A Organização

Capítulo 4 – Conhecendo novo terreno

Na manhã seguinte, quando Helen acordou, Renee estava de pé, arrumada para sair e com o café pronto.

— Hoje vou ficar sozinha?

Renee percebeu certa expectativa no tom de voz.

— Não exatamente, imagino que você queira malhar, então te deixarei no centro de lazer e vou à administração para ver algumas papeladas. 

Foi incisiva para não dar margem a doutora em realizar qualquer outra atividade.

— Se não quiser, não precisa me levar, é fácil andar aqui.

Renee a olhava intensamente, mas seu olhar estava voltado a admirar as formas do rosto de Helen. Linhas tão suaves e sutis que custava muito pensar nela como inimiga. Percebia no corpo, um jeito gostoso que às vezes era difícil não a querer… Rompeu seus pensamentos abruptamente com o barulho dos talheres sendo manipulados rudemente. Olhou novamente, dessa vez tentando alcançar o que se passava com a outra e notou que havia sido indiscreta demais na forma de olhar. Helen estava visivelmente desconcertada e sem graça. Ela tinha que se lembrar que a doutora era uma agente e isso fazia dela, uma pessoa muito perspicaz. Renee se divertia, pois Helen não deveria se incomodar com essas situações, o que fazia Renee pensar que havia uma ressonância da parte da doutora.

— Está bem, vou te deixar à vontade, mas não se perca.

Falou brincalhona, apontando o dedo indicador para sua convidada.

Renee foi até o núcleo para falar com Loren, gostaria de saber qual a decisão que o “Circulo da Irmandade” tomou. Quando chegou, encontrou Irina no corredor novamente.

— Bom dia, Irina. A Loren está na sala?

— Bom dia, Re! Está sim e já perguntou se você havia chegado! Vocês estão ficando boas nisso mesmo, einh?

— E você está parecendo secretária de Loren.

Riu-se da expressão do rosto de Irina, pois Loren não tinha secretária, mas era a segunda vez que encontrava Irina e esta, havia dado a informação de que necessitava.

— Muito engraçadinha você. Já pode arrumar um emprego em “stand ups”!

Renne riu e continuou.

 — Dessa vez não foi ocasional, Irina, eu havia marcado com ela ontem. Falei que estaria cedo aqui.

Renee sorriu afavelmente para a amiga e foi caminhado devagar para a sala de sua mentora. A porta estava entreaberta e Renee se postou diante da porta observando Loren com carinho.

— Não fique aí parada como se estivesse “admirando” minha beleza e inteligência, entre e feche a porta.

Renee sorriu novamente, sabendo que a amiga falava com um jeito brejeiro e carinhoso.

— E então? O que foi decidido ontem?

— Parece que, por enquanto, a melhor saída é torná-la a sua missão mesmo, Re. Vamos traçar um perfil da doutora, você a acompanhará e a integrará no Centro de Antropologia, Arqueologia e Paleontologia. Todos serão avisados da presença dela na Organização. Todos sem exceção, até os donos de estabelecimentos. Parece que nunca houve e se tudo correr bem, nunca haverá tamanha vigilância a uma só pessoa aqui dentro. Todos os passos da doutora serão vistos, anotados e repassados a você, para que você saiba como proceder com ela.

— Muito bem, mas se ela quiser ir embora?

— Ela não irá, pelo menos até ter algo concreto sobre nós. Isso nos dará tempo para sabermos tudo sobre ela e sua missão, mas se algo sair do controle… Não teremos alternativa senão devolvermos a doutora com alguns “lapsos de memória”.

Renee sabia que esse procedimento não era benquisto, até mesmo pelo “Circulo da Irmandade”. A ética, não era apenas uma palavra bonita de dicionário para a “Organização”. O respeito ao ser humano era tudo, porém em casos extremos, não havia muito que se fazer.

