CONTOS DE FADA NADA INFANTIS

A Princesa e a Sapa

Por: Naty Souza

Revisão: Carolina Bivard e Nefer

Ilustração: Tattah Nascimento

A PRINCESA E A SAPA

A princesa Mika estava cansada. Mais uma saída às escondidas com uma amiga, e apesar de ter se disfarçado, um rapaz a reconheceu.

Ela não aguentava todo aquele blá-blá-blá de quem achava que seria o próximo príncipe, ou mesmo rei! Todos muito convencidos, com seus cabelos perfeitos e camisas impecavelmente alinhadas. Era realmente enfadonho lidar com gente que não estava interessada em saber quem era ela ou como se sentia.

Precisava sair daquele país! Um intercâmbio, essa era a solução! Ir para um lugar longe daquele inverno longo, com dias brancos, para onde ignorassem a existência daquele pequeno reino, que insistia em ser uma monarquia, mesmo nos dias atuais.

Após muitas reuniões e deliberações ao longo de um ano inteiro, rei e rainha resolveram aceitar o pedido da filha. Ela estava no fim da faculdade, já era maior de idade e ir para um país estrangeiro seria interessante, para conhecer outras realidades. Isso poderia ajudá-la a desenvolver mais habilidades para a futura gestão. Além do mais aprenderia outra língua. Tudo bem que o tal português é falado em poucos países no mundo, mas é uma língua latina, mesma origem de alguns idiomas falados por parceiros comerciais.

Mika, encantada com o Carnaval e a música, escolheu o Brasil para passar o ano. Não queria ir para a capital e nem para o Rio de Janeiro. Queria somente visitá-los. São Paulo também era muito grande. Tinha calafrios em se pensar morando em uma cidade que tinha mais gente que seu país inteiro. Porém, ainda queria estar em uma cidade um pouco maior. Disseram que o estado de Minas Gerais tinha uma comida maravilhosa. Ela, que adorava cozinhar e sonhava em ter um restaurante, decidiu-se pela capital mineira, Belo Horizonte.

Passou o ano de deliberações aprendendo português com um professor particular, além de escutar músicas, assistir filmes e tentar absorver o máximo sobre a cultura local. Resolveu se matricular em um curso de culinária mineira que duraria alguns meses. Escolheu pequeno apartamento de um quarto no bairro de Santa Teresa, através do Airbnb, que tinha sido muito bem avaliado. Era um local mais modesto, entretanto tinha muitos bares e restaurantes em toda sua extensão. Ainda mais que era a casa do “Clube da Esquina”, movimento musical pelo qual tinha se apaixonado durante suas pesquisas por músicas brasileiras no aplicativo do celular.

Estava tudo certo. Seus pais queriam ir consigo para conhecer o local, contudo ela pediu que fossem após algum tempo. A princesa gostaria de se adaptar primeiro. Apesar de não concordarem, acharam interessante a postura proativa da filha.

“Ela já é uma adulta” – pensou a mãe, e por fim se pronunciou: – Que seja ao seu modo, Mika. Todavia, se soubermos que você está extrapolando algum limite e que irá nos colocar em maus lençóis, será imediatamente trazida de volta! Estamos entendidas?

– Sim, mamãe! Não se preocupem, eu não lhes darei motivos para preocupações.

 O dia da viagem chegou, enfim. E antes dele, festas e mais festas de despedidas foram feitas, primeiro pela família, depois pelos amigos de infância, pelos da faculdade. Uma princesa, morta de ressaca, entrou no avião, num voo comercial, mas logicamente na primeira classe. Apagou; e acordou quando o café da manhã foi oferecido. Faltava pouco tempo para o trajeto terminar.

Ela estava tão ansiosa que mal conseguiu prestar atenção ao filme que escolheu em sua pequena TV. Resolveu recorrer ao sinal de internet da aeronave e mandar mensagens para a família e amigos, informando como tudo estava.

Quando chegou a Belo Horizonte, assustou-se com o tamanho do aeroporto. Pensava que fosse menor. Parecia com alguns que já tinha visitado na Espanha, pensou. Quando pegou sua mala, se deu conta de que não tinha roupas para aquela cidade, pois estavam em plena primavera e já estava suando em bicas, como os brasileiros costumavam dizer! Avistando um motorista com uma placa contendo seu nome, interrompeu a pequena lista mental de afazeres para sua nova vida.

