ALÉM DAS PALAVRAS

16. UMA INIMIGA PARA AMAR (FINAL)

O cheiro de café despertou Aléxia. 

A luz feriu seus olhos por alguns instantes. Moveu-se na cama, agarrando-se a um travesseiro e inebriando-se com o cheiro de Nicole nele. Podia ouvir os passos dela ecoando pela casa, leves e cadenciados. O coração agitou-se com as lembranças da noite passada entre seus braços. Uma noite de descobertas e muito amor. 

Demorou-se naquela posição por mais um minuto, revivendo o momento em que se declarou e a alegria que tomou o semblante de Nicole, que a abraçou com tanta força que o ar chegou a lhe faltar, enquanto as lágrimas dela molhavam seu ombro. Nunca se sentiu tão feliz por dar felicidade a alguém.

Os cabelos úmidos lhe caíam sobre a testa quando desceu as escadas. Usava as roupas de Nicole, que ela tinha deixado cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira, junto com uma toalha limpa e uma escovas de dentes nova. Não fazia ideia de onde as suas roupas tinham ido parar. 

Passou diante do escritório e deteve-se. Entrou, observando o sofá em que fizeram amor por horas e percebeu que estava sorrindo como uma boba. Quando foi a última vez em que isso lhe aconteceu? Não tinha ideia, mas recordava que nunca sorriu daquela forma com Lis. Percebê-lo era estranho e acolhedor também. 

Quando chegaram a casa dela, tinham tanta vontade de se sentirem, de se amarem e se pertencerem que não chegaram ao quarto. O sofá do escritório foi seu leito de amor; os livros, quadros e bonequinhos colecionáveis, foram as testemunhas silenciosas dos sussurros, gemidos e suspiros de paixão; da maravilhosa agonia de encontrar o prazer nos braços amados. 

Agora, sem o rompante da paixão e com o dia claro, passeou o olhar pelo cômodo com a calma e curiosidade de quem ainda é alheio ao ambiente. Diferente do resto da casa, que estava impecavelmente arrumada, aquele possuía a deliciosa bagunça da criatividade. Havia desenhos espalhados por todo o lugar, soltos ou emoldurados e um, em especial, lhe chamou a atenção. 

Era, sem dúvida, um retrato seu quando ainda cursava a faculdade e aqueles traços no papel a fizeram se sentir aquecida. 

— O que farei agora? — Perguntou ao seu eu mais jovem no retrato. — Estou completamente apaixonada por essa bela maluca. Quando foi que isso aconteceu? — Era uma pergunta que se fazia com frequência. Principalmente, quando se pegava a pensar nela no meio de tarefas corriqueiras. 

Quanto mais observava o retrato, mais pensava sobre isso e no quanto a vida era cheia de surpresas. Quem diria que após dez longos anos e muito ódio, iriam se entregar a paixão? Quem diria que um dia se sentiria tão segura em sua presença e que a buscaria com ansiedade? 

Deslizou o dedo pela moldura do quadro. 

— Quem diria? — Sussurrou com um misto de suspiro e sorriso. Então, o perfume dela lhe chegou, causando um alvoroço em seu peito. 

Voltou-se para encontrá-la recostada na moldura da porta, dona de um olhar misterioso e um sorriso quase doloroso de tão belo. Tinha os cabelos em desalinho e vestia-se apenas com um blusão, os pés descalços. A achou tão linda naquela simplicidade, que seu coração deu uma cambalhota dentro do peito. 

Ela se aproximou sedutora e lhe envolveu em um abraço apertado, encontrando pouso para os lábios em sua bochecha. 

— Bom dia — sussurrou no meio do beijo. 

Quando se afastou, Aléxia recordou que nunca a tinha visto sorrir daquela maneira. Era como se estivesse envolta em uma aura de luz; estava muito além da mulher que conheceu. E amou aquele sorriso, assim como passou a amar uma infinidade de coisas nela durante aqueles meses de amizade. 

— Dia bom — respondeu, aspirando o cheiro de banho recente na pele alva. — Isso não é justo! Você tomou banho sem mim. 