Este era um procedimento relativamente simples de “abstração parcial de memória”. Basicamente fazia com que a pessoa “apagasse” um determinado período de tempo que se tornava irrecuperável. Havia sido desenvolvido há alguns anos, através de algumas pessoas que tinham “dons” muito especiais de vasculhar a mente. Desta forma conseguiram fazer com que psiquiatras e psicólogos desenvolvessem o método. Era usado em casos muito peculiares e eles estavam lidando com um.

— Sei que você não gosta disso, Re e muito menos eu. Mas caso não consigamos contornar, não haverá outro jeito. Além do mais, eu não acredito que não consigamos, pois pelo que sei, você é uma agente competente e todos aqui na Organização estarão trabalhando para isso. Já montamos uma estratégia preliminar e gostaria de discutir com você.

Renee saiu do núcleo, um pouco mais aliviada. Até à tardinha, todos já estariam sabendo os seus respectivos papéis e ela se incumbiria de sedar a doutora esta noite, para que o pessoal da clinica implantassem na nuca de Helen, um sinalizador. Assim, a qualquer lugar que ela fosse, Renee saberia onde encontra-la e o mais importante, saberia se porventura, ela tentasse se comunicar com alguém fora da Organização. A técnica de implante era muito simples e a doutora, apenas sentiria um leve desconforto na nuca durante a manhã seguinte, que desapareceria ao longo do dia, fazendo-a esquecer que acordara com ele. As drogas utilizadas, não deixavam nenhum resquício de torpor, nem sensações desagradáveis. Helen acordaria naturalmente.

Renee seguiu para casa para esperar por Helen. Sabia quase que instintivamente, que ela andaria um pouco mais pela cidade para poder avaliar tudo o quanto pudesse. Isso era uma previsão quase acertada, pois era a oportunidade que ela teria. Trataria então, de se distrair lendo um livro, ou curtindo seu cachorro, que parecia um pouco abandonado por ela nos últimos meses.

Por volta de 1:00h da tarde a doutora chegou, se desculpando pelo horário.

— Desculpe, Renee. Eu não fazia menção de demorar tanto, mas afinal de contas, eu estou aqui há uns dias e gostaria de conhecer um pouco mais a cidade e me familiarizar.

“Boa estratégia, doutora!” – Pensou Renee.

Queria parecer informal e natural, não precisaria mentir, pois era exatamente o que ela queria fazer. Ela era inteligente, mas Renee tinha vantagens. Sabia parcialmente quem ela era e a doutora desconhecia esta informação.

— Não tem problema. Aproveitei essa manhã para colocar um livro em dia e curtir meu cachorro.

— Renee, fiquei intrigada com uma coisa… Você fala o inglês fluente e todas as pessoas aqui com quem conversei também, mas as pessoas aqui são de várias nacionalidades, como conseguem?

— São apenas alguns quesitos básicos para quem entra para a Organização. Se empenhar em estudar algumas línguas, que são mais utilizadas no mundo atual, tais como, inglês, espanhol e o português. Ainda há quem fale algumas línguas não muito utilizadas hoje em dia, como o francês e o alemão, pelo puro prazer. Com as novas metodologias de ensino, se torna muito mais rápido e fácil de aprender, isso acontecendo, todos podemos nos comunicar.

Renee encolheu os ombros tirando a importância do assunto. Todos que iam para a Organização, haviam implantado estimuladores neurais e poderiam falar e compreender qualquer língua que quisessem. Porém, esta tecnologia, ainda era falha no restante do mundo. Apesar de já ser utilizada em alguns países, não haviam obtido muito êxito, mas Renee não queria dar essa informação, para não aguçar a curiosidade da outra ainda mais.

— E o que faremos hoje?

Renee percebeu certa impaciência no tom de voz de Helen, ela já começava a querer agir, mas ainda não sabia como. Renee daria corda, mas sentiu uma vontade irresistível de provocá-la.

— Vejo que está animada hoje e que não está mais pensando que somos uma sociedade terrível que deseja tomar e governar o mundo!

Deu uma entonação jocosa a expressão, mas Helen se abalou.

