ALÉM DAS PALAVRAS

1. A noite está só começando

A loira no bar sorriu para ela. Os olhos claros percorriam sua figura com malícia e Aléxia retribuiu o sorriso com a mesma quantidade de sedução que havia em seus lábios vermelhos, imaginando o sabor daquela boca e os segredos que aquele olhar escondia.

— Devia ir falar com ela.

Vivian lhe sorriu do outro lado da mesa; seus grandes olhos castanhos brilhando intensamente, enquanto se aconchegava mais ao abraço do namorado, Mateus. Ele, por sua vez, se limitou a tomar outro gole de cerveja, enquanto deixava escapar um som abafado entre os lábios, fazendo-a recordar o relincho de um cavalo.

— Não estou no clima, Vivi — respondeu, fincando as unhas na calça preta que usava, os lábios se contraindo, ligeiramente, após liberar um suspiro.

Vivian esticou o braço sobre a mesa e tocou sua testa, com uma expressão afetada. 

— Está pior do que pensei. A Aléxia que eu conheço, não dispensaria uma gata como aquela. — Riu, ao receber um safanão da amiga.

— Você fala como se eu não pudesse ver um rabo de saia! — Fez um bico, ofendida.

— Não é bem assim — Vivian retornou para os braços de Mateus. — Você não é dessas, mas nunca dispensou uma boa paquera. Pensando bem, — escorregou um dedo pelo queixo — às vezes acho que você deveria tentar ser um pouco mais mulherenga, talvez acabasse conhecendo alguém por quem valeria mesmo a pena se apaixonar.

E lá estava a verdade sendo atirada em sua face como um sonoro e doloroso tapa, porém, Vivian exibia um sorriso quase angelical.

— Estava mesmo demorando — comentou, desgostosa, e se endireitou na cadeira. A madeira do encosto pressionou sua coluna, desconfortavelmente.

Vivian desprezou o comentário com um dar de ombros. Às vezes, achava que Aléxia precisava de umas “sacudidas” para cair em si, e não se poupava do esforço.

— Não vou repetir o que penso. — Declarou. — Você já conhece cada vírgula e ponto que a minha opinião contém, mas acho que deve ir a esse casamento e pôr um fim nessa história de uma vez por todas.

Aléxia espalmou as mãos na mesa e revirou os olhos.

— Você disse que não ia repetir a sua opinião — se queixou.

— É mais forte que eu! — Sorriu.

— Nós já conversamos sobre isso e eu não quero ir — cruzou os braços, baixando o olhar para a mesa.

— Ele é seu irmão. Se fosse meu casamento, iria querer que a minha “única” irmã estivesse presente — Mateus resolveu participar da conversa, deixando a bebida de lado por um momento e Aléxia o observou por um instante, fingindo que não o achava irritantemente grosso e idiota na maior parte do tempo. Analisou o rosto bonito com a barba bem aparada, os cabelos grossos e negros, cortados um pouco acima das orelhas. Era alto e tinha músculos evidentes, apesar da barriguinha de cerveja. Vestia-se como se tivesse acabado de sair do escritório, mas trabalho era uma palavra que não existia no dicionário dele, já que vinha de uma família abastada e a coisa mais pesada que já tinha carregado, em toda sua vida, era uma prancha de surf.

— Mesmo que a sua irmã já tivesse dormido com a sua noiva? — Perguntou, ácida.

Ele deu de ombros, com um sorrisinho cafajeste.

— Passado, puro e simples! — Declarou.

Ela sorriu, cética.

— Gostaria que fosse tão simples assim. Alberto nunca soube que Lis e eu namoramos. E, como a idiota aqui nunca a esqueceu completamente, acho que não serei capaz de segurar a barra e acabarei me entregando. É por isso que não quero ir — admitiu, com voz cansada.

Queria mesmo era esquecer aquele assunto e fingir, por uma noite, que estava tudo perfeitamente bem e normal na sua vida.

— Você é mais forte do que quer admitir. Se não fosse assim, já teria atirado a verdade na cara deles. Além disso, a cerimônia é daqui duas semanas e todos estarão te esperando. Não apenas porque é irmã do noivo, mas, também, porque vai ser a madrinha dele.

— Que desculpa pretende dar? Espero que seja muito boa — quis saber Vivian.

Ela encheu as bochechas de ar e o liberou devagar, balançando os ombros.

— Sei lá! Morri? Tive um infarto fulminante? Fui sequestrada por aliens? Ainda não pensei sobre isso — tomou um gole da sua caipirosca que, havia algum tempo, não tocava. O sabor estava aguado, pois o gelo tinha derretido completamente e pôs o copo de lado.

