Música:

Last Kiss –

http://www.youtube.com/watch?v=YnPwG9JUtKs

Foxy Lady

https://www.youtube.com/watch?v=C4OXFGhQE8w

Love of my Life

Camila – Diedra Roiz

Depois que Sunny saiu liguei o som bem alto. Pearl Jam – “Last Kiss”. Deixei a música preencher o ambiente, meu corpo, minha alma…

Repassei mentalmente tudo que havia acontecido entre o telefonema dela e aquele exato momento. Não só os fatos, mas os sentimentos vertiginosamente percorridos naquele breve espaço de tempo. Sim, ela me atraía. De um jeito inexplicável, inevitável, inexorável… Maravilhosamente arrebatador e ao mesmo tempo extremamente doloroso, porque me impulsionava a deixar o passado e ir em direção a uma nova vida que… Eu não sabia se era…

O que eu queria? Que caminho deveria seguir?

Fiquei alguns minutos parada no meio da sala, de olhos fechados, buscando a resposta dentro de mim. Quando os abri, estava na minha frente. No apartamento santuário que não era realmente meu. Foi então, assim, que decidi. Recuperar tudo que eu parecia ter perdido: o meu espaço, a minha sanidade, a minha felicidade, a minha vida…

Comecei pela sala. Recolhi todos os retratos dela, olhando Sandra nos olhos, enquanto pensava alto, para que ela e eu escutássemos:

– Sei que você entende… Eu… Não tenho como continuar assim… Não posso mais…

Fui andando pelo apartamento, guardando todos os enfeites, quadros, velas, CDs, livros, objetos pessoais… Tudo que fosse dela ou que me lembrasse dela. No banheiro, a escova de dentes, os perfumes, os cremes… Desejando intensamente que meus sentimentos, como os produtos de beleza, também tivessem prazo de validade. Ri de mim mesma. Respirei fundo e fui até o quarto. Esvaziei a parte dela do armário. As roupas, sapatos, meias, peças íntimas… Como eu, cheirando a mofo e a guardado. Espirrei várias vezes, mas não permiti que a reação alérgica me impedisse, fui colocando tudo em caixas e mais caixas. Empacotei e empilhei o que sobrava de Sandra em vários caixões de papelão que deixei perto da porta de entrada.

Respirar foi se tornando cada vez mais difícil, o ar me faltava. Permaneci um tempo sentada na poltrona que ela mais amava, antes de arrastá-la para perto das caixas, enquanto o refrão tocava, com plena consciência de que aquilo era o fim, tinha realmente acabado. Todo e qualquer tipo de esperança havia se esvaído. Ou, como ela… Evaporado. Estava tudo ali, pronto para ser levado, doado, tirado de mim, da minha vida, da minha casa… Só faltava uma última coisa.

A mais difícil, na verdade.

Abri o cômodo que tinha mantido trancado durante todos aqueles anos. Rodei a chave na fechadura devagar, da mesma forma me custou girar a maçaneta e empurrar a porta. Permaneci muito tempo parada ali, sem coragem de entrar. Quando o fiz foi num impulso, sem me permitir pensar. Olhei em torno, esquadrinhando a sala de música dela…

O violino ainda estava em cima da mesa, guardado dentro do estojo. Ao lado algumas partituras empilhadas. E o violoncelo atrás da estante de partitura, apoiado na cadeira dolorosamente vazia, como se esperasse que a dona dele fosse retornar. No entanto eu sabia, uma tardia e amarga certeza afinal tinha me tomado: Sandra não voltaria… Nunca mais.

Percebi que não seria capaz de tocar em nenhum daqueles objetos. Mas precisava tirá-los dali. Era imprescindível. Absolutamente necessário.

Peguei o celular e liguei para Flávia:

– Preciso muito de você.

Como sempre, ela não me perguntou nada. Só respondeu:

– Em vinte minutos tô aí.