A princesa riu, pensando que deveria ser obra do pai, que não queria que a filha corresse nenhum perigo desnecessário na chegada àquela cidade estranha. O rapaz, sabendo quem ela era, a tratou de forma respeitosa, no entanto, tentou puxar conversa o tempo todo. Mostrou a Cidade Administrativa, e elucidou que o projeto era de Oscar Niemeyer, que também tinha outros empreendimentos arquitetônicos na cidade. As avenidas largas, os grafites de cores tão intensas e as favelas foram igualmente uma surpresa.

Ao final da viagem, o rapaz se ofereceu para ser seu guia pela capital, e queria, inclusive, ajudar a levar a mala escada acima. O prédio só tinha dois andares, era um pouco antigo, tombado pelo patrimônio histórico e, apesar de conservado, não tinha elevador.

Entendendo onde ele queria realmente chegar a seu quarto, ela tentou dissuadi-lo, e foi salva pela dona do apartamento que estava chegando para lhe entregar as chaves. Vendo a situação sem saída na qual a moça estava metida, ela mesma se encarregou de carregar uma parte da bagagem e despachar o insistente motorista. Quando abriram a porta do apartamento, a senhoria por fim se apresentou:

– Menina, você me desculpa, viu? Aquele rapaz falou tanto que até esqueci de me apresentar! Eu sou a Joana, prazer. – E já deu dois beijinhos no rosto da hóspede.

Vendo a cara de perdida de Mika, ela pensou que a moça deveria estar com dificuldade de entender o idioma, visto que estava falando em inglês com o chofer. Rapidamente, ela já passou para esta língua, que não dominava tão bem, mas que dava pro gasto.

Após mostrar o apartamento, explicar a questão das chaves, padrão e tensão das tomadas que eram diferente dos outros países, “manhas” do chuveiro, roupas de cama e banho, mapas da cidade, entre outras informações, deixou a viajante. Doze horas de voo, mesmo que na primeira classe, não eram fáceis para ninguém. E tinha aquela história do tal jetlag, que parece que tira os miolos do lugar; ela completou.

A recém-chegada agradeceu a hospitalidade e disse que daria notícias em breve, tão logo descansasse e se ajeitasse no apartamento. Quando a porta se fechou, ela virou e começou a andar pela sua pequena casa, pelos próximos meses. Reparou cada móvel, cada detalhe dos azulejos, o piso, as paredes. Estava excitada demais para conseguir dormir. Desfez sua mala calmamente, após mandar uma mensagem para os pais avisando de sua chegada.

A noite começava a se fazer presente quando seu estômago roncou. Ela não queria sair para comer, mas não conhecia nada no bairro que fizesse entrega. Aliás, não tinha muita ideia do tipo de comida que encontraria por ali. Definitivamente, não tinha atravessado o oceano para comer um Mc Donald’s! Resolveu pedir a Joana uma indicação. Ela disse que olhasse os cardápios que haviam sido deixados, e que poderia começar sua incursão culinária conhecendo os sabores de Minas, com um toque sofisticado: que ligasse para o “Biroska”. Após ver o folder, chegou à conclusão de que deveria conhecer pessoalmente o local.

Depois de um longo banho, ela chamou o aplicativo de táxis e se dirigiu ao endereço. Ficou surpresa com o colorido do local, a decoração que, em nada combinava, e ao mesmo tempo fazia sentido. Uma moça que tocava o piano, parou e veio lhe atender.

– Eeeiiii, boa noite, bem-vinda ao Biroska! Você está sozinha? – A garçonete perguntou.

– Sim.

– Por favor, vem comigo. Este é o cardápio da semana. Quer pedir alguma bebida?

– Algum suco natural, o que indica? – indagou Mika

– Temos laranja, limão, maracujá, pitanga, amora. Todos naturais, feitos com as frutas… – respondeu a moça.

– Não conheço as últimas três frutas que você mencionou. Qual você prefere?

– Uai, você não é brasileira,  não? – Disse a atendente rindo. – Pra começá, pitanga. Tem um “q” de flor, sabe?

– Tudo bem, pode ser. – Se limitou a dizer a viajante.

Não tinha entendido metade do que a moça tinha dito. Será que o sotaque daquela cidade era tão diferente assim? Seria um processo se acostumar com uma nova língua, quanto mais um jeito de falar tão estranho.  Ela tinha a impressão de que as pessoas “comiam” as últimas ou as primeiras letras de cada palavra. Era quase bizarro!

Após olhar o cardápio todo, optou por um caldo de entrada e uma versão de um prato à base de feijão e embutidos de carne de porco. Parecia interessante. Seu suco chegou e uma explosão de sabores tomaram conta de sua boca. Estava apaixonada por aquela fruta! Pesquisaria mais a respeito, certamente. Fez até uma anotação no celular para se lembrar de como escrever seu nome.

