ALÉM DAS PALAVRAS

11. SOB A LUZ DO LUAR

A água deslizou suave e prazerosamente por seu corpo e deixou-se ficar em baixo do chuveiro, curtindo aquela “carícia” morna por algum tempo. O sorriso dominava sua face desde que deixou Aléxia. Ainda tinha o coração acelerado e aquela sensação indescritível que percorria suas veias com todo o encantamento que o momento lhe trouxe. 

Sentia-se uma adolescente outra vez. 

Demorou-se no banho o máximo possível, temendo sair e encontrá-la furiosa e disposta a pôr um fim naquele namoro fingido que estava amando. Contudo, não foi Aléxia que encontrou ao sair do banho. 

Mateus estava jogado na cama, concentrado na tela do celular, que exibia um jogo de corrida qualquer. Ergueu o olhar quando a porta do banheiro se abriu para lhe dar passagem e ela deu um gritinho pelo susto e soltou um palavrão que o amigo respondeu com outro, exibindo um sorriso metido. 

— Você me deu um baita susto, sua peste! Cai fora, preciso me trocar. 

Ele jogou o celular ao lado das pernas compridas e enfiou os braços atrás da cabeça, se apoiando no encosto da cama. 

— Você não tem nada que eu já não tenha visto, Nico. Além disso, já te vi sem roupa antes. 

Ela revirou os olhos. 

— Eu tinha cinco anos, seu pervertido! 

O amigo gargalhou. 

— Fique à vontade, gata. Olhar para você sem roupas, seria como olhar para a minha irmã — fez cara de nojo —, não corre perigo algum. 

— Babaca! — Lhe atirou uma almofada que estava sobre uma poltrona a um canto do quarto. — Então, se cansou de ser o amigo das farras e alegria e, agora, quer oferecer seus ombros e ouvidos para os dramalhões e lágrimas? 

Ele gemeu alto, deixando o sorriso de lado. 

— Devo ser muito fácil de ler mesmo. Você e Vivi sempre sabem o que estou pensando! 

— Você é transparente como uma porta de vidro. — Jogou a toalha sobre a cama e, apesar das afirmações, Mateus desviou o olhar para a janela, arrancando uma risada cristalina da amiga. 

— Sim — ela disse, após algum tempo. 

— Sim o quê? 

Ele mirava a lua no firmamento, concentrado na luminosidade prateada. Tinha gostado daquele lugar. Não era do tipo que apreciava a vida no campo, mas gostou daquele sossego ao longo do dia. 

— Sim, eu a beijei. E a verdade, meu amigo, é que sonhei em fazer isso por dez anos. 

Mateus retornou o olhar para ela, que já se encontrava parcialmente vestida. Coçou a face, a barba fazendo barulho ao entrar em contato com as unhas. 

— Que saco! — Falou. 

Nicole poderia beijar um cavalo, uma parede ou a cinderela, que jamais se importaria. Seria escolha dela e não lhe dizia respeito, mas estava irritado consigo mesmo por não ter notado que a amiga tinha uma quedinha pelo sexo feminino. 

— Que foi que eu perdi? 

Ela gargalhou, novamente, e lhe contou. Quando acabou, o ouviu rir alto, enquanto deslizava a mão pelo seu cabelo, ainda úmido. Tinha se jogado na cama, repousando a cabeça em seu colo. 

— Cara, sou um tapado mesmo! 

A amiga lhe fez um carinho no queixo. 

— Verdade! Mas é um tapado bonitinho! 

Mateus aumentou a velocidade do afago que fazia em sua cabeça e Nicole se permitiu relaxar com o carinho. Fechou os olhos por um longo tempo; poderia ter dormido, mas ainda estava inebriada demais com o beijo que ousou dar em Aléxia. 

— Eu a amo — sussurrou, deixando um sorriso largo vir aos seus lábios. 

Ele achou engraçado ouvi-la falar daquela maneira de alguém, ainda mais de uma mulher, principalmente, de Alexia. Mas depois do que ouviu, algumas coisas ficaram bastante claras. 

Perderam o contato por muito tempo, mas sempre esbarrava com um de seus irmãos em festas. Numa delas, beberam demais e o rapaz lhe contou algumas coisas quando lhe questionou sobre a amiga. Mateus estava muito bêbado na ocasião, mas não o suficiente para que esquecesse o que lhe foi dito. 

