, se quiser lembrar, quando voltarmos, podemos ajudar, mas apenas se quiser.

Renee já havia guardado tudo, nas duas bolsas de armas, que permaneceram com elas. Caso precisassem sair às pressas, poderiam pegá-las sem dificuldades para levarem na fuga. Helen a olhava enquanto revisava os materiais.

— Ensinam-nos a sermos metódicas também. Às vezes, sinto a necessidade de bagunçar as coisas na minha vida. Não sei se tenho perfil para uma sociedade tão certinha quanto a Organização. Gosto de bebedeiras de vez em quando. Gosto de pequenas contravenções, eventualmente. Gosto de liberdade de expressão.

Renee sorriu levemente. Seu sorriso permeava certo mistério.

— Vejo que passamos uma ideia errada a você, de como somos.

A ex-agente da Távola estreitou os olhos tentando entender o que Renee falava.

— Sabe o perfil que viu de Mila Ortiz?

— Tá. Sei que você sabe que fuxiquei a respeito na internet. Continue.

— Tudo que leu sobre ela, é meu perfil, com algumas alterações, lógico, mas o perfil é o meu. Fui presa por maconha na juventude e também mais à frente, já na Organização, por brigar em uma boate. Esquentei na carceragem, um dia apenas nessa prisão, pois tinha sido “a minha primeira infração”. Estava em Sevilha na época. Tá certo que minha identidade em Sevilha era outra. Também morei três anos com uma mulher lá na Espanha.

— Gostava dela? – A voz de Helen vacilara levemente.

— Sim, gostava. Hoje não sei se a amava. Acho que não, pois quando ela me corneou…

— Ela te chifrou?

— Sim. – Renee sorriu novamente. – Mas quando o fez, sentia que a coisa já tinha desandado. Não me importei. Peguei minha mala e sumi.

— Não teve mais contato com ela?

— Travamos muitas conversas por vídeo depois. Ela se sentia só quando estávamos juntas. Sabia que eu era “pesquisadora” e eventualmente eu “desaparecia”. Para ela, pelo trabalho de paleontologia, mas na verdade, eu estava em missões que assumia pela Organização.

— Ela não sabia da Organização?

— Helen, sabe que nós só chamamos alguém, depois de muita observação. Não é porque alguém se apaixona, ou trava um relacionamento, que essa pessoa é merecedora da confiança de uma comunidade inteira. Como disse anteriormente, muitos da Organização moram além dos “muros” e tem vidas comuns. Trabalham em suas áreas, vivenciam as próprias vidas, mas suas famílias, muitas vezes, farão parte, ou não. É um problema para nós isso? Claro que é. Mas é a nossa garantia de sobrevivência. Nunca falei a você que não tínhamos problemas. Temos muitos. Toda sociedade tem, pois somos humanos, cada qual com suas características e com seus anseios. Mas a verdade, é que o único princípio primordial que nos mobiliza, é o respeito e a vontade de uma sociedade mais equitativa. É a única coisa que nos fortalece e baliza.

— É uma dualidade constante.

— Mas no mundo não há dualidades? As pessoas não assumem máscaras o tempo todo nesse mundão à fora? E não são poucas as máscaras, são muitas. E essas máscaras que todos assumem, são melhores do que as nossas por que? Não quero julgar ninguém. Não sei o que leva determinadas pessoas a agirem de uma forma ou de outra. Só não quero morrer com a pobreza da mesquinhez dentro de mim.

Renee falava com tranquilidade e calma. Depois de sua missão na Rússia, pela primeira vez depois do período que conhecera Helen, teve consciência que havia reencontrado seu norte. Não falava com a passionalidade que tinha incorporado na época do retorno à Organização e seu coração adquiria a quietude novamente.

Helen a olhou contemplativa. Era como um “insight”.

— Eu tenho muitas máscaras…

— Você tem lapsos de memória. Só saberá de suas verdadeiras máscaras, quando lembrar de tudo na sua vida.

Renee viu no rosto de Helen estampar o cansaço, não o físico, mas de uma luta, que travava constantemente contra algo inefável.

— Bom, vamos pedir algo para comer e depois temos que dormir, para saber o que faremos amanhã.

Helen anuiu, grata. Sua energia emocional estava quase no fim.



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