A comida foi outro ponto. Ficou abismada! Como poderia ter tanto sabor em um prato tão simples? A chef veio lhe servir, já que o restaurante ainda estava vazio, e pode entender melhor do que o prato se tratava.  Para a sobremesa, goiabada com queijo meia cura do Serro. Não fazia ideia do que era, porém se deliciou a cada colherada. Procuraria uma academia nos próximos dias, elucubrou. Não seria fácil manter seu peso com tantas comidas variadas e gostosas.

Voltou para o apartamento e, após checar suas mensagens, resolveu assistir um pouco de TV. Dormiu na frente do aparelho e acordou com os passarinhos fazendo algazarra na janela. Estava com dores nas costas, pela posição não adequada para o sono. Se alongou e foi para o banho. Não era possível que, na primavera, já fosse tão quente àquela hora da manhã! Derreteria no verão, era uma certeza!

Resolveu dar uma corrida pelo bairro, no entanto se deu conta de que as ruas eram estreitas e as calçadas irregulares. Nenhum parque para fazê-lo. No mapa havia uma ciclovia em uma grande avenida. Rumou para lá, e no caminho viu pessoas pedindo dinheiro, e próximo à linha do trem, outras em situação de moradia irregular. Era muito triste o que estavam passando. Em seu país, não havia isso ou ela nunca tinha se atentado ao fato? Pensando bem, nunca fui às regiões mais pobres, e nunca me inteirei dos problemas do país.

Começou a andar e parou para ler uma placa escrito “Bar do Orlando”, e de repente, um adolescente pegou sua pequena bolsa, que continha as chaves, a carteira, e o celular. Ela tentou correr atrás dele, mas não conseguiu acompanhá-lo. Parou tentando recuperar o ar, quando uma moça com um violão nas costas apareceu.

– Eeiii, cê tá bem, moça? O que aconteceu? – Perguntou a desconhecida.

– O menino… – Mika ofegou. –  Ele… Ele levou minha bolsa… Meus documentos, meu celular… Ai, as chaves do apartamento… Que merda! – Praguejou.

– Vixe… Ó, pelo rumo que ele tomou, é prali naquela comunidade perto da linha do trem que ele foi. – Falou a desconhecida.

– E?

– Uai, eu conheço uns caras ali. Posso tentar recuperar suas coisas. Mas…

– Mas? – perguntou Mika

–  precisando de umas coisinhas aí. Olha só, até esqueci de perguntar seu nome…

– Mika. E você?

– Mariana.

– Pode ser, o que precisar. Seja rápida, por favor. – Pediu a estrangeira.

– Segura aqui meu violão. Não fica aqui, vai lá pra praça da igreja. Já te encontro lá. – Sorriu a moça e saiu andando rapidamente.

Será que eu posso confiar nessa moça? Porém, o que tenho a perder? Pensando isso, ela se dirigiu para a tal praça. O cheiro de comida do ”Restaurante do Bolão” preenchia o olfato de Mika, no entanto a fome não tinha chegado. Como falaria disso para sua família? Certamente a levariam de volta! Não contaria, era um fato!

Uns vinte minutos se passaram e ela, sem saber o que fazer no meio tempo, reparou a capa gasta do violão e uma pasta com músicas em um bolso externo. Ela não sabia tocar nenhum instrumento, contudo gostava de música, e passando as páginas, chegou à conclusão de que conhecia algumas daquelas canções. Cantarolou uma ou outra mentalmente, tentando entender do que a letra se tratava. Com a distração, levou um susto quando a outra se jogou no banco de concreto, com a bolsa no colo.

–  aqui sua bolsa, Mika! Vê aí se tá tudo certim – disse Mariana

Mika, de boca aberta e olhos esbugalhados, tomou para si a bolsa e começou a vasculhá-la. Estava praticamente tudo lá, ela não acreditava naquilo!

– Como você conseguiu? – Ela indagou.

– Tenho meus métodos! – Melhor não entrarmos em detalhes.

– Muito obrigada! Preciso ir. – Disse Mika se levantando rapidamente.

– Ei, ei, ei! Peraí! E a minha recompensa? Você não disse que eu poderia pedir o que eu precisasse?

– Quanto você quer? – Perguntou a estrangeira.

– Quero dinheiro não.  precisando de um lugar pra ficar até me ajeitar. – Esclareceu Mariana.

Que furada! Onde foi que eu me meti? O pior é que eu prometi. Que ódio de mim! Pensou no pai e no quanto ele era insistente nesses quesitos de manter a palavra. Suspirou profundamente. Não tinha solução.