Depois que se reaproximaram, questionava-se se aquilo era verdade. Agora tinha certeza que sim, embora ela nada tivesse dito a respeito daquele assunto. 

— A amo desde a primeira vez que a vi, dez anos atrás, no primeiro dia de aula da faculdade. Mas fui cega e covarde demais para assumir meus sentimentos e a magoei de todas as formas possíveis — sorriu triste e viu as sobrancelhas dele juntarem-se. 

— Não consigo te imaginar fazendo mal a alguém — ele mordiscou o lábio, as sobrancelhas ainda unidas. 

— Às vezes, o medo de nossa própria natureza nos transforma — comentou, pensativa. 

*** 

— Posso sentar? — Vivian indagou, notando a aparência cansada da amiga. 

Aléxia ergueu o olhar, soprando o ar. 

— Depende. Você vai me contar a verdade sobre os motivos que a levaram a forçar a presença de Nicole nesta viagem e em outras ocasiões antes disso? 

Quanto mais pensava sobre o dia ao lado de Nicole e nas mudanças que observou nela, mais tinha certeza de que Vivian sabia de algo. Depois daquele beijo, suas dúvidas sobre Nicole aumentaram, deixando-a com dor de cabeça de tanto pensar nela. 

A amiga deu de ombros e se acomodou ao seu lado. 

Aléxia estava jogada em um banco, na varanda que circundava a casa. Tinha um olhar meio perdido e os cabelos úmidos pelo banho recente, que tomou no quarto da mãe, pois não queria conversar com Nicole naquele momento em que se encontrava uma pilha de nervos pelo que ela tinha feito. Então, aproveitou o banho dela para pegar suas roupas rapidamente e sair, esbarrando em Mateus no corredor. 

O amigo lhe deu um sorrisinho amarelo e entrou no quarto, aboletando-se na cama, como se fosse dono do lugar. 

— Que foi? Ela não beija bem? — Vivian brincou e a amiga a fitou com tanta fúria que, se fosse possível, teria virado pó. 

Exalou e tomou a mão dela, ignorando o muxoxo que fez. Notou a mão fria e ligeiramente trêmula. Não precisava de palavras para saber que tinha se deixado mergulhar em seus medos, anseios e dúvidas. Principalmente, depois que Nicole a beijou. 

— Só posso te oferecer a verdade que me cabe. 

Afastou-se para olhá-la melhor. 

— A procurei depois que você me deixou conversando com a porta, após aquela noite no bar. Conversamos por um bom tempo em que ela me falou das coisas que fez com você, do quanto estava arrependida e queria o seu perdão. Foi por isso que forcei sua presença. Acho que ela precisa lhe contar certas coisas e você precisa saber delas. Todo o resto, foi culpa sua e só pensei em te ajudar. 

Ela piscou focalizando seu rosto pela primeira vez, desde que sentou. 

— O que ela te contou? 

— Não é minha história, Alê. Deixe que Nicole conte quando chegar o momento. 

À contragosto, a moça balançou a cabeça, concordando. Contudo, não podia se privar daquela curiosidade e da confusão de sentimentos para a qual as atitudes de Nicole a arrastaram. 

O jantar estava sendo servido em baixo da jaqueira, novamente. Admiraram o vai e vem de pessoas por algum tempo, unidas pelas mãos. Vivian fazia um carinho singelo na amiga, questionando-se o quanto aquele beijo a tocou. Pelo modo como Aléxia parecia ausente, foi muito mais do que deixava transparecer. 

— Ao longo deste dia e antes disso, também, ela falou algumas coisas. Deu a entender outras, me enchendo de dúvidas. Então, me beijou. — Passou os dedos sobre os lábios; ainda sentia o gosto e o calor de Nicole neles. — Aquela mulher não podia ficar na mesma sala que eu sem demonstrar todo o seu desprezo e, agora, me beija. Estou falando de um beijo de verdade; um beijo de tirar o fôlego! 

— Um beijo que mexeu muito contigo, pelo visto — pontuou o óbvio. 

— Não mexeria com você, se estivesse em meu lugar? 

A amiga assentiu. Com certeza, ficaria desnorteada. 

— Vivi, a Nicole é gay? — Passou a mão pelos cabelos, desalinhando-os. — Porque se ela for, acreditarei que enlouqueci. 

Vivian riu alto. Perguntando-se se devia ou não contar o que viu meses antes. 

— Se ela é ou não, vocês formam um casal muito bonito! — Provocou. 