E em menos disso estava. Entrou e parou absolutamente surpresa em frente ao amontoado de caixas. Fui logo dizendo:

– Os instrumentos eu não consigo. É como se… Como se… Eu… Tá, eu sei que estou sendo fraca…

As lágrimas finalmente escorreram, incontroláveis. Flávia me abraçou, amparando o choro convulsivo pelo qual fui tomada:

– Ei… Tá tudo bem, Camila… Calma… Você tá indo muito bem. Sei que encaixotar isso aqui não deve ter sido fácil. Eu… Eu…  – Olhou dentro dos meus olhos. Profundamente. Antes de completar: – Estou orgulhosa de você. De verdade.

O jeito que falou me fez perceber que não era o que realmente queria falar. Estávamos próximas. Na verdade coladas. Enlaçadas. Meus braços ao redor do ombro dela, os dela em volta de minha cintura. Levantei o rosto e quando nossos olhos voltaram a se encontrar eu pude ver perfeitamente, sem que ela dissesse uma palavra…

A percepção me deixou paralisada. Continuei ali, imóvel nos braços de Flávia, mesmo depois que ela se inclinou e tomou meus lábios nos dela…

Demorei alguns segundos para me desvencilhar. Ela não tentou me impedir, me soltou de imediato.

Eu não disse nada, nem precisava. Flávia me conhecia. Bem até demais. Com certeza sabia o que eu estava pensando apenas pela minha expressão, pelo meu olhar… Antes que eu finalmente conseguisse superar o choque e perguntasse:

– Desde quando?

A resposta veio sussurrada, sem que ela desviasse o olhar:

– Desde a primeira vez que te vi.

Onde tinha sido? Em uma festa? Na faculdade? Eu não lembrava, Flávia era tão parte da minha vida que parecia que sempre tinha estado comigo, do meu lado… Isso fazia com que parecesse ainda mais inacreditável:

– Mas você… Você nunca… Fez nem disse nada…

Ela riu. Com uma ironia amarga:

– Fazer ou dizer o quê? E para quê? Você tinha acabado de conhecer a Sandra, só tinha olhos pra ela, já estava… Irremediavelmente apaixonada. Eu ocupei o lugar que sobrou, aquele que você tinha pra mim: a confidente, a melhor amiga. E eu aceitei, por que… Por mais que me doesse… Era o único jeito de ficar perto de você.

Deu dois passos em minha direção, a mão erguida como se fosse acariciar o meu rosto. Foi instintivo. Recuei sem pensar.

A rejeição a fez parar. Flávia virou de costas, respirou fundo e quando se voltou de novo para mim seu olhar tinha mudado. Na verdade tinha retornado ao normal:

– Vamos esquecer isso? Eu nunca deveria…

Não a deixei terminar:

– Esquecer? Como? Isso muda tudo! Quer dizer que… Era tudo mentira? Esse tempo todo você… Você ficou me cercando, esperando uma oportunidade de…

Dessa vez foi Flávia que me cortou:

– Não, Camila. Nunca foi mentira. Meu carinho, minha preocupação, meu cuidado… Meu amor por você é de verdade.  – Fez uma pausa. A respiração ainda alterada quando prosseguiu: – Não tenho culpa se você nunca percebeu… Sempre foi cega. E não só comigo.

Ela jogou no ar e esperou. Só me restou demandar:

– Seja mais clara.

Flávia deixou escapar uma gargalhada:

– Mais? – depois me olhou profundamente, com total seriedade: – Durante todos esses anos eu assisti calada. Você amando uma pessoa que não te merecia, que te usava, que te fazia de idiota. Quando a Sandra sumiu eu pensei: “Finalmente!”, mas foi pior, muito pior! Porque você se esqueceu de tudo, das brigas que vocês tinham, de todas as vezes que você me procurou chorando, das coisas horríveis que ela te dizia, das noites que passava esperando por ela em casa, sem saber direito onde ela estava… Você mergulhou num luto absurdo, não pela Sandra real, mas por uma Sandra ideal que você inventou e que nunca existiu de verdade. Camila, a Sandra só estava com você porque você deu a ela estabilidade financeira…

Um grito escapou da minha garganta:

– Não! – Completei baixo. De forma bem mais controlada: – A Sandra me amava.

