A Organização

Capítulo 19 – Incertezas

— Bom dia.

Loren entrava, depois de Renee abrir a porta.

— Bom dia, Loren. Está animada por quê? Conseguiu falar com seu contato?

— Consegui e ele tentará um voo direto, mas teremos que nos atrasar um pouco. Provavelmente, o avião estará pronto e liberado só à tardinha. Estão me enviando também, informações das estradas e dos bloqueios. Parece que já passamos da zona crítica, mas pelo noticiário que vi hoje de manhã, podem estender.

— Estender os bloqueios? Por que?

Loren olhou para Helen e sorriu. Esta devolveu em um sorriso aberto.

— Você sabia que a bomba de fusão é utilizada só pela Inglaterra, pela Ucrania, Criméia e Nova Rússia? – Perguntou Loren para Renee. – Eles raramente utilizam por ser de fácil identificação e não ser utilizada pela maioria dos países.

Renee olhou para Helen, balançando a cabeça e gargalhando.

— Não acredito que você teve coragem de fazer isso, Helen.

Voltou a gargalhar, arrancando riso das outras duas.

— Não precisávamos que eles parassem de nos perseguir? Agora terão que explicar o que estavam fazendo em terras brasileiras e explodindo bombas por aí. Não acredito que falem de uma agente fugitiva e de uma operação para descobrir uma sociedade secreta.

— Pelo noticiário, os governos da Ucrania, Criméia e Nova Rússia, se pronunciaram atestando oficialmente que não foram os autores.

— Helen, isso pode gerar uma crise política internacional. – falou Renee.

— Com o governo brasileiro acho pouco provável. A Liga Internacional de Comércio vai colocar panos quentes, mas é provável que o Rei tenha que se explicar com a Liga.

Loren não parava de rir.

— E como eu fui ingênua. Do jeito que falou lá no galpão, achei que muitos usavam essa porcaria por aí. Você não falou nada para que não discutíssemos com você, não foi?

— Havia tempo para discussões?

As três voltaram a rir. Os ingleses deveriam estar loucos e a “Távola” devia estar em maus lençóis perante a agência e a coroa.

— Você é mais maluca do que eu pensava…

— Eu falei que, às vezes, gostava de bagunçar um pouco a vida.

— É. Só que a nossa fuga agora tá um pouquinho complicada, não acha?

— Só um pouquinho.

Helen mostrou o dedo polegar e o indicador quase fechados, insinuando o quão pequena a dificuldade para a fuga delas havia se tornado.

— Mmm… Sei. Bom, mas queria dizer, que por mim, saíamos daqui agora. Não acho que devemos esperar mais, pois se há a possibilidade de estenderem os cercos até aqui, deveríamos nos adiantar. Podemos chegar nas cercanias de Poços de Caldas e nos escondermos novamente em um motel. Pelo menos não esquentamos aqui e já estaríamos bem perto.

— Eu concordo.

— Eu também e temos novamente nosso mobile atualizado online para nos orientar. Também conversei com Ruth e ela falou que teremos muitas novidades quando chegarmos. Não quis adiantar nada, mas eu também não queria me estender na comunicação.

Loren baixou ligeiramente a cabeça e inspirou fundo, chamando a atenção das duas.

— Empreiteiro foi pego.

— O que?

— Vocês falaram desse empreiteiro antes, mas quem ele é?

— Ele era um de meus contatos e era quem ficava de vigia no meu suposto “atelier”. Era ele quem você via, com uma equipe, fazendo a obra.

— Quando eu fiz o acordo, não me falaram que tinham pego ninguém.

— Provavelmente estavam “cozinhando” você em banho-maria. Não acha que iriam confiar novamente em você incondicionalmente?

— Não achei. Só temos que saber se ele ainda está vivo e em poder da Távola.

— Já sabemos. Ele não está vivo. Quando ele entrou em contato, estava em fuga e sendo perseguido. Falou que não conseguiria escapar e que “finalizaria”.

Helen não entendeu e Loren prosseguiu em sua explicação.

— Quando dizemos que vamos “finalizar”, é que nós nos lançamos diretamente contra o nosso oponente e para detê-lo. Normalmente, é uma ação suicida para que consigamos anular o oponente. Essas ações normalmente terminam em morte dos dois. Ruth escutou um barulho de freio brusco do carro e logo em seguida um outro grande barulho, como uma colisão. A transmissão caiu logo a seguir.

— Não sei nada dele. Ele tinha família?

Perguntou Renee com tristeza na voz.

— Ainda não sei, Re. Ele não fazia parte de meu grupo de agentes. Ele era do grupo de Chivalrous. Quando chegarmos, saberemos.