Aléxia revirou os olhos. 

— Não começa — suspirou, irritada. 

— Eu não sei mesmo, Alê. 

Era verdade. Nicole nunca lhe disse algo definitivo quanto a sua sexualidade, apenas revelou o que sentia por sua amiga e que tinha envolvimento com algumas mulheres, que queria conquistá-la e namorá-la, mas nunca se definiu como uma coisa ou outra. 

— Só posso te falar o que vi. 

— E o que você viu? 

A curiosidade brilhou em seus olhos. 

— Vi ela beijar uma mulher há um tempo. Estávamos em uma boate, comemorando o aniversário de um amigo do Mateus. Quando percebeu que assisti, a tal mulher já tinha se afastado, e me disse que era uma “ficante”. 

Não sabia se aquilo a assustava, enojava ou enlouquecia. O fato era que seu estômago se revirou ao imaginar Nicole beijando outra mulher. 

Vivian continuou: 

— Se ela é ou não lésbica, se está se descobrindo, se está brincando, se é bissexual, não interessa. Ela está aqui para te ajudar e se te beijou e te abalou dessa forma, sugiro que tire um tempo para repensar sobre seus sentimentos por ela. 

Aléxia se empertigou. 

— Não há o que repensar. É verdade que me presta um favor, um grande favor, mas isso jamais irá mudar o passado. No momento, tudo o que sinto por ela é gratidão por isso. Posso estar cogitando reatar a amizade que tivemos no passado, mais nada. Então, seja lá o que está insinuando, pode ir esquecendo. 

A amiga suspirou. Odiava a cabeça dura dela, que se negava a ver a verdade que Nicole lhe apresentava e, também, a verdade que estava lhe expondo naquele momento. Era uma surpresa para Vivian, mas estava claro como um dia de sol, que a amiga se sentia mexida com aquele beijo e o motivo não tinha nada a ver com toda a história que existia entre as duas. 

— Continue pensando assim e perca uma grande oportunidade de se livrar das suas mágoas. Tem razão, o passado não pode ser apagado, mas o futuro pode ser reescrito. — Se pôs de pé. — E se não tivesse te estremecido, não estaria doida por respostas, nem ficaria olhando para a porta à espera dela, como fez a cada dois minutos, na última meia hora. 

*** 

Nicole surgiu meia hora depois, agarrada ao braço de Mateus. Aléxia conversava com um de seus primos e alguns amigos de seu irmão quando a viu. Tinha se enfiado no meio do grupo para escapar de Lis, que a abordou por duas vezes, pedindo para conversarem em particular. 

— Você namora aquela gata?! — Indagou seu primo, Miguel, e outros comentários foram disparados pelos rapazes. 

Foi o suficiente para que ela os olhasse torto. 

— É da “minha” namorada que estão falando! 

Vivian, que se aproximou alguns segundos antes, prendeu um risinho. 

Aléxia revirou os olhos para o primo. Miguel era um pouco exagerado e sempre gostou de mexer com ela, mas estava mesmo impressionado com a beleza da moça que se aproximava e largou o braço do amigo e juntou-se a “namorada”, depositando um beijo em sua face, se apossando de sua cintura em seguida. Nicole cumprimentou a todos com um sorriso de parar o trânsito, fez graça ao ser apresentada aos rapazes, mas não se afastou de Aléxia, cujos pensamentos tinham se voltado para as reações de seu corpo ante o contato dela.                    

Nicole assentou os lábios nos seus. Um beijo rápido e prazeroso que pensou em não corresponder, mas foi impossível resistir. A conversa tomou outros rumos com a participação de Mateus e Vivian e as duas ficaram à parte dela por alguns momentos. 

— Sentiu minha falta? — Nicole sussurrou ao seu ouvido, um “que” de sedução na voz. 

— Não sei qual é a sua, mas está brincando com fogo. — Avisou. — Pode acabar se queimando. 

— Sabe de uma coisa, “amor”, adoro brincar com fogo — sorriu, provocante. 

Fez menção de se afastar, mas a “namorada” a puxou para mais perto, então envolveu sua cintura completamente e a fitou, muito séria. 

— Quero ter uma conversa longa contigo quando esse teatro acabar. 

— Devo supor que gostou do meu beijo e concluiu que não pode mais viver sem ele, então vai mesmo me propor casamento? 

— Acho que você me deve algumas verdades. 