Fui imediatamente contestada:

– A Sandra te traía.

O tom dela foi duro. Seco. Me deixou completamente atordoada. Eu não queria acreditar:

– Como… Como você sabe? Como pode ter certeza? – O olhar dela foi claro, pleno em significado. Mas eu precisava confirmar: – Com você?

Demorou um tempo que pareceu durar a eternidade antes de Flávia finalmente proferir:

– Uma única vez.

Meu corpo deu três passos para trás… A sala toda tremeu, pareceu girar ao meu redor… Ela caminhou em minha direção:

– Mas não foi só comigo, Camila, tiveram outras, muitas outras. Várias!

As palavras saíram sozinhas da minha boca, sem que eu as coordenasse:

– Você… Você e a Sandra? Mas você… Você acabou de me dizer que…

Quando dei por mim Flávia já me segurava nos braços:

– Eu te amo.

– Ah, que ótima maneira de demonstrar! Trepando com a minha mulher!

Tentei me libertar das mãos dela, mas ela não permitiu:

– Camila, olha pra mim! Me olha! – esperou até que eu obedecesse e falou baixo, de um jeito praticamente sussurrado: – Foi o mais perto de você que eu consegui chegar.

Olhei bem para ela, desci meus olhos para a boca, e o pensamento foi inevitável: aqueles lábios tinham beijado os de Sandra, tinham passeado pelo corpo de Sandra, assim como as mãos que me seguravam… Podia sentir o calor, quase ardor da pele dela, o hálito em meu rosto, a respiração alterada…

De algum lugar indeterminado, provavelmente do apartamento ao lado, uma música que reconheci com facilidade irrompeu altíssima, reboando quase: “Foxy Lady” (Jimmy Hendrix), no mesmo instante em que puxei Flávia para mim, segurando-a pela nuca… Busquei a boca, mordi os lábios, suguei… Ela entreabriu os dela, permitindo que minha língua entrasse… Correspondeu intensamente e depois tomou a ação para ela… As mãos se enfiando debaixo da minha blusa, tocando meus seios… Me agarrei mais ao pescoço dela, que gemeu… Caminhamos até o quarto, sem interromper as carícias e os beijos… Caímos juntas na cama, ela por cima de mim… Arrancou minha blusa, fiz o mesmo com a dela, de forma quase desesperada… Giramos, eu fiquei por cima… Desabotoei o jeans que Flávia usava, o desci puxando a calcinha junto antes de também me despir e deitar puxando-a sobre mim, nós duas já inteiramente nuas… Ela começou a se esfregar e foi então que explodiu, não consegui mais segurar:

– Foi assim? Foi? Foi assim que você fez com ela?

Primeiro Flávia ficou paralisada, depois se desvencilhou e se sentou na cama, me dando as costas. Por um instante pensei que ia se levantar e se vestir… Mas não.

Foi rápido… Antes que eu pudesse prever. Ela se virou e me fez deitar de novo, ficou inclinada sobre mim, uma das mãos apoiando o peso do próprio corpo, a outra em minha cintura… Olhou bem dentro dos meus olhos e perguntou:

– É isso que você quer? Saber como foi? – Eu não respondi. Não sei precisar o tempo que durou… O silêncio doloroso que pairou entre nós… Enquanto nossos olhares duelavam, um dentro do outro… Flávia o quebrou, afirmando num tom íntimo, narcotizante, roucamente erótico: – Vou te mostrar então…

Desceu sobre mim… Me beijou com intensidade… Eu estremeci e retribuí… Com uma excitação quase mórbida… Imersa num misto insano de curiosidade, raiva, vingança… E em busca de elos partidos e perdidos, que jamais voltariam a ser os mesmos… Me entreguei completamente…

Fiquei observando Flávia se vestir. Nós duas numa mudez absoluta. Permaneci imóvel, ainda nua e deitada na cama. Ela perguntou:

– Vamos conversar agora? – não respondi. Sentei e fiquei olhando para ela, sem conseguir sentir nem pensar, como se estivesse em suspenso: – Não? E o que fazemos com isso que aconteceu?