– Ok. Vamos logo! Estou cansada, com calor e com fome. – Declarou Mika.

– Aqui, vamos pegar uma quentinha aqui no Bolão. Um “rochedão” vai cair muito bem depois dessa tensão toda. – Riu Mariana.

– Ro… Roche… – Tentava pronunciar.

– Rochedão, menina! É um PF muito gostoso, vem um tantão de comida.

– PF? – Franziu a testa. Estava realmente complicado entender aquelas gírias…

– Prato feito. É um prato que já vem montado lá da cozinha. Esse aí tem arroz, feijão, bife, ovo, macarrão, salada. – Esclareceu Mariana. – Mas, se não gostar, a gente pede um mexido. — Vendo a cara de estranhamento, explicou: – Quando a gente mistura arroz, feijão, carne, couve na mesma panela pra esquentar. O quê? Nunca fez isso? Meu Deus, da onde  saiu mesmo?

Mika estava cada vez mais confusa. Arroz e macarrão no mesmo prato? Bife e ovo na mesma refeição? Tudo misturado e mexido? Como aquilo possivelmente poderia ser bom? Todavia, estava desgastada demais com tudo para discutir. Se deixou levar, pagaram a conta e carregaram a comida para o apartamento. E, por incrível que pareça, gostou da refeição. Era simples, no entanto, bem temperada.

– O apartamento só tem uma cama de casal. Você vai dormir no sofá? – Indagou Mika.

– Oi? É um sofá de dois lugares,  não reparou? Eu não caibo aqui! – Disse Mariana deitando e se esticando no sofá, colocando metade das pernas para fora. – Algum problema em dividir a cama com outra mulher? – Implicou.

– Não, nenhum. –  Resmungou a estrangeira. 

Na verdade, ficava nervosa em pensar na situação. Já em seu país, ficava incomodada, e sabia o porquê. Ainda não tinha certeza, mas pressentia uma aura minimamente bissexual na outra. A atraía? Sim. Só queria deixar rolar. Seria a primeira vez com alguém que não sabia quem era ela, e isso a excitava. A conquista real, e não a real conquista.

Mariana não se privava de se esparramar pela cama, e até mesmo de sonhar e abraçar Mika. Esta, insistia em não se aproveitar da situação.

Os dias se passavam, enquanto a luz amarela da cidade entrava e saía pela janela lateral do quarto de dormir, como dizia Lô Borges, em uma das canções tiradas no violão pela hóspede. Ela queria tocar nos bares do bairro do Clube da Esquina.

Compras de roupas foram feitas pela estrangeira com a ajuda de Mariana e Joana. Algumas viagens rápidas pelos arredores para conhecer a história do estado, bem como suas belezas naturais vieram.

As aulas de culinária de Mika começaram e, com isso, visitas ao Mercado Central. Todos os dias chegava em casa com um novo tempero ou produto. Joana ajudava como podia, tentando localizar ingredientes, lojas, e levando utensílios emprestados da sua própria casa para sua locatária. Experimentou preparos péssimos, ruins, bons, e com o passar das semanas, evoluíram de maneira assustadora, como a relação das moradoras.

Por fim, Joana já era paga por dois hóspedes, mesmo não tendo pedido nada. Em um fim de semana que Mariana saiu para tocar em um barzinho, se atreveu a tocar no assunto:

– Então, Mika, a Mariana  aqui no apartamento já faz umas semaninhas, ?

A outra, concentrada no tempero de um pernil inteiro, que arriscava pela primeira vez, só assentiu.

– É… Eu sei que você resolveu pagar pra ela também, nem sei por que tá fazendo isso. Cês tão namorando? – Lançou à queima-roupa.

– Quem tá namorando? Você arrumou alguém? – A cozinheira se manifestou, achando que não tinha entendido nada.

– Eu? Quem me dera!  perguntando docês duas, uai!

– Eu e a Mariana? Namorando? Nãooooo… Por quê?

– Uai sô, cês duas moram aqui, tão pra cima e pra baixo juntas, dormem na mesma cama… Cê tá querendo que eu pense o quê? Não que eu tenha nada com sua vida… Mas, ela te olha de um jeito… Ai ai… Se eu tivesse alguém que olhasse pra mim assim… – Suspirou Joana.

– Olha de que jeito, Joana? Não tem nada de mais, eu só estou pagando o favor que ela me fez de recuperar todas as minhas coisas! – Replicou Mika, exasperada.

– Bem… Mas, pra começar, porque ela conseguiu fazer isso com tanta facilidade?  num achou estranho, não? – Perguntou a senhoria.