— Te devo muitas coisas, Alê! Mais do que imagina. 

Um misto de raiva e alegria por estar junto a ela e a vontade de receber outro beijo e a estapear se digladiavam em seu interior. Nicole decidiu por ela. Se afastou, tomando sua mão, enquanto se voltava para o resto do grupo. 

— Nós conversaremos. Eu prometo. 

A noite seguia agradável. As pessoas se reuniram em volta da fogueira, ouvindo música e conversando. Dessa vez, Lis se manteve à vista de Aléxia durante todo o tempo, em contrapartida, Nicole não saiu do seu lado. A moça a abraçava sempre que possível, deixando que aquele contato fosse interpretado como um gesto natural entre um casal e deixava um sorriso tomar sua face sempre que isso acontecia. 

— E ele ficou de pé, o barco balançou e nós caímos na água — Mateus riu alto, lembrando-se da cena que havia ocorrido naquela manhã. 

Segundo Victor, eles foram atacados por um enxame de abelhas e tiveram de se jogar na água para escapar, mas Mateus disse que se tratava apenas de uma abelha e que o rapaz havia se assustado porque era alérgico. Todos acompanharam seu riso quando ele fez uma pequena interpretação do desespero do amigo. 

— O que é tão engraçado? — Lis perguntou, se aproximando com Beto a tiracolo. 

Aléxia cessou o riso quase imediatamente, mas Nicole não se intimidou por sua presença e contou sobre a cena que Mateus descreveu, minutos antes, e houve uma nova onda de risos. 

— Vocês sumiram o dia todo — Alberto observou quando a conversa e o riso cessaram. 

Nicole abraçou Aléxia dando-lhe um beijinho na cabeça quando respondeu: 

— Nós fomos passear. Lex me levou a cidade e depois fomos nadar em uma cachoeira linda! 

Aléxia tentou não sorrir ao ouvi-la falar do passeio, mas o calor dela e o perfume a envolviam prazerosamente e viu-se rindo também, recostando-se mais nela. 

— Lex? Achei que somente Beto podia te chamar assim — Lis comentou, deixando uma nota de contrariedade perceptível na voz. 

De fato, Aléxia nunca permitiu que ninguém mais usasse o apelido que o irmão lhe deu. Quando Lis lhe perguntou a razão, quando ainda namoravam, respondeu que aquele apelido era como um presente que o irmão lhe dera na infância e que não gostaria de vê-lo dividir com ninguém. Para todos os outros, ela sempre foi Alê ou Aléxia, ninguém mais. 

Nicole abriu a boca para responder, mas Aléxia foi mais rápida. 

— Nico conquistou esse direito com muito amor — usou o apelido pelo qual Mateus sempre chamava a amiga. Sorriu, enquanto enlaçava a cintura da “namorada” e ficava na ponta dos pés para lhe dar um beijinho rápido na bochecha. 

Beto contraiu o maxilar, revoltado, mas obrigou-se a dar de ombros e sorrir sem perceber que a noiva também não havia gostado do comentário. 

— Eu não me importo de dividir esse privilégio, desde que a minha cunhada continue colocando esse sorriso lindo no seu rosto — mirou a loira. 

Aparentava gentileza, mas havia uma ameaça implícita na frase. Em provocação, Nicole bateu continência como se estivesse acatando uma ordem militar e todos riram, menos Lis que ainda dirigia ao casal um olhar quase mortal. 

— Mudando de assunto, adoro aquele lugar — Alberto comentou, referindo-se a cachoeira. 

— É realmente lindo — a irmã concluiu, relembrando que havia cinco anos não ia até o local, então deu-se conta de que a última vez tinha sido com Lis. 

Isso a teria deixado triste em outra época. Seria motivo para engolir um grande nó na garganta e lutar contra as lágrimas. Contudo, naquele dia, apesar do que tinha acontecido após o café da manhã e da discussão com Nicole em que ela foi o assunto principal, não pensou na ex-namorada, nem em seu beijo durante toda a tarde. Não tinha voltado sua mente para ela nem por um segundo àquela noite, até suas tentativas de aproximação. 

— Droga! Você me falou tanto desse lugar e acabei não indo — Vivian se queixou e Mateus estalou a língua, como se não tivesse importância. Pelo que a amiga lhe contou, o lugar era mesmo bonito, mas não se animava com a ideia de caminhar pelo mato para chegar lá. 