Ela riu, jogando a cabeça para trás e encantando-a. Por que tinha demorado tanto tempo para aceitar que a amava? Por que perdeu tanto tempo? 

“Porque você tinha medo. ” Lhe respondeu aquela voz conhecida em sua cabeça. “Tinha medo de perder aquele ódio, pois ele era a única coisa sólida em relação a Nicole. Todo o resto era estranho e doloroso demais para abraçar.” 

Ainda tinha medo. Um medo terrível de que estivesse cometendo um erro, mas não podia passar o resto da vida se escondendo do que sentia e, com certeza, não permitiria que o desastre amoroso que viveu com Lis a impedisse de tentar amar Nicole e deixar que ela fizesse o mesmo consigo. 

Poderia não dar certo, claro! Como todo relacionamento. Mas estava cansada de fugir por medo de sofrer. Merecia aquilo, assim como Nicole. Mereciam uma chance de buscar a felicidade juntas e, se não viesse a dar certo, teriam tentado. 

Mas alguma coisa, bem lá no fundo de seu coração, lhe dizia que daria certo entre elas e, pela primeira vez na vida, não tinha medo de se arriscar no amor. 

— Você também não quis me convidar — Nicole brincou com seus cabelos úmidos e piscou. Ainda não conseguia acreditar naquela felicidade, nem que fosse possível se sentir assim. 

Se achegou mais ao corpo dela, pressionando-a contra a mesa. Havia medo em suas entranhas, um medo gritante de que tudo aquilo não passasse de um sonho, de que algum deus brincalhão a tivesse escolhido para se divertir promovendo-lhe aquela doce ilusão. 

— Você se transforma quando me olha assim. Mal a reconheço — Nicole sussurrou junto ao seus ouvido, e lhe mordiscou a orelha. 

— Te incomoda? 

— Pelo contrário! Me excita! 

Satisfeita com a resposta, Aléxia a beijou com vontade. Mordiscando os lábios carnudos e vermelhos, deu-se conta do quanto desejava se afogar naquela boca e entregar-se a ela novamente. A arrastou para o sofá, lhe tirando a roupa pelo caminho. 

— Por favor, me diz que isso não é um sonho — Nicole pediu, prendendo um suspiro de prazerosa agonia diante do olhar dela, que passeava sobre a pele alva, demorando-se nas curvas dos seios e ventre, até encontrar um sorriso lânguido em seus lábios. 

— E se for? — Deslizou a mão na pele perfumada e macia, até encontrar o sexo úmido à sua espera, sentindo-a tremer de antecipação. 

Nicole arfou, mirando o desejo contido nos olhos safira. Mas não era só isso. Também havia muito carinho ali e ele transbordava pelo toque suave de suas mãos quando começaram a massagear o ponto de prazer. 

— Se for, não quero acordar nunca mais! — Gemeu quando a carícia se tornou mais intensa e lhe implorou para tomá-la por inteiro e a amante não se deteve mais. 

A língua massageava, os lábios sugavam, os dedos penetravam em um ritmo cadenciado. Nicole tremia em desespero, sentindo a aproximação do orgasmo. Sentia-se tão completa naquele momento que todos os medos, as dores e preocupações lhe abandonaram em meio a fome nos lábios que chupavam cada vez mais forte, arrancando-lhe suspiros e gemidos cada vez mais altos, que preenchiam o cômodo como se fossem música, até que foi arrebatada pelo gozo. 

Aléxia a trouxe para si e a aninhou em seu colo, embalando-a. 

— Tô começando a sentir inveja de toda essa sua felicidade — comentou ao perceber que, outra vez, Nicole chorava de felicidade e beijou-lhe a face entre risos e palavras carregadas de carinho. 

*** 

Enquanto tomavam café, na cozinha que era três vezes maior que a sua, Aléxia observou melhor a casa e concluiu que, apesar de bela e agradável, não parecia ser um lar para Nicole. A amante parecia deslocada ali. 