– Ué, sei lá, eu! Ela devia ter algum amigo, ou um favor pra cobrar entre aquele pessoal! – Disse nervosa. – Ai, Joana, que pergunta! Me deixa cozinhar em paz, senão o almoço não sai hoje!

– Pelo visto vamos almoçar só amanhã,  mesmo? – Olhou a mulher mais velha no relógio, que já marcava quase uma da tarde. Pelas suas contas, aquele pernil iria demorar umas seis a sete horas no forno. – Bem, preciso ir. É sábado, e eu tenho que limpar minha casa, conferir o outro apartamento que foi desocupado mais cedo. Me liga quando eu puder vir comer.

Se despediu com os tradicionais dois beijinhos que a hóspede já tinha se acostumado e saiu sem ser acompanhada.

Mika ficou incomodada com a fala da outra. Pensando naquele besteirol, resolveu abrir uma cerveja para poder sovar a massa de pão de queijo. O tal polvilho azedo tinha um cheiro estranho, e combinado com o desconhecido queijo Minas curado, trazia um aroma ácido para o ambiente. Pensou no azedo do repolho fermentado, que já tinha o hábito de comer e sentiu saudades de casa. Falava com sua família com frequência, mandava fotos das preparações do curso. Queria estar com eles, porém sentia, pela primeira vez, um momento único, só seu, que precisava ser desfrutado sem a companhia deles.

Várias latinhas vieram na sucessão do tempo no preparo daquele assado e do pão de queijo. – Por que mesmo eu escolhi uma peça tão grande? Meu Deus, quem vai comer essa carne toda? – Pensou já meio alta.

Algum tempo depois, Mariana entrou pela sala, acompanhada de seu violão, e ao sentir o cheiro que vinha da cozinha não se conteve:

– Meu Deus do céu! Pernil com pão de queijo? É isso mesmo, produção? Obrigada, senhor! Depois daquela gororoba péssima no botequim, enfim comida de verdade! – Juntando as mãos em agradecimento entrou no cômodo.

Ela estava de calça jeans, camiseta branca e um All Star vermelho. Os cabelos quase no ombro insistiam em cair por cima dos óculos de armação preta. Aquele jeito, só dela, de tirar os cabelos dos olhos, no meio da risada branca e sincera, fazia Mika repensar as palavras de Joana. Especialmente “namorada”. De repente, o cômodo ficou pequeno e ela precisou urgentemente ir ao banheiro. A recém-chegada, com uma expressão confusa, sinalizou um ok, e se dirigiu à talha, em busca de água fresca.

Após sentar no vaso e encostar na parede, a cozinheira respirou fundo, e a roda gigante passou por seu corpo, fazendo com que sua mente girasse 360 graus visitando momentos até voltar ali, naquele cubículo. Se sentiu ridícula… Já tinha passado dos 20, há alguns anos; beijara homens, mulheres, e até namorou um príncipe que se mostrou mais um sapo, no fim das contas. O bendito trono! Argh! Que merda!

Não entendia o que era aquela revolução. Aliás, tinha compreendido naquela volta virtual pela sua vida. E sabia onde queria chegar. Talvez, no mesmo que Mariana esperava durante aquelas semanas. Ela não dizia, não era invasiva. No entanto, suas ações, seus olhares eram dúbios.

Uma música desconhecida começou a tocar na sala. Ela aprumou o corpo após mais um suspiro. Se obrigou a sair da catarse momentânea, e abriu a porta do banheiro, com a cabeleira loira meio desalinhada.

– Que música é essa?

– Conhece Johnny Hooker não? – A cantora indagou.

– Não, nunca ouvi – Replicou Mika.

– Se chama “Amor Marginal”. Depois procura a letra na internet, quem sabe você não gosta? Acho que vou incluir essa e mais uma da Elza Soares no repertório do próximo barzinho. Quer ouvir? – Disse Mariana abrindo sua pasta e sacando o violão. – Estou em dúvida entre “Espumas ao Vento” e “Banho”. Vô cantá as duas procê.

Dedilhando o violão, desembainhou duas interpretações dignas de Elza Soares, com todo o drama contido nos seus agudos e graves. Mika, com os olhos vidrados, durante toda a performance, sem palavras, e com o desejo pegando fogo, só foi capaz de lhe tirar o instrumento das mãos, colocar delicadamente num canto qualquer, e lhe beijar. Beijou e foi beijada, como se não houvesse o próximo, o amanhã, ou o pernil no forno. Depois de uma batalha de corpos desejosos no sofá da sala, a estrangeira se deparou com um olhar acanhado e duvidoso por parte da brasileira. Foi rápida:

– Olha, me desculpa, se você não quiser… – E já foi cortada pela outra.