Aléxia riu e deu um abraço carinhoso na amiga brincando com o fato dela estar com tanta ressaca que se enfiou em sua cama como um coelho na toca. 

— Vocês podem ir na terça-feira — sugeriu Dona Alexandra, juntando-se ao grupo. 

— Não vai dar. Temos que voltar amanhã, logo após o casamento — Vivian informou e iniciaram uma discussão a respeito. 

Lis aproveitou a distração para se aproximar de Aléxia. 

— Então, se divertiu com a namoradinha psicopata? — Perguntou baixinho. 

Aléxia se surpreendeu ao vê-la tão perto e deu um passo atrás, sem deixar de sorrir ao perceber o olhar enciumado dela. 

— Muito. — Acrescentou malícia na voz. — Sabe como é, aquele lugar magnífico, só nós duas… Imagine que passeio “delicioso”. — Se estranhou e concluiu que estava convivendo demais com Nicole e suas provocações. Mas até que era divertido ver a ex engolir o próprio veneno. 

O olhar que ela lhe dirigiu poderia ter lhe atirado fogo a alma, mas não se intimidou. Estava cansada de sofrer por ela e, cada vez que conversavam, ela morria um pouco mais para si. 

— Precisamos conversar — afirmou e fez questão de pegar em sua mão e começar a guiá-la para longe dos outros. 

Aléxia obrigou-se a fincar o pé no chão e se desvencilhar do seu contato, apesar da curiosidade que lhe tomava. 

— Não temos mais nada para conversar — falou baixo e olhou em volta para se certificar que ninguém estava ouvindo. 

A cunhada tentou retrucar, mas Nicole surgiu como um furacão entre elas e puxou Aléxia, dizendo: 

— Adoro essa música! Vamos dançar? — Lançou um olhar de advertência para a outra, recordando que não tinha feito promessas vazias naquela cozinha. Enlaçou a cintura da namorada, colando seus corpos. Esta, por sua vez, não tinha percebido que a música era romântica até Nicole ditar o ritmo com seu corpo. 

Seguindo seu exemplo, Vivian e Mateus também resolveram dançar e Beto chamou Lis, mas ela argumentou estar cansada e foi sentar à beira da fogueira, então ele convidou a mãe, que aceitou de pronto. 

— Não precisa — Nicole falou e Aléxia lhe dirigiu um olhar confuso. — Não precisa agradecer. 

Aléxia riu. 

— Mesmo assim, obrigada. Mas tinha de ser uma música tão romântica? 

— Ora, não sei por que você se queixa, já que está desfrutando uma amostra grátis do calor do meu corpo. 

— Desfrutar não é bem o que estou fazendo, mas admito que você dança muito bem. E falando em calor do seu corpinho, tive muito dele na noite passada. Fui, praticamente, uma refém dele, já que você me esmagou à noite toda. 

Nicole riu gostosamente atirando a cabeça para trás e seu perfume invadiu os sentidos da “namorada”. Era um tormento de tão delicioso. 

— Você não reclamou até este momento, então vou supor que gostou imensamente disso. 

— Ainda sinto dores na coluna — retrucou. 

Malícia tomou a face da outra. 

— Neste caso, lhe farei uma massagem para me redimir. 

Apertou os olhos, tentando ignorar o arrepio que lhe percorreu a espinha ao imaginar aquelas mãos tocando sua pele desnuda. “Que inferno”, pensou. Nicole queria enlouquecê-la; não havia outra explicação. Primeiro a beijou e, agora, fazia “promessas” com o olhar mais devasso que já vira. 

A história que Vivian lhe contou, retornou a sua mente. Não podia e nem queria acreditar que Nicole gostava de mulheres e, no mínimo, era bissexual. Contudo, desde aquele beijo e depois de duas horas de muita confusão mental e sentimental, tinha de admitir para si mesma que estava louca para que ela cumprisse aquela promessa. 

No instante em que essa ideia lhe passou pela cabeça, uma dezena de insultos contra si a expulsou. Mas ela retornou segundos depois, mais forte. 

— Já lhe disse que pode acabar se queimando com essas provocações. Como reagiria se eu resolvesse entrar nesse joguinho e cobrasse todas essas promessas que me faz com esse sorriso cafajeste? 

A resposta de Nicole, foi um piscar de olhos. A puxou para mais perto, os lábios arqueados. 

— Vai ter que tentar para descobrir. Talvez se surpreenda! 