— Pode caçoar, mas se estivesse em meu lugar, duvido que não sentiria a mesma apreensão que eu senti quando cheguei.

Renee percebeu que ela se esquivou. Preferiu transparecer tranquilidade.

— Bom, eu estava pensando em te levar ao Centro de Antropologia, Arqueologia e Paleontologia para que você veja o trabalho que realizamos aqui.

— Vamos hoje mesmo?

— Não sei ainda, pois no Centro tem uma programação diária de estudos e não costumamos interromper para visitas inesperadas. Ligarei para lá e mesmo que não possam nos atender hoje, possivelmente nos receberão amanhã.

— Estou ansiosa, pois é o meu trabalho e gostaria de ver pesquisas, que possam ter a mesma linha que a minha ou não. Se for na minha área seria interessante.

Renee queria continuar provocando, se divertia com isso, porém sabia que tinha que se conter. Não estava em um jogo de xadrez, onde sua única punição seria perder. Deu continuidade a conversa e ao plano.

— Você gosta de jogos? Poderíamos passar a tarde nos distraindo com algo relaxante e à noite, estou com vontade de fazer uma reunião aqui, para você conhecer alguns amigos meus. Você gostaria?

— Seria legal, mas acho que estou te dando muito trabalho. Fico pensando se eu não tirei o seu sossego.

— Não pense assim, você é uma pessoa interessante e inteligente. Gosto da sua companhia e além do mais, estou de férias e resolvi esse ano ficar aqui na Organização. Tudo que eu faria sozinha, posso perfeitamente fazer com você, quer dizer quase tudo…

— Não quero te atrapalhar em nada. Quando tiver que ir a algum lugar que eu não possa ir, você pode me falar.

Mais uma vez Helen jogou verde para perceber Renee e suas reações. A agente, logo devolveu matando a curiosidade e tentando ao mesmo tempo embaraçá-la.

— Com certeza, irei e falarei. Não que você não possa ir também, mas talvez você não goste. Quando estou sozinha e de férias, às vezes saio da Organização, só para ir a algum lugar gay.

— Um lugar gay, onde?

“Ela está se arriscando mais para buscar informações”!

— Em qualquer lugar. Algumas vezes, vou a Londres, outras a Nova York, em outras vou a Madri ou mesmo a São Paulo.

— Mas isso não levaria muito tempo de viagem?

— Ah, mas aí eu passo mais de uma semana.

— Então nem tudo existe aqui, não é mesmo?

A afirmativa era quase desdém, passou um gosto de vitória pelos lábios de Helen, porém Renee teve mais uma oportunidade de alfinetá-la.

— Pelo visto você não entendeu direito. Eu disse que aqui não existe preconceito, logo não temos lugares especiais para ir, pois podemos ficar em qualquer lugar como um casal qualquer. Apenas, eu ainda não encontrei ninguém com o qual eu queira me relacionar mais seriamente, a não ser que… que este alguém, ainda esteja se decidindo ficar aqui.

Renne sorriu e pensou que gostava mesmo deste jogo e tinha que refrear isto. Fez uma pequena pausa, olhando-a mais diretamente concluindo.

— Então, saio para ter algumas aventuras fugazes.

Helen ficou tão desnorteada com a diretiva de Renee, que abriu a boca, mas nenhum som saiu dela.

Estava desarmada, nunca havia lidado com isso antes. Todas as suas missões eram de certa forma mais simples, por saber com quem estaria lidando. Estudava seus adversários de antemão, sempre eram homens, até por ser homossexual, era mais fácil. Sua agência, sempre mandava homossexuais para lidar com o sexo oposto e heterossexual, com pessoas do mesmo sexo. Esta diretriz ocorria, por acharem que dificultava um envolvimento mais profundo dos agentes. Sempre estudou minuciosamente as reações masculinas para poder se privilegiar. Agora ela estava diante de uma mulher com quem nunca havia estado em contato e muito menos tinha informações a seu respeito. Não sabia como proceder. A sua agência nunca imaginou também, a possibilidade de uma sociedade, em que houvesse uma equidade tão grande, tamanha as distorções sociais em geral. Estava só e em conflito com os seus interesses e valores. Vira coisas tão interessantes na Organização, que custava até a pensar no que estava fazendo ali. Tinha que se reorientar. Tinha que se afastar daquela mulher, que tanto mexia com ela e que sabia lidar com as palavras como ninguém. “Como faço isso?” – Pensou.