– Ah, nem... Para! É, que… Não sei se  reparou, mas tem um trem queimando da cozinha…

– Trem? Que trem?

– Quando o mineiro quer se referir a alguma coisa, ele chama de trem, Mika. Ou seja, tem algo queimando na cozinha!

– Ai, meu Deus! O pão de queijo, o pernil! – E saiu correndo, seguida por uma Mariana que ria sem parar. – Para de rir! É seu jantar!

– Vixe... Coitada de mim hoje! – E riu mais ainda.

Depois de tirar do forno os pães torrados, se deu conta de que estava tudo bem com a carne, e que o excesso de tempo não havia prejudicado a preparação.

– Quer comer? O porco assado está bom, não queimou. – A cozinheira explicou.

– Depois. Qué dançá comigo? – A cantora com o celular na mão procurou algo no aplicativo de música e colocou pra tocar. – Conhece essa?

Após alguns acordes, apesar da roupagem Electro jazz, reconheceu a incomparável voz de Nina Simone, em Speak Low. Em uma reverência real, Mariana pegou a mão de Mika e começaram seu baile particular. A playlist passou pela versão do Gotam Project para Last Tango in Paris. A dança terminou com a lua no alto do céu e nenhuma música conhecida.

Após os momentos de entrega, a cantora adormeceu. Mika olhou para ela e pensou que praticamente não se conheciam. Ela tentou não falar de sua vida, para esconder sua origem real, e portanto, nunca cobrou a outra neste aspecto. Conheciam os gostos musicais, as comidas, os hábitos diários uma da outra, como um casal. O passado começava a bater na porta e incomodar. Dentre em pouco seus pais viriam visitá-la, e logo chegaria o momento de voltar pra casa. Um desespero a fez apertar a amante em seus braços, que gemeu brevemente. Mas não iria acordá-la para ter esta conversa. Em breve, ela aconteceria.

O dia amanheceu e Mariana saiu de fininho da cama, não queria acordar seu amor. Tinha que se preparar para tocar em outro bar. Desta vez, era uma roda de samba de raiz. Estes eventos eram comuns em BH, e muito animados por sinal. O público era sempre grande, o cachê e o reconhecimento no meio musical também. Precisava conversar com Mika, falar dos seus sentimentos, e principalmente, do seu passado. Queria deixar tudo para trás e pensar no futuro com ela. Saiu do apartamento com uma banana na mão, o violão nas costas e um sorriso no rosto.

A bela adormecida acordou sem ninguém ao seu lado. Chamou pela outra e se deu conta de que já não estava. Um bilhete na geladeira explicou o compromisso profissional e pediu que mais tarde pudessem conversar com calma.

– O que é que eu vou fazer numa manhã e parte da tarde, em pleno fim de semana, dentro do apartamento sozinha? – Pensou alto. – Eu vou ficar doida aqui de ansiedade e comer esse pernil inteiro! – Exclamou olhando para a carne assada fria dentro do refrigerador. Preciso dar isso para alguém logo, antes que estrague.

Separou alguns pedaços para elas em um Tupperware. Fatiou o restante e saiu distribuindo entre os vizinhos, que pouco conhecia. Todos olharam com estranhamento para aquela moça com sotaque esquisito e aparência de estrangeira. A cada batida na porta, tinha que “rezar um rosário”, como dizia Joana, para que aceitassem sua oferta. E mesmo assim, o olhar desconfiado para a vasilha precedida um agradecimento.

Mesmo depois de doar todo o pernil, inclusive para a dona do apartamento, somente algumas horas haviam se passado. A ansiedade a estava consumindo, se sentida um tigre enjaulado. Preciso sair, dar uma volta, pegar um ar.

Resolveu ir para a Praça do Papa. Era um lugar com uma vista magnífica! Sempre se lembrava da história que Mariana contou sobre a fala do Papa João Paulo II, quando viu aquela paisagem: “É realmente, um Belo Horizonte!”. Era mais ou menos isso, não tinha muita certeza.

Sempre andava com os aplicativos de táxi pela capital. Depois de algumas semanas, chegou à conclusão que seria complicado dirigir naquela cidade. Como seu prédio não tinha garagem própria, seria mais caro ainda manter um automóvel. Algumas contas e ponderações a levaram à resolução de que usar os aplicativos seria o melhor custo-benefício de deslocamento. Infelizmente, o transporte público era um pouco precário, e o local do curso, um tanto perigoso para se chegar andando, mesmo que só alguns quarteirões a partir do ponto do circular. A proximidade da rodoviária trazia consigo moradores de rua e “crackeiros”. Não era um local para ela frequentar, segundo todos que conhecia.