Semicerrou os olhos, cogitando aceitar aquele desafio. Se caísse naquela tentação, que os céus a ajudassem e, principalmente, ajudassem Nicole. Limpou a garganta e mudou de assunto: 

— Não sei como agradecer pelo que está fazendo por mim. 

A loira lhe sorriu, triste. 

— Seja feliz, apenas seja feliz. Não o faça por ela ou por mais ninguém. Seja feliz por você e, se puder e achar que eu mereço, me perdoe por tudo que fiz… 

A música tinha acabado, mas elas não se afastaram. Por um longo minuto, apenas se olharam e assistiu os olhos verdes, que sempre tinham um brilho divertido, ficarem marejados. Então, ela se afastou, agradecendo pela dança com um sorriso vacilante e a desculpa de que precisava de um cigarro. 

Aquele olhar e palavras a abalaram. Jamais a tinha visto tão triste; era como se a estivesse enxergando pela primeira vez. 

Pegou uma cerveja e se afastou da fogueira para dar uma volta e pensar um pouco sobre sua vida e aquele momento em especial. As palavras de Nicole iam e vinham em sua mente como um pequeno vendaval. 

Parou de caminhar para observar as estrelas, mas não demorou muito para que voltasse a direcionar sua atenção para a fogueira ao longe. Para Nicole. Ela tinha se apossado do violão de Victor e dedilhava uma música de Kid Abelha, acompanhada por um coro de bêbados. 

A observou por um longo tempo e, quanto mais a olhava, mais tinha certeza de que aquela não era a mulher que conheceu anos antes. A medida que se dava conta disso, um sorriso ia se formando em seus lábios. 

Só percebeu a presença de Lis quando ela falou: 

— As estrelas estão lindas esta noite. 

Um calafrio percorreu sua espinha, mas se manteve em silêncio, os olhos fixos em Nicole até que ela parou ao seu lado. Na fraca luz que as alcançava, percebeu um sorriso meigo adornando os lábios que tinha beijado com ardor naquela manhã. 

— Quero te pedir desculpas pelo que aconteceu hoje cedo, mas acho que não me arrependo de nada. 

Indignada, tomou um gole da cerveja e sorriu cinicamente para a noite. Vivian tinha razão, Nicole tinha razão; aquela mulher era um redemoinho de confusão. Empertigou-se, lançando um olhar para a fogueira de novo. 

— Mas deveria, você está prestes a se casar com o meu irmão. 

O coaxar de um sapo, interrompeu o silêncio que as tomou. Lis sugou um pouco de ar, deixando-o escapar lentamente.  

— Eu sei, mas a verdade é que nunca te esqueci — soltou. 

A frase lhe soou terrivelmente dolorosa e falsa. Como afirmou para Nicole, jamais conseguiria acreditar nela, outra vez. Mas isso não impediu que seu coração batesse um pouco mais rápido. 

— Não há mais espaço para um “mas”, nunca houve. Não sei em que mundinho louco e mentiroso você vive, Lis, mas não farei parte da sua loucura, da sua mentira. Você disse que ama meu irmão, o escolheu anos atrás; conviva com sua escolha e não ouse machucá-lo como fez comigo! 

Lis não falou por um longo tempo e cogitou a ideia de ir embora, não conseguia mais suportar estar perto dela e de toda a confusão que sempre arrastava para sua vida. Estava decidida a deixá-la no passado e só não a jogaria para o esquecimento definitivo porque Beto estava entre elas. 

— Você me odeia? — Ela perguntou, rasgando o silêncio com a voz baixa e controlada. 

Aléxia olhou para os próprios pés, mas naquela luminosidade só viu escuridão. 

— Por um tempo, achei que sim — confessou. 

— E agora? 

— Agora, já não sei mais. Como você afirmou no outro dia, ainda te amo. Mas já não te quero — olhou para ela e enxergou surpresa. 

— Por causa dela? 

Apesar de todas as diferenças que tinha com a ex-colega de faculdade e daquele namoro fingido, não lhe desagradou a possibilidade de que fosse a razão para esquecer Lis e isso a abalou tanto quanto as palavras de Nicole, minutos antes. Estavam naquele joguinho de sedução o dia todo e depois daquele beijo, que não lhe saía dos pensamentos, queria descobrir quem era aquela Nicole, no que ela se transformou. E, com certeza, queria aceitar o desafio que ela lhe fez, apenas para descobrir o quanto daquilo era verdade. 