— Eu sei, não tem nada a ver comigo — a loira falou de repente, adivinhando seus pensamentos e balançou os ombros com um suspiro resignado. Olhou em volta. — Foi um presente do meu pai. 

Afastou alguns fios de cabelo do rosto e continuou: 

— Ainda prefiro meu antigo apartamento, mas ele fez um escândalo quando rejeitei o presente dele. O único problema é que estou a, praticamente, dois passos de qualquer membro da minha família. Os meus pais e irmãos também moram neste condomínio. Aline mora na casa em frente e Fernando no fim da rua. 

— Não é ruim estar perto da família. Mas se não gosta, por que não vai embora?

— Não é tão fácil quanto pensa — despejou um pouco de leite no café. Que momento incrível vivia, que adorável felicidade lhe preenchia. 

— Por quê? 

— Só é complicado, Alê. Assim como era complicado para você com sua família — deu de ombros, não querendo se aprofundar no assunto, mas Aléxia adivinhou o motivo com facilidade. 

— Por causa do seu pai? Desculpe, não quero parecer abelhuda e intrometida, mas é que ouvi toda a sua conversa com Aline e não consigo ignorar algumas coisas. 

Nicole sorriu, sem ânimo. Tomou um gole do café e escorou no encosto da cadeira. 

— Tudo bem. Se vamos começar algo juntas, é melhor que saiba onde está se metendo —balançou ombros, mas seus olhos ainda demonstravam profunda tristeza. — É isso que você quer, não é? Construir algo comigo?

— Ainda tem dúvidas disso?

— É só que… Nós duas, juntas, parece tão bom, que ainda tenho medo de que não seja real.

Aléxia esticou o braço sobre a mesa e alcançou a mão dela, garantindo:

— É real! Não joguei palavras no vento ontem, Nicole. Eu quero construir um relacionamento com você, forte e duradouro. Quero estar ao seu lado, enquanto você quiser estar ao meu. E não vou mentir, eu estou tão apavorada quanto ansiosa por isso.

Nicole sorriu, quase tímida. E por algum tempo, apreciou o silêncio e o carinho que ela lhe fazia na mão. Contou:

— Sim, por causa do meu pai e outras coisas também. Fiz muitas besteiras na faculdade e antes disso também. Nós não nos formamos juntas, lembra? 

— Sim, você simplesmente desapareceu. 

Nicole não voltou para a pensão que dividiam, após uma festa. Na realidade, ninguém soube explicar o que havia acontecido, mas a dona da pensão informou que ela não moraria mais ali. Na época, Aléxia sentiu-se bastante aliviada e satisfeita com a notícia e não teve qualquer curiosidade a respeito, mesmo quando percebeu que ela não voltou para as aulas do último semestre.

Ela coçou o queixo e a mirou, com um risinho acanhado e cansado. 

— Eu sofri um acidente — revelou. — Na verdade, eu tentei me matar.

Por um instante, Aléxia achou que se tratava de uma de suas piadinhas infames, mas a seriedade com a qual a encarava, deixava claro que era sério. Mesmo assim, lhe custou acreditar. Jamais imaginou que a Nicole que conheceu, aquela que estava sempre sorrindo, se divertindo, namorando, pudesse atentar contra si própria. Ela inspirava e expirava vida, até mesmo quando assumia uma postura séria, como naquele momento. 

Sob seu olhar de espanto, ela pegou a carteira de cigarros que estava largada sobre a mesa e acendeu um, abandonando de vez o café da manhã, embora ainda brincasse com a torrada em seu prato. Ao observá-la fazer isso, recordou da resposta que lhe deu quando perguntou a razão de fumar tanto: “Acalma os pensamentos ruins” dissera. 

— Quase consegui — ela continuou. — Não foi planejado, isso sequer tinha passado pela minha mente alguma vez. Mas naquele dia estava tão drogada e com tanta raiva, que a ideia de morrer pareceu fantástica, principalmente, depois da discussão horrível que tive com os meus pais. Tudo o que consegui foi um mês em coma, vários ossos quebrados e seis meses em uma clínica de reabilitação, sem falar nos anos de terapia — sorriu, enquanto deixava a fumaça do cigarro escapar dos lábios rosados. 