Após algumas horas apreciando a vista, andando e fazendo uma aula de yoga experimental na praça, resolveu descer e parar onde Mariana estava tocando, já que era mais ou menos caminho de casa. A Praça Tiradentes estava apinhada de gente, sambando ao som dos músicos da roda. Ao centro, a cantora dividia os vocais com um rapaz lindo, moreno, com uma boina e um terno tão brancos quanto seu sorriso. Eles realmente faziam uma boa dupla!

Ela se colocou próxima a uma árvore, de forma que não fosse notada. Ao violão, a morena parecia mais inspirada naquela tarde, do que jamais vira. Cantava animada e tocava com o coração. Ela teria uma grande carreira, era fato. Algum produtor musical a notaria, cedo ou tarde. O cantor se despediu, apresentou a banda, e por fim, sua parceira. O show acabou, mas voltaram para um “bis”. Quando guardava seu violão na capa, Mika surgiu entre as pessoas que a cumprimentavam. Se despediu rapidamente dos músicos, do cantor e a rebocou para o bar.

– Que surpresa boa essa, gente! Me espera um tiquim? Preciso receber do dono do bar, e pegar uma cervejinha. Minha garganta tá seca! – Exclamou a cantora empolgada com a repentina chegada da outra.  Um aceno foi a deixa para que ela resolvesse suas pendências.

– Me conta aí, como sabia que eu ia tocar aqui?

– Seu Instagram. Você postou que a roda de samba ia começar, e marcou o bar. – Esclareceu Mika.

– Ah, é verdade! Tinha esquecido… – Riu sem graça. –  Mas,  não usa Instagram… Ou usa? Ah, olha só, quero conversar com , mas não aqui. Vamos pro ap? – Inquiriu Mariana.

– Sim, claro! Como você achar melhor.

– Peraí que vou chamar o táxi. – Disse sacando o celular do bolso, equilibrando a cerveja, o violão e a digitação.

Mika riu da cena. Ela era uma “peça rara”! Essa era uma expressão que o professor de culinária gostava de usar para os alunos engraçados da sala. João, além de lhe ensinar a cozinhar, tinha por passatempo, fazer um pequeno dicionário das expressões idiomáticas mineiras mais usadas no estado, bem como indicar restaurantes, lojas, produtos diferentes; não só dali, mas do país como um todo.

A viagem foi rápida, entretanto o tempo parecia parado naquela bruma de desassossego. Quando entraram no apartamento, Mariana encostou o violão, abraçou Mika e olhando profundamente em seus olhos pediu:

–  consegue segurar só mais o tempim de uma ducha?  pregando nessas roupas. Eu quero muito falar com , não fica achando que eu  fugindo, por favor! – Suplicou

– Tudo bem, eu te espero. Quer comer alguma coisa? Eu posso esquentar o pernil, se quiser.

– Não, eu  bem por hora. As porções de hoje eram bem boas. Mais tarde eu como, brigada. – Falou a caminho do banheiro.

A estrangeira foi para a cozinha e tomou um copo de água gelada, tentando aplacar o calor e o nervosismo. Tomou outro, na sequência, tentando engolir seu desespero. Ela não sabia como lidar com a situação. Era a primeira vez que tinha alguém ao seu lado por mérito próprio, e não por ser uma princesa. Aliás, ela nem se lembrava mais disso, boa parte do tempo.

Ouviu o barulho do trem. A cidade parecia mais silenciosa que o de costume, pensou. Nunca tinha reparado aquele atrito entre as rodas e os trilhos antes. A tarde caia e trazia consigo uma brisa que amenizava mais um dia escaldante. Por instantes, se sentou na beirada da cama e olhou para fora. Uma árvore florida balançava seus galhos, cena que lhe hipnotizou.

Um clique de câmera lhe tirou dos devaneios, e encontrou Mariana já com uma roupa de ficar em casa, como ela dizia, a fotografando.

– Desculpa, eu sei que  não gosta de tirar fotos, porém foi uma imagem tão pura, tão linda que eu não dei conta.

– Tudo bem. Acho que podemos começar nossa conversa por este assunto. – Disse Mika, ainda olhando pela janela, com um olhar meio perdido.

– Que que aconteceu?  tá arrependida de ontem? – Perguntou Mariana com a voz um tanto insegura.