Renee anuiu com a cabeça e Helen se sentiu incômoda. Quando estava na Távola, não tinham contatos maiores com os outros agentes e falavam apenas em baixa. Nunca se referiam a uma morte entre os agentes de forma pessoal.

— Bom, vamos nos adiantar. Coloque suas coisas no carro, enquanto eu e Helen tomamos o café da manhã. Até o almoço já estaremos no nosso destino, se tudo for bem.

****

Mais uma vez, Loren indicava um motel na estrada, pouco antes de Poços de Caldas. Passaram pela estrada sem problemas.

— Renee, vou deixa-las no motel e vou à cidade comprar algumas roupas para viajarmos. Nossas roupas estão um traste e chamaríamos atenção. Apesar do avião ser particular, temos que passar pela imigração do aeroporto. Tentarei falar com meu contato para conseguir passaportes, nova identidade e nova carga de material bioaderente. Se não conseguirmos isso, teremos que esperar, pelo menos, os passaportes e rezar para que a imigração de voos particulares não seja tão exigente aqui. Se ele conseguir o material bioaderente, comprarei uma impressora 3D.

****

— Quer me ajudar a me banhar?

Helen perguntava com um ligeiro sorriso em seus lábios.

— Acho que já pode se banhar sozinha, não acha?

— Nossa! Esperava um pouco mais de solidariedade vinda de você.

Renee baixou a cabeça, meneando-a em negação. Sorria levemente também.

— Temos que ficar atentas, Helen. Não podemos nos distrair.

— Está dizendo que sou uma distração para você?

— Estou falando que nos distraímos, mutuamente.

Helen se virou de cabeça baixa, caminhando em direção a porta do banheiro. Ainda de costas, disse num tom baixo, quase falando para si mesma:

— Ainda tem prevenções contra mim. Nosso último contato amoroso deixou algumas sequelas, não foi?

Passou pelo portal entrando no banheiro, ainda de cabeça baixa. Renee suspirou. Era verdade que não queria se entregar a seus sentimentos pela ex-agente, enquanto não tivesse plena certeza de que Helen estaria ao lado da Organização. Ainda tinham que sair do país e mais uma surpresa com a doutora, não estava em seus planos. Suspirou novamente indo em direção ao banheiro. Parou e encostou na porta, vendo a doutora sentada na borda da banheira, retirando o curativo do ombro na parte da frente.

— Você não pode me culpar, certo?

Aproximou-se de Helen, retirando o curativo pelo lado das costas e observando o ferimento.

— Está ótimo, mais uma aplicação e só restará a cicatriz.

— Eu já movimento o braço completamente. Basta saber se ficou alguma sequela motora.

— Quando chegarmos, você passará por uma avaliação médica e aí, poderemos ver o que há para ser consertado.

— Você falou como se eu fosse um daqueles robozinhos voadores que atiraram em mim.

Renee sorriu.

— Vamos combinar que, hoje em dia, consertamos quase tudo. Até as pessoas.

— É. Mas nem todo mundo tem dinheiro para ser “consertado”, aliás, quase ninguém tem dinheiro para isso.

— Mas você terá assistência.

— Ainda não entendo como conseguem tantos recursos.

— Do mesmo jeito que qualquer governo. Com impostos que pagamos, só que a diferença, é que nossos impostos são traduzidos em benfeitorias para todos.

— E quem não mora lá?

— Já disse que quem não mora, é por opção, mas paga também uma taxa e tem revertido em benefícios, mas onde mora. Coisas como planos de saúde por exemplo. Tem também assistência em tudo que precisar para si. Se ficar desempregado, a Organização, através de seus contatos, arruma um novo emprego e enquanto estiver sem, tem assistência. Veja, isso é o que deveria ser, quando se paga impostos e não o que vemos hoje, por todo lado. Onde os governos não administram e não tem vergonha de explorar o seu próprio povo.

— E não rola uma corrupção? Acho pouco provável.

Renee riu da postura sempre cética e questionadora de Helen.

— O que está rindo?

— De você. Você sempre viu tanta coisa errada, que acaba achando que isso é natural e não o contrário.

— O ser humano é corrupto, Renee.

— Onde você sempre viveu, sim. Mais uma vez, eu lembro a você, que não chamamos qualquer pessoa para a Organização. É discriminação? Não. Só não queremos contaminar o que está indo bem. Com o tempo, quem sabe, mais e mais pessoas possam disseminar essa cultura do respeito, solidariedade, bom convívio social que tentamos resgatar. Quem sabe um dia não precisará mais haver uma sociedade chamada Organização e o mundo estará tão mudado, pois cada vez mais e mais pessoas contribuindo para a melhoria social, torne desnecessário.