Vagou o olhar pelo bar se deixando consumir pela raiva que sentia de si mesma por nunca ter conseguido se livrar do fantasma de Lis. Sabia que Vivian estava certa e tinha de enfrentar seu medo de reencontrá-la, mas sempre foi um pouco covarde em relação a ex e, francamente, não achava que ser corajosa ajudasse seu coração a sofrer menos pela decepção que ela lhe causou. Apesar dos anos, aquela ainda era uma ferida aberta e pulsante em seu peito.

Havia música ao vivo, àquela noite. O lugar estava começando a ficar insuportavelmente lotado, deixando-a ansiosa por um pouco de ar puro. A loira do bar tinha perdido o interesse e estava distraída conversando com outra garota. Pelo modo como se olhavam, não demoraria muito para que procurassem um lugar mais reservado.

Seu bom humor havia se esvaído e já começava a pensar em uma desculpa para dar e ir embora, quando Vivian comentou:

— Acho que uma companhia te faria bem.

Suas palavras lhe trouxeram de volta à mesa, com um olhar curioso e as sobrancelhas arqueadas.

— Do que está falando?

— Você sabe, uma namorada. Aquele “serzinho” mágico que faz borboletas baterem asas no estômago, sorri ao te ver acordar toda descabelada e remelenta e atura suas crises de TPM e caipirice — piscou para ela, com um sorriso levado. — Você já teve uma dessas, pena que foi a pessoa errada.

Ela suspirou, ainda mais mal-humorada.

— Me sinto ótima sozinha. Obrigada! Você não tem outro assunto, não?

Vivian cruzou os braços, sorrindo cinicamente.

— Claro que tenho! Mas, é sobre isso que quero falar.

— Qual é, Vivi?! Estamos em um bar! Bebida, música e gente bonita pra todo lado. Me erra um pouquinho! Me sinto bem do jeitinho que estou.

— Mas é claro que não se sente. O que você precisa é de uma boa noite de sexo com uma mulher que esteja ao seu lado quando acordar e que você “saiba” o nome.

— Onde quer chegar com isso?

— Você sabe muito bem.

E ela sabia mesmo.

Nos últimos cinco anos, teve vários relacionamentos rápidos e muitas transas de uma noite. Ninguém ficou muito tempo em sua vida para que pudesse se apaixonar, e o motivo era simples: Lis.

Ela foi seu primeiro amor e o modo como o namoro acabou, a marcou de tal maneira que sentia que jamais seria capaz de amar outra pessoa da mesma forma. Acabava fazendo comparações entre suas namoradas e a ex, o que abria caminho para o fim das relações.

A cruel verdade era que, esses relacionamentos, já começavam fadados a serem rápidos e infelizes. Pelo menos, a maioria deles.

Um pequeno fio de dor começou a se insinuar em sua cabeça e massageou a têmpora devagar, em busca de um pouco de alívio. Odiava quando Vivian a obrigava a ter aquele tipo de conversa e isso vinha se tornando frequente. Principalmente, após o anúncio do casamento do seu irmão, Alberto, com Lis.

Ele jamais soube que roubou a namorada da irmã e Aléxia fez de tudo para evitar que isso acontecesse. Mesmo lhe doendo, a felicidade dele era importante demais para ela e não permitiria que Lis o destruísse também.

Mas, era inegável que Lis ainda ocupava seu coração. Talvez não fosse o mesmo sentimento, puro e inabalável, de antes, mas ainda a amava. E isso a fazia tremer, só de imaginar estar ao lado do irmão no altar, testemunhando aquela que tinha sido o grande amor de sua vida se entregar em matrimônio.

Mateus deixou escapar um sorriso insosso e acenou, euforicamente, para alguém atrás dela. Levantou, pedindo licença com voz arrastada, e se foi no meio do salão, travando uma pequena batalha para atravessar a multidão que dançava embalada pela música e álcool. Normalmente, Vivian o teria vigiado, ciumenta como era, mas ela não moveu um músculo. Seus olhos estavam fixos nela.

— Você é irritante, sabia disso? Parece um cão que não quer largar o osso.

Vivian gargalhou alto, balançando a longa cabeleira ruiva, recém pintada. Não estava, de modo algum, magoada com a comparação.

— Tudo o que quero é te ver feliz — resumiu, fazendo um carinho rápido na mão dela.

Aléxia engoliu em seco, curvando os ombros.

— Eu sei…

A amiga prendeu sua mão entre as dela, fazendo círculos invisíveis com o indicador, apertando-a com carinho.

— Eu te amo, sua boba! — Sorriu, traquina.

Era quando Vivian lhe falava daquele jeito, com aquele sorriso, que se sentia grata pelo infeliz acidente que as uniu, cinco anos antes. Sabia que ser distraída e quase morrer atropelada por um ônibus, não era motivo de comemoração, mas, naquele caso, era. Aquele infeliz episódio, lhe trouxe uma grande amizade.