Aléxia soprou o ar devagar, absorvendo aquela informação. 

— A cicatriz por baixo da sua tatuagem… 

— Uma lembrança do que fui capaz de fazer a mim mesma — olhou para a janela, pensantiva. — Eu me sentia como o dente de leão na minha tatuagem, me despedaçando ao vento sem nada para me prender. O desenho representa bem a Nicole que uma dia fui.

Voltou a olhar para Aléxia. 

— Perdi o movimento das pernas e da mão direita — ergueu a mão, revelando uma cicatriz no pulso. Aléxia nunca tinha reparado nela porque costumava usar braceletes e pulseiras para ocultar. — Ainda não escolhi uma tatuagem para esta. 

Aléxia estava tão chocada que não conseguia pensar em nada para dizer que não lhe soasse ridículo na cabeça. Nem sabia se ela queria ouvir algo do tipo consolador. 

— Reaprender a andar foi muito difícil, mas também gratificante. Passei muito tempo com os meus pensamentos e estar afastada do resto do mundo e do que me tentava me fez perceber a razão de fazer tudo aquilo e me aceitar de muitas maneiras. 

— Quando você se perdeu, acabou se encontrando — Aléxia evocou suas palavras novamente, naquele dia na praia, logo após ter lhe pedido para fingir ser sua namorada. 

— Sim — sorriu e se ergueu, indo até ela e se recostando na mesa. A mirava cheia de carinho. — Fiz o retrato que estava olhando, há pouco, na clínica. Você, mesmo sabendo o quanto me odiava e do quanto fiz por merecer esse ódio, me deu forças para sair da escuridão em que tinha me atirado. 

Aléxia engoliu em seco, sentindo a emoção em sua voz impactá-la muito mais que as lágrimas em seus olhos. 

— Decidi falar com você quando saí. Na verdade, foi a primeira coisa que tentei fazer, mas quando voltei, você já tinha partido e ninguém soube me dizer para onde — uma lágrima abriu caminho por sua bochecha. — Mas isso não me impediu de viver o que realmente deveria ter vivido. Tive muitos relacionamentos, muitas paixões, muitos amores, mas nunca esqueci você. Não sei a razão.  

— Acho que o destino decidiu assim — comentou, e realmente acreditava nisso.

Queria abraçá-la, mostrar que não precisava mais sofrer e que estavam juntas agora, mas ela se afastou para atirar a guimba do cigarro no cinzeiro mais próximo e o momento se perdeu. 

— Quando vi sua foto ao lado da Vivian, no perfil social do Mateus, meu coração quase parou de emoção — deixou um risinho infantil escapar. — Não via Mateus há anos e fiz de um tudo para reatar a amizade com ele. Insisti para sairmos juntos; sempre na esperança de que você aparecesse. 

Aléxia lhe dirigiu um sorriso terno e Nicole retribuiu com outro apaixonado.  

— Até recentemente, nunca havia aberto o jogo para minha família. Não que eu tenha tentado ocultar algo, apenas sou discreta com meus relacionamentos e, também, nunca namorei alguém que quisesse apresentar aos meus pais.

— Me recordo que discrição nunca fez parte dos seus relacionamentos, no passado — Aléxia mexeu com ela.

— As pessoas mudam. — Sabia que era apenas uma provocação de Aléxia, mas decidiu esclarecer. — Hoje, sou uma mulher tranquila e não preciso ficar me exibindo para os outros. Com quem divido os meus lençóis, só interessa a mim.

Aléxia concordou e perguntou:

— Por que sentiu a necessidade de ser mais clara com a sua família agora? 

— Você ouviu a conversa com a minha irmã. Meu pai não é um homem que gosta de receber um não como resposta — ergueu a sobrancelha, reprimindo um suspiro de cansaço. — Desde que me lembro, sempre arranjou os melhores partidos para mim e meus irmãos. A consequência disso é que todos fizeram os casamentos perfeitos “para ele”.  

Voltou para perto dela. 