Mas, no fundo, achava que tudo era apenas teatro, que ninguém poderia ter mudado tanto assim. Apesar do que Vivian tinha afirmado que viu, apesar do quanto Nicole jurava que tinha mudado, apesar da decisão que tomou naquela tarde de tentar enxergá-la apenas como a mulher que era naquele momento; apesar disso tudo, ainda existia um grãozinho de desconfiança em seu coração e ele se debatia, enlouquecido, sempre que buscava a ex-colega entre a multidão. 

Mesmo assim, respondeu: 

— É — falou seca. — E por sua causa também. 

Como ela nada disse, continuou: 

— Tínhamos algo bom e bonito e você jogou isso fora como se fosse um brinquedo do qual cansou. 

— Não foi bem assim — agitou-se. 

— Foi exatamente assim. Você nem teve coragem de terminar comigo como uma pessoa decente! — Escarneceu. 

— Eu queria… 

— Você queria?! Que ótimo! Fico feliz em saber que tudo que sofri por sua causa foi apenas um engano, já que você queria terminar comigo! — Estava quase gritando e ficou grata por estarem longe o suficiente para que ninguém as ouvisse e pelo coro de vozes bêbadas e desafinadas acompanhando o violão de Nicole. 

— Por favor, não fale assim. 

Riu com desdém. De repente, tudo que queria era gritar e colocar em palavras tudo que sentia. 

— Quer dizer que você vai até a minha casa e diz o que quer, me humilha, e tenho de permanecer em silêncio na sua? Que tipo de pessoa pensa que eu sou, Lis? 

Na escuridão, pensou ter visto o brilho de lágrimas em seus olhos, mas ela virou o rosto e quando voltou a fita-la não havia mais nada lá. O vento lhe trouxe o cheiro de álcool em seu hálito. Falava sem tropeços, mas estava alterada pela bebida. 

— Você a ama? — Quis saber com voz um pouco trêmula. 

— E por que se importa? 

— Apenas responda! 

Bufou, mas respondeu sem titubear. 

— Não estaria com ela, se não fosse assim. 

O silêncio que se instalou, outra vez, seria quase carinhoso, não fosse o coro de vozes ébrias e desafinadas ao longe que o rasgaram como uma folha de papel. Lis se aproximou e ergueu a mão, mas Aléxia se afastou antes que a tocasse. 

Aquilo não era certo com Alberto e, principalmente, não era certo com ela mesma. Lis não voltaria a brincar com os seus sentimentos. 

— Por que você me rejeita? — Perguntou depois de algum tempo e Aléxia se perguntou se ela não havia entendido nada do que tinha dito ou queria, apenas, irritá-la. Conhecendo-a, era provável que fosse a última opção. 

— Você não entende, não é? Isso nunca mais irá acontecer. Você disse uma vez que não fomos feitas uma para a outra e tinha razão. Beto é um bom homem, um irmão incrível e, com certeza, será um marido maravilhoso. Não o machuque como me machucou. 

— Não era a minha intenção. 

— Mesmo assim, você fez. 

De repente as palavras de Nicole lhe voltaram e ela compreendeu que sua felicidade dependia única e exclusivamente de si. Lis não podia lhe roubar o que nunca se deu. 

— Seja feliz, Lis, e o faça feliz também. 

Ela segurou sua mão, repentinamente. 

— Por favor, não conte para ele. 

Livrou-se de seu contato, não queria sentir seu toque outra vez. 

— Se não aconteceu antes, não será agora — afirmou e lhe deu as costas, dando a conversa por encerrada. 

Tomou um susto ao perceber a presença de Alberto tão próximo delas. Na escuridão, ele era apenas um vulto contra a fraca luz da fogueira ao longe. Nada disse para o irmão, não seria necessário. Se ele estava ali o tempo que ela imaginava, havia escutado muita coisa que não deveria. 

Silenciosamente, caminhou em direção a fogueira e agradeceu aos céus por estar tão escuro ali que não foi capaz de enxergar o olhar dele. 



Notas:

Um ótimo restinho de semana para todas! :*




O que achou deste história?

2 Respostas para 11. SOB A LUZ DO LUAR

    • Haha… verdade. Mas ainda pode cair mais um pouco. O próximo capítulo promete fortes emoções.
      Beijo!

Deixe uma resposta

© 2015- 2023 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.