— Vocês abririam mão de tudo?

— Não estaríamos abrindo mão. Simplesmente o objetivo teria sido atingido. Se a Organização estiver estabelecido como país oficialmente, apenas cuidaríamos de nossa vida. O resto seria por conta dos outros governos que, possivelmente, estariam mais estáveis, sem a degradação que hoje prevalece.

Helen ficou calada um tempo enquanto retirava o resto de sua roupa, pensando no que Renee falava.

— Ok. Já estou pronta para o banho e depois é só passar o gel.

Renee sorriu diante da desinibição da outra mulher.

— Ou você é muito despojada, ou está querendo me provocar. Não podia ter deixado eu sair do banheiro para se despir de vez?

Helen olhou para ela de lado, sorrindo.

–Mmm… vejamos… Não. Pois eu quero que tome o banho comigo e quero lhe provocar, pode ser?

A ex-agente da Távola precipitava sua mão sobre a roupa de Renee tentando retirá-la. A agente da Organização se esquivou.

— Helen, por favor. Você tinha razão quando falou sobre eu não confiar. Não depois do que fez nos entregando.

— Eu tinha um propósito com aquilo, acredite você ou não, foi o que nos salvou. Eu sabia que eles não largariam a perseguição. Não consegue perceber com esse, “não sei lá o que”, que vocês têm?

— Esse “não sei lá o que”, não acontece de forma linear, além do mais, não fico utilizando esse “não sei lá o que”, indiscriminadamente.

Renee não queria falar claramente do dom que ela e Loren possuíam, pois não entendiam como Helen conseguia bloqueá-las, sem ao menos ter consciência sobre o fato. Poderia ser algo natural, mas também, poderia ser algo induzido pelas experiências que a agência inglesa fez com ela. Não discutiria nada, até que pudessem saber o que ocorria com a doutora.

— Tudo bem, desisto, mas saiba que estou magoada com você e se mais à frente quiser algo, terá que rebolar para conseguir. Quando me chateio sou teimosa. – Falou cínica.

— Bom, que você é teimosa eu já percebi.

— Olha quem fala. A rainha da maleabilidade.

Riu de suas próprias palavras num tom de troça.

Estavam novamente se desafiando e para Renee, isso era pior que uma tentativa de sedução comum. Gostava desse jogo de provocações que permeou o relacionamento das duas desde o princípio. Atiçava sua libido. Sorriu.

— Só com você que tenho que ser dura e parar seu ímpeto de autodestruição. Sabia que cuido de quem eu gosto?

— Sei. Também se pudesse, me algemaria na cabeceira da cama, só para me proteger, não é?

Helen falava de forma espirituosa. Ainda estava nua diante de Renee. Nesse momento, a agente da Organização, não achava mais tão simples, tê-la à sua frente tão próxima, com seu corpo ao alcance de suas mãos. Saiu de seu transe pigarreando, quando se imaginou, tocando a pele de Helen e trazendo para junto de si. Deu um passo atrás, girando seu corpo e retornando ao quarto, findando a conversa que perturbava o controle que havia se imposto perante a doutora.

Helen suspirou forte, passando as mãos pelos cabelos. Queria reconquistar a confiança de Renee, porém entendeu que a sedução não seria o caminho, como havia imaginado. Suas ações anteriores, haviam acabado com a possibilidade de utilizar esse subterfúgio para reaver, não só a confiança, mas também o bem querer da agente, por ela. Não a julgava por isso. Seria um milagre que Renee ainda continuasse a apoiando, depois de ter invadido seu espaço na Organização querendo desmascarar a sociedade em que vivia. Também havia posto uma arma em sua cabeça em Paraty e a algemou.

“Mas ela queria o que? Eu não sabia quem era ela e não podia confiar em ninguém. – Pensou. – É. Mas depois eu transei com ela para entrega-la para a Távola e ela não sabia de minhas intenções”.

Inspirou fundo e logo a seguir, soltou todo o ar de seus pulmões se resignando.

“É, Lana, quem vai ter que rebolar para ter a confiança dela de volta será você”.

Em seus pensamentos, utilizou o nome que achava ser o seu, desde que acordou do coma há alguns anos. Causou-lhe estranheza, mas Helen também, não satisfazia mais seu íntimo. Sua vida estava em um limbo e um espaço oco se fazia presente dentro de si.