– Não é isso. Você não sabe quem eu sou. Ninguém aqui sabe. Meu nome é Mikaela de Liechtenstein, sou princesa do Principado de Liechtenstein, que fica próximo à Suíça. Eu estou aqui para aprender uma nova língua, a cozinhar, mas principalmente para ganhar experiência para ser regente de meu país. Eu sou a primeira na linha de sucessão, após meu pai, o rei. É por isso que eu nunca falei muito do meu passado, dos meus pais, mostrei fotos, essas coisas.

A cantora, um tanto confusa, foi se sentando ao lado da estrangeira, sem conseguir dizer nada.

– Muita gente se aproxima de mim por isso, e eu queria saber como é ser alguém comum, que conquista tudo por esforço próprio. É claro que tenho a ajuda financeira deles, eu nem conseguiria trabalhar para me sustentar aqui…

Mika não parava de falar. Estava temerosa, e não conseguia se deter. Mariana tinha a boca aberta, todavia ainda em silêncio.

– Por favor, me desculpe. Eu não quis te enganar! Eu não imaginava que iria conhecer alguém como você, nesse tempo aqui. – Confessou a estrangeira, com lágrimas nos olhos, um passaporte real na mão direita, e um celular com fotos da família regente na esquerda.

Mariana pegou o documento, olhou, fechou, colocou em cima da cama. Segurou o aparelho, girou e aumentou  para ver melhor. Sorriu ao reconhecer a princesa na foto. Deixou ao seu lado.

– Tudo bem, não tem importância, eu já sabia.

– O quê? Como? Desde quando?

– Uai, e não existe busca por imagem no Google lá de onde  vem não, menina? – Troçou Mariana.

– Mas… Por que você não me disse nada? Por que não tentou tirar vantagem de mim? Um momento, foi por isso que quis vir morar aqui? Aquela reverência real quando dançamos, você já sabia? – Mika, nervosa, se levantou e começou a andar pelo quarto, indignada com a descoberta.

– Péra lá! Eu não sabia de nada quando vim pra cá, tá bom? Descobri um tempim depois. Não me importei porque nós tamos no mesmo barco. Peraí, não sou princesa, filha de rei. Meu nome é Mariana Beves Moreira. Eu uso só o último nome porque minha família é dona de muita coisa, tanto no interior de onde vim, como no estado todo.

Assim como a morena, a loira também estava espantada com as revelações.

– Fora a política… Ah, desse assunto nem quero falar, morro de vergonha das barbaridades que eles fazem… E eu só quero  quem sou, não quero  ou  por eles, e sim pelo meu esforço.

A intercambista tentou começar a falar, entretanto foi interrompida.

– Como cê acha que me entregaram sua bolsa aquele dia? Eles sabem sobrinha de quem eu sou, e que roubar de mim ou dos meus amigos é fria. Eles tão no sal, com uma chamada minha! Eu tava sem casa porque ia mudar pra algum estado do nordeste, pra mais longe deles. Só que a gente se esbarrou, e… Bem… A partir daí você já sabe a história… – Admitiu Mariana sem jeito.

– Eu não sabia, me desculpa, isso é tudo muito confuso pra mim… Estou chocada, acho que é essa a palavra! E então, agora que já sabemos a verdade, como vai ser? Você ainda vai pro nordeste?

– Nem sei… E você, vai voltar pro seu país? – Perguntou a mineira, desanimada.

– Eu tenho que voltar. Mas, ainda tenho alguns meses por aqui. Você quer ficar comigo e ver como as coisas acontecem? Meus pais chegam em duas semanas… – Mika perguntou, olhando para seus pés.

– Ei, ói procê vê, Mika, vem cá! — Mariana a abraçou com firmeza. Cheirou seu pescoço e pensou que ali queria estar pra sempre.

– Nesse tal principado eles permitem que a rainha se case com uma mulher? Seus pais aprovariam? – Mariana questionou.

– Cada coisa ao seu tempo, minha querida. Eu quero que o agora, seja o nosso felizes para sempre. Aceita?

– Mas é claro! Demais da conta, !

E as duas se amaram durante aquela e outras noites.  O amor entre o som das panelas e canções que saiu de terras mineiras para atravessar o oceano e aportar num reino frio, porém aquecido pelo sentimento que dividiam.

FIM

Notas finais:

1) Quis retratar a forma de falar dos mineiros, tanto da capital quanto do interior, por isso algumas expressões diferentes e em itálico. Caso não entendam, podem perguntar.

2) O conto é inspirado em duas versões da história “A Princesa e o Sapo”. Tanto a original, dos Irmãos Grimm, quanto a da Tiana, da Disney.



Notas:



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