— Voltou ao mundo dos vivos?

Perguntou Renee, estalando os dedos à frente do rosto de Helen.

— O que disse? Desculpe não prestei atenção, acho que divaguei…

— Percebi. Está cansada? Quer se deitar? Podemos deixar a reunião com meus amigos para outro dia.

— Não, por favor. Eu só quero me deitar um pouco, agora à tardinha. Talvez a viagem esteja pesando só agora, mas eu me recupero.

— Está bem, mas se não se sentir bem, é só falar.

Helen foi para o seu quarto, quase agradecendo a sugestão de Renee. Naquele momento se sentia exausta, parecia que o mundo tinha martelado sua cabeça. Sabia que se ficasse sozinha durante algumas horas, faria com que se realocasse em seu objetivo.

Renee a seguiu o tempo inteiro com os olhos, analisando sua reação. Estava despreocupada ao acompanhá-la com o olhar, pois percebeu que a havia desconcertado de tal forma, que a doutora se distraíra completamente. Precisava saber mais sobre “Helen Mclorn”. Não conseguiu entender porque Helen se abalou tanto com aquela simples instigada. A doutora era uma agente, não poderia se perder dessa forma, mesmo que estivesse nutrindo algum sentimento por ela.

Renee estava a todo o momento monitorando em um contato empático, mas os sentimentos de Helen lhe pareceram muito confusos. A raiva era um ponto marcante em seus sentimentos. Percebeu desolação e que estava abalada. Normalmente a agente, conseguia distanciar dos sentimentos alheios e só percebê-los. No entanto com Helen, a barreira que levantara para monitorá-la naquele momento, não foi tão forte e acabou absorvendo parte dos sentimentos da outra, fazendo-a se sentir mal e angustiada.

O dom de Renee era raro. A “empatia total”, como era chamada, era um dom simples de se entender, mas extremamente perigoso para quem o tinha. Basicamente se tratava, de perceber e sentir tudo que o outro sentia e nas mesmas proporções. Foi treinada a desenvolver o dom completamente, mas também a levantar barreiras, nas quais permitia que não absorvesse todos os sentimentos. Passou a ser tão natural bloquear o dom, que só entrava em contato direto, com quem desejasse. Mas a doutora estava tirando Renee de seu eixo de estabilidade. Não podia deixar que os sentimentos da outra, afetassem-na dessa forma.

Levantou e foi fazer as ligações para seus amigos e os médicos agentes da clinica. Mais tarde todos estariam em sua casa conversando e esperando o momento em que Helen fosse se deitar, para poderem fazer o implante.

O entardecer chegou arrastado para Renee, que estava agilizando tudo para receber as pessoas. Ela percebia que as coisas não estavam muito boas para o lado de Helen também. Resolveu levar um suco para a doutora no quarto. Ela, Renee, também estava fragilizada por ter absorvido parte dos sentimentos e não gostava da sensação. Talvez melhorasse depois de conversar com ela e tentar fazê-la se sentir melhor.

Bateu na porta, e empurrou-a por estar segurando uma bandeja e a porta entreaberta. Deparou-se com Helen parcialmente coberta pelos lençóis, nua, e recuou num impulso de susto, mas inebriada com a visão, da mulher que ousava ter o corpo mais maravilhoso que ela jamais havia visto. Tivera muitos relacionamentos, com mulheres muito atraentes, mas nada se comparava com aquela que acabara de ver. Preocupou-se, pois percebeu que estava extrapolando. Não era a aparência e, sim, seus sentimentos.



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