“Merda! Eu “tô” mais perdida que ruínas no deserto. Odeio essa sensação. Será que posso confiar nela e na Organização também? É tudo tão maravilhoso e, ao mesmo tempo, tão ilusório, tão paradisíaco! Céus! Permita que eu consiga pensar com clareza. Eu quero tanto que seja real…”

****

Estavam sentadas sobre a cama assistindo o noticiário, quando ouviram batidas na porta, tirando as duas de seus devaneios. Depois que Helen e Renee se banharam, assumiram uma postura introspectiva e incomoda para ambas.

— É Loren. Deixa que eu atendo.

— Como sabe que é ela? Ah, tá. Esse “sei lá o que” de vocês. Desculpa.

Encolheu os ombros com o semblante sardônico. Renee a olhou com impaciência.

Depois da provocação que proferiu, repreendeu-se mentalmente, pensando que não era a melhor forma de chegar à outra.  Não conseguia segurar sua ironia perante Renee. A agente da Organização abriu a porta sem hesitar.

— Oi. Consegui falar com Roberto.

Falava Loren, enquanto colocava as sacolas de roupas em cima da mesa de lanche do quarto.

— Não irá conseguir a tempo material bioaderente.

— Droga!

— Talvez não seja de todo mal. Não sabemos se nosso material é compatível com o DNA de Helen. De qualquer forma, temos que ficar quietinhas até ele vir a nós. Está apagando nossos perfis na rede, desde que entramos no país. Só depois disso, ele poderá nos cadastrar novamente no sistema e vir com o equipamento para mapear as digitais de nossa íris e colocar no novo passaporte.

— Vocês estão falando que tem gente dentro da agência oficial de identificação? Porque só assim para conseguir isso tudo em um dia.

Loren olhou para Helen irritada e deu a resposta assertivamente.

— Quando você vai perceber que o que falamos é verdade?

Renee percebeu o ânimo de Loren e se adiantou para desfazer o clima que se instaurara.

 — Helen, quando dizemos que temos gente no mundo inteiro, não idealize apenas um punhado de pessoas, senão a Organização não sobreviveria.

Helen se chocava com a agressividade vinda a agente mais velha, sempre equilibrada.

— Desculpe-me, Helen, mas essa situação insegura está me tirando dos eixos.

Desculpou-se de uma forma qualquer, para não causar um súbito desequilíbrio nas poucas certezas de Helen.

Renee expandiu seu dom até a sua mentora. Algo estava errado, pois Loren não era dada a destemperos. Sentiu que a mentora estava irada, mas sua raiva não era exatamente direcionada a Helen. Teria que conversar com ela a sós.

— Bom, agora nos resta aguardar.

Falou a agente mais velha da Organização, mudando o foco da conversa.

— Não sei vocês, mas estou morta de fome e o cardápio desse motel é sofrível. Nada além de rações ou petiscos. – Disse Renee.

— E o que sugere?

Perguntou Loren, já sabendo das intenções de Renee. Entrara em contato telepático com ela, quando perdeu o controle de suas palavras, para saber o que pensara.

— Procurar um lugar decente para comer.

— Acho arriscado. — Falou Helen imediatamente.

— É, também acho. Mas odeio rações. – Renee suspirou em resignação.

— Talvez possamos fazer um meio termo. Quando retornei, vi um restaurante orgânico do outro lado da rua, aqui em frente. Posso comprar algo para comermos e trazer para cá. Assim não ficamos zanzando por aí nos expondo e colocamos alguma comida de verdade no estômago.

— Não irá sozinha desta vez. Vou junto. – Renee falou categórica. – Você está saindo por aí sem um “back” e não quero pensar em perder mais ninguém nessa missão.

— Está bem. Você está certa.

Loren falou com visível cansaço, compondo o teatro que as duas haviam começado para despistar Helen.

— E você, mocinha, fique atenta e sem surpresas.

Ralhou Renee, esperando colocar culpa na consciência de Helen, pelos últimos comportamentos assumidos pela ex-agente da Távola. Conseguiu. Helen não protestou. Assentiu com a cabeça. Deixando-se largar sobre a cama com ar de resignação.

— Quando chegarmos, bateremos cinco vezes na porta para saber que somos nós.

— Se tivéssemos comprado vídeo-celulares descartáveis como havia dito, não precisaríamos disso tudo. Saberíamos quem estaria a nossa porta.

— E arriscaríamos sermos rastreadas. Helen, quando chegarmos a Organização, se ainda quiser ser uma agente, fará um curso intensivo de como ser invisível, nos dias de hoje. Não chegamos até aqui sem sermos descobertos do nada e mesmo assim, a Távola nos achou.

Desta vez, Loren falava mais tranquila e com um tom complacente na voz.



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