— Também te amo! — Retribuiu o carinho e o sorriso. — Você tem razão, não posso me esconder de Lis e Alberto para sempre.

— Então, você vai? — Vivian perguntou com expectativa, encolhendo os ombros com ansiedade.

— Sim! — Decidiu, finalmente.

Não seria fácil, mas era necessário e Vivian deu um gritinho de aprovação.

— Essa é a minha Aléxia!

Contagiada pela alegria dela, Aléxia riu do seu exagero.

— Então, isso quer dizer que irá comigo?

— Mas, é claro! Sua mãe me enviou um convite, lembra? Além disso, já comprei o meu vestido e tenho que usá-lo logo porque ele é lindo!

Aléxia riu gostosamente, balançando os ombros involuntariamente. Vivian sabia como animá-la e tê-la ao seu lado no casamento a ajudaria a enfrentar tudo com mais calma e bom senso.

— Agora, só precisamos te arranjar uma companhia.

— O quê?!

A risada da ruiva superou a música alta por um breve instante.

— Ora, estou apenas brincando — disse ao se recompor.

Contudo, Aléxia conhecia a amiga bem demais para saber que aquele olhar sapeca significava que estava aprontando alguma coisa.

— Para onde o Mateus foi? — Perguntou, concluindo que mudar de assunto seria mais saudável para sua vida amorosa ou a inexistência dela.

A amiga olhou para além dela e respondeu, serenamente:

— Ele reencontrou uma amiga e estão conversando perto da porta.

— Amiga, é? Deve ser muito amiga mesmo para você não estar bufando de ciúmes — comentou com um sorrisinho malvado.

A moça a olhou afetada.

— Eu não tenho ciúmes!

— Sei.

— Tenho cuidado, é diferente. Além disso, eles são mesmo amigos. Se conhecem desde a infância.

Como se o que Vivian tinha acabado de falar fosse uma deixa, Mateus retornou à mesa com sua amiga. Curiosa, Aléxia ergueu o olhar.

A primeira coisa que notou foi o vestido, que era vermelho e levemente decotado. Viu, de relance, as curvas de seios firmes e pequenos. Os cabelos eram longos, lisos e loiros, caindo em uma perfeita cascata sobre os ombros dela. Seu rosto era perfeito, possuía uma espécie de beleza clássica que, muitas vezes, a lembrou das mulheres eternizadas por grandes pintores e escultores da história. Entretanto, também era a face de algumas lembranças tristes e dolorosas.

Com angústia, sentindo o coração acelerar e o estômago se contrair, se deu conta de que a amiga de Mateus era a sua pior inimiga.

Vivian, como era esperado, se apressou em recebê-la com beijinhos e um abraço, os quais ela correspondeu educada e alegremente, mas com os olhos fixos em Aléxia. Seu olhar verde esmeralda brilhava intensamente com um misto de simpatia e curiosidade.

Aléxia buscou naqueles olhos, algum indício do seu costumeiro desprezo, mas nada encontrou. Nem por isso, se sentiu menos incomodada com sua presença. Suas bochechas ardiam de raiva, mas, ao contrário do que teria feito em outra época, não desviou o olhar do dela.

Mateus puxou uma cadeira para ela, ao seu lado. A moça sentou com elegância, deixando o braço esbarrar, levemente, no seu ombro. Ele retornou para seu assento e apressou-se para apresentá-las, notando o descuido.

— Nicole, esta é…

— Aléxia! — Nicole completou e deixou um sorriso de dentes perfeitos, rachar os lábios carnudos e vermelhos, como o vestido que usava. — Já faz muito tempo.

— Não tanto quanto eu gostaria — Aléxia respondeu com azedume e puxou a cadeira um pouco mais para o lado, ansiosa por colocar a maior distância possível entre elas.

Mordiscou o lábio e bateu o pé, nervosa. Tentou, mas não conseguiu ignorar o quanto o tempo havia feito bem a velha inimiga. Nicole estava ainda mais bonita do que se lembrava. Tinha ganho alguns quilos, principalmente músculos, o que a deixou mais curvilínea e atraente.

O vestido que usava, moldava-se ao seu corpo como se fosse uma extensão de sua pele, seduzindo os que estavam próximos. Pois, não deixou de notar, pelo menos, meia dúzia de olhares de cobiça nas outras mesas quando ela sentou ao seu lado.

Nicole preencheu o ambiente com o som da sua risada. Um riso cristalino e cheio de vida, que não possuía o tom de deboche que tantas vezes usou quando Aléxia estava por perto.