Dessa vez eu respondi. Sem hesitar:

– Fica só entre nós duas.

Ela riu:

– Você sabe muito bem que não éramos só nós duas, Camila. – Fez uma pausa antes de continuar, como se falasse para si mesma: – Fui pra cama com a Sandra pra ter um pouco do que eu sempre quis: você. Hoje eu te tive, de verdade. E você trouxe a Sandra junto. – Voltou a rir: – Não é irônico?

A grande ironia era que a primeira vez com Sunny tinha sido igual…

Foi então que eu soube. Naquele instante:

– Foi a minha última vez com a Sandra.

Flávia me olhou profundamente. A voz soou afetuosa, suave, doce:

– Que bom.

Devolvi o olhar:

– Não quero mais falar.

Nesse momento ela, que sempre tinha me compreendido tão perfeitamente, interpretou a minha intenção de forma totalmente errônea. Sentou na cama e sussurrou, inegavelmente insinuante:

– Não? O que você quer então?

Fui direta, agressiva, propositalmente rude. Queria magoá-la. Naquele momento, a ideia de fazê-la sofrer me parecia… Deliciosamente boa:

– Quero que você vá embora.

O sorriso que Flávia me deu foi distorcido, quase um esgar. Assentiu com a cabeça, ficou de pé e saiu sem dizer mais nada.

Não me vesti, caminhei nua pela casa, sem reconhecer as paredes vazias. Percebendo o quanto estava perdida, sozinha, vazia… Há anos. Quase uma vida.

Nunca tinha conhecido Sandra. Nem Flávia. Depois de minhas últimas atitudes, tampouco me reconhecia.

Era como se tivesse vivido durante muito tempo em outra dimensão, que na verdade, sequer existia. Precisava… Voltar a descobrir a realidade… Encontrar… O caminho que me levasse de volta… Para mim mesma… Que me tornasse possível conviver comigo.

Fui até a cozinha, peguei uma garrafa de vinho e abri. Levei-a até a sala, onde a larguei no chão, junto com duas taças, na frente da aparelhagem de som. Vasculhei as caixas de papelão à procura, até achar o que eu queria: minha foto preferida de Sandra. Um close, os olhos dela brilhando e me olhando daquele jeito que sempre tinha feito meu coração doer, mas que naquele momento não surtiu o mesmo efeito, apenas me fez constatar, com um distanciamento surpreendente, o quanto ela tinha sido infernalmente linda…

Escolhi a música com uma ironia sarcástica: “Love of My Life” (versão do Scorpions). Sentei no chão com a foto em uma das mãos. Com a outra enchi as duas taças, o líquido vermelho dando a cor certa à situação. Voltei a olhar para a foto, tentando determinar o que estava sentindo, mas fui completamente incapaz de encontrar uma definição satisfatória. Só sabia que o rosto, os olhos de Sandra, agora me pareciam desprovidos do antigo fascínio. Estendi o braço, peguei a vela aromática e os fósforos que sempre ficavam sobre a mesinha. Acendi. Observei a pequena chama aumentar e tremular… O cheiro de rosas surgiu, invadiu o ambiente… Peguei a imagem de Sandra novamente e, olhando para ela, proferi baixinho:

– Vadia.

Antes de encostar a pontinha no fogo, que lambeu a fotografia devagar… Foi subindo… Lentamente… Até só restarem… As cinzas.

Peguei as duas taças e brindei, bebi de uma só vez a minha. A dela deixei no chão, junto com os restos de papel queimado e a vela que apaguei antes de ir para o meu quarto tentar dormir.



Notas:



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