— De uns tempos para cá, ele anda insistindo em me apresentar homens, que considera adequados para serem seus genros. A situação alcançou um nível quase insuportável, então coloquei tudo em pratos limpos e expus os fatos que eles faziam questão de ignorar, fosse por comodismo ou pura ingenuidade. Mas eles lembravam perfeitamente da minha época desregrada e acharam que estava inventando uma desculpa esfarrapada apenas como ato de rebeldia — riu com desdém. — A noite passada foi uma tentativa do meu irmão, Vitor, de apresentar alguém que meu pai aprovaria, mas que não pertence aos seus ciclos. Todos pensavam que esta era a verdadeira razão das minhas recusas; que, mais uma vez, bancava a rebelde. 

Aléxia tomou um gole de café para afastar o nó que a conversa lhe trouxe. Fez uma careta, pois o líquido tinha esfriado. 

— Nunca imaginei que te encontraria no bar. Para ser sincera, todo o resto deixou de ser importante quando te vi — Nicole lhe acariciou a mão. — Teria fugido no mesmo instante, se não estivesse tão surpresa com a sua proposta de “salvamento”. — Fitou-a por alguns instantes, então exalou ao mesmo tempo em que o medo crescia em seu íntimo. — Espero que depois de ouvir essa história, você não me ache uma maluca e que não queira fugir de mim. 

Aléxia a encarou por alguns segundos, então sorriu e a puxou para o seu colo. Enxugou os resquícios das lágrimas dela com beijos e disse: 

— Mas eu te acho uma maluca. Sempre achei. A diferença é que, agora, você é a minha maluca e eu quero me perder na sua loucura.  

*** 

Aléxia entrou em casa sorrindo bobamente, após ver o carro de Nicole se afastar e desaparecer após a esquina. Haviam passado o dia juntas, se amando, se reconhecendo, se redescobrindo não mais como amigas, mas como amantes. 

Queria tudo dela e estava decidida a dar tudo de si também. 

Sempre que seus olhares se encontravam, sentia a pele arder de desejo e carinho. Como viveu tanto tempo sem ela? Indagava-se, achando estranho a profundidade daquele sentimento em tão pouco tempo. Então, recordava que alguém tinha lhe dito, certa vez, que o amor também nasce do ódio, mais forte do que este, principalmente se o querer já esteve ali antes. 

Acreditava que era verdade, afinal tinha se apaixonado por Nicole antes de odiá-la. 

Talvez não desse certo, mas estava disposta a aproveitar cada momento ao seu lado. Finalmente, depois de anos sofrendo por Lis e pondo a perder uma dezena de relacionamentos, estava apaixonada e algo lhe dizia que aquele amor veio para ficar. 

O destino lhe pregou uma peça, enviando o amor através de uma inimiga. Mas que peça deliciosa!

— Onde ela está?! 

Mal tinha fechado a porta e foi surpreendida pelo irmão, sentado sombriamente no sofá. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, tinha olheiras profundas e os cabelos estavam em desalinho, como se dormir não fosse algo que tivesse feito ultimamente. 

— Nossa! Quer me matar de susto? Como entrou aqui? 

— Roubei as chaves que deu a mamãe. 

Ela atirou a bolsa sobre uma poltrona e se aproximou dele com a mão estendida. 

— Devolva — ordenou, o rosto vermelho em fúria. Mal conseguia encará-lo sem recordar toda dor que lhe causou. 

Alberto lhe dirigiu uma careta e colocou as chaves em sua mão, evitando qualquer contato com a pele. Como se ela pudesse lhe passar algo contagioso. 

— Qual o motivo da sua “adorável e indesejável” visita? — Ela foi sentar na mesma poltrona em que atirou a bolsa, a fim de ficar o mais longe possível dele. Toda a paz que a dominava, instantes antes, havia evaporado. 

— Não finja que não sabe de nada — ele acusou. 

— Mas eu não sei de nada — defendeu-se.

Alberto riu com descrença. Notas de desprezo adornavam seu olhar. 

— Estou aqui desde a noite passada. Onde esteve até agora? 