Desconcertado e curioso, Mateus olhava as duas com interesse, enquanto Vivian fazia a pergunta óbvia:

— Vocês já se conhecem?

— Infelizmente — foi a resposta ainda mais azeda da amiga. Suas mãos estavam tremendo e ela as escondeu em baixo da mesa. Era o “efeito Nicole”, que sempre a deixou desconfortável e não era diferente naquele momento.

Nicole riu novamente e afastou uma mecha de cabelo do rosto, brincado com ela por alguns segundos.

— Não posso acreditar no quanto este mundo é pequeno. Jamais poderia ter imaginado que você e Mateus são amigos — molhou os lábios com a ponta da língua de um modo provocativo. — Isso é interessante.

Seus olhos verdes, brilhavam divertidos, e um sorriso provocador bailava em seus lábios, acentuando o vermelho do batom que usava. Era o mesmo sorriso que tantas vezes usou para provocar Aléxia nas aulas, festas e pensão que compartilharam por quatro anos.

A tensão entre elas era quase palpável, não era preciso ser muito observador para nota-la. Não eram só suas palavras, mas seus gestos e olhares também irradiavam a rivalidade que, apesar de tantos anos, ainda existia. Vivian sorriu sem graça com a situação. Já Mateus, limitou-se a pedir outra cerveja, como se estivesse se preparando para assistir um jogo de futebol no sofá de casa.

Incomodada, Aléxia ficou de pé rapidamente. O mundo deu um pequeno giro diante dos seus olhos; até aquele momento, não havia sentido os efeitos da bebida que consumiu com um pouco de exagero durante parte da noite. O aperto firme da mão de Nicole impediu que caísse e, logo que se recuperou da tontura, puxou o braço bruscamente, se afastando dela como se tivesse sido picada por um inseto. Não queria e não precisava de sua ajuda.

Cruzou o salão, intempestivamente, sentindo o ar lhe faltar e entrou na primeira porta que encontrou, o banheiro. Vivian a seguiu de perto, preocupada com seu rompante.

— Você está bem?

— Não! Definitivamente, não! Nunca me senti bem com essa mulher por perto — respondeu, enxugando o suor do rosto com uma toalha de papel.

Pelo espelho, viu o olhar desconcertado da amiga.

— Você não gosta mesmo dela, hein? Que foi que ela te fez?

Aléxia começou a recompor a maquiagem, enquanto respondia com uma voz estranha, quase ausente.

— Lembra-se da garota que te falei? Àquela que tornou minha vida um inferno na faculdade?

Vivian permaneceu em silêncio por alguns segundos, revirando suas memórias.

— Sim, o que tem ela? Não, espera! Você quer dizer que a Nicole é essa garota?!

Um sorriso desolado visitou os lábios de Aléxia que murmurou uma afirmação e se dedicou a colocar o batom.

— Qual é?! Nicole? Não dá para acreditar, ela é…

— Uma víbora! É isso que ela é. Não se deixe enganar pelo rosto bonito e sorriso cativante.

Fitou-se no espelho. Olhos azuis acinzentados a encararam de volta, satisfeitos em perceber que o mal-estar que a presença de Nicole lhe causou não era mais visível. No entanto, todo o seu interior se revirava.

— Você quer ir embora?

Voltou-se para a amiga. Era claro que queria ir embora. Desejava, ardentemente, poder colocar a maior distância possível entre ela e aquele pesadelo em forma de mulher, mas seu orgulho não permitiria.

Não era mais uma estudante e não estava disposta a fugir da presença dela, apenas por não querer se indispor com uma colega de residência.

— Quero, mas não vou.

Minutos depois, Nicole lhe sorriu largamente ao vê-la sentar-se ao seu lado, novamente.

— Pensei que tinha ido embora — comentou.

Aléxia retribuiu o sorriso, deixando que ele maquiasse seus reais sentimentos.

— Não mesmo, a noite está só começando — ergueu a mão, chamando o garçom.



Notas:

Olá, amores!

Enquanto “O Castelo do Abismo” não é atualizado, perdão por isso, resolvi postar uma nova/velha história. Como algumas de vocês devem saber, esse texto foi publicado anteriormente com o título “Maktub” em 2015. Esta é a segunda versão dele, que escrevi para postar no extinto Wonderclub. Atualmente, estou revisando ele para uma “sonhada” publicação em livro. Óbvio, muito do que vocês irão ler, será diferente.

Teremos postagens semanais, possivelmente nas quartas ou aos fins de semana.

Beijos e obrigada pela companhia.




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2 Respostas para 1. A noite está só começando

    • Eu fico muito feliz que não a tenha esquecido e espero que goste das alterações, que não são tantas assim. Se o livro realmente sair, vai ser bem diferente disso aqui.

      Beijão e obrigada por me acompanhar!

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