— Não é da sua conta! 

Ele passou a mão pela barba malfeita, enfiou a mão no bolso da calça e, quando a retirou, a manteve fechada por um longo tempo. Olhava tristemente para o punho cerrado e lágrimas vieram aos seus olhos, mas as enxugou antes que escapassem. 

— Estava com ela, não estava? Estava com Lis? 

Aléxia rilhou os dentes. 

— A última coisa que quero é estar na presença daquela mulher e, para ser sincera, não sei a razão de ainda não ter te colocado para fora da minha casa.

Ele sorriu amargo, ainda olhando para o punho. 

— Onde esteve? — Perguntou novamente. 

— Passei a noite com a minha namorada! Onde mais estaria? — respondeu irritada. — Agora, fale de uma vez o que quer e vá embora da minha casa. 

— Mentira! — Ele se ergueu, lágrimas escorriam em abundância pela face e o corpo tremia com a violência dos soluços. — Ela tem de ter vindo procurar você. 

Deixou-se cair no sofá pesadamente e, lentamente, permitiu que a irmã visse o que segurava. A aliança que pertencia a Lis brilhava palidamente sobre a fraca luz que entrava através da janela. 

— Ela me deixou. Cinco anos juntos e, após três meses que trocamos nossos votos, ela me deixou. 

Inacreditavelmente, Aléxia não estava surpresa com aquela revelação, nem conseguia se sentir triste por ele. Os dois estavam colhendo aquilo que plantaram. 

— Eu sinto muito — falou, deixando claro que não sentia nada e os olhos dele se prenderam nela carregados de ódio, lhe trazendo um grande mal-estar. 

— Você é a culpada! — Gritou e ergueu-se novamente. — Se você não tivesse feito “isso” com ela… 

Então, Aléxia percebeu que ele procurava um culpado para sua infelicidade e ela era o bode expiatório que escolheu. 

— Isso o quê?! Ter conhecido ela antes de você? Amado ela ao ponto de achar que morreria sem tê-la por perto? Ter ficado em silêncio quando ela rejeitou o que sentia por mim, pois tinha medo e vergonha de admitir quem realmente era e escolheu namorar você sem, ao menos, pôr um ponto final em nossa relação? Não seja hipócrita! 

Também se colocou de pé. 

— Está me culpando por algo que não fiz — aumentou o tom de voz. 

Observou o corpo que tremia, tamanho era seu desespero e raiva, mas isso não lhe impediria de falar a verdade. 

— Se há um culpado aqui, é você que cobiçou o impossível e foi iludido por ele. 

— Não fale assim! 

— É a verdade e você sabe disso. 

Ele se deixou cair no sofá, mais uma vez, com as mãos no rosto e soluçando violentamente. 

— Sabe o que eu aprendi com toda essa história, Alberto? Aprendi que para amar é preciso saber se amar — evocou as lembranças do que Nicole havia contado naquela manhã e sentiu um carinho enorme a possuir, o que amainou parte da sua raiva. — Lis nunca se amou; talvez nunca se ame. É provável que continuará despedaçando corações e sua própria alma por aí. Para ser sincera, não desejo isso a ninguém, mas espero que sofrer por ela lhe dê uma ideia do que me fez passar e aprenda que nada conquistado com mentiras e traições rende bons frutos. 

Ela caminhou até a porta e a escancarou. 

— Espero, de verdade, que consiga superá-la, como eu consegui, e que encontre alguém que realmente valha a pena. Quanto a nós, ainda não sou capaz de deixar o que aconteceu de lado. Então, peço o favor de se retirar. 

Alberto ainda se demorou, fitando o vazio antes de caminhar pesadamente em direção a porta. A irmã soube, pelo olhar e as lágrimas que banhavam seu rosto, que ele havia compreendido, naquele momento, que tinha perdido dois amores. Ele ainda olhou para trás quando cruzou o portão, mas Aléxia já havia fechado a porta a fim de poder chorar a dor do laço partido. 

*** 

Vivian olhou-a de cima a baixo com expressão avaliativa. 

— Que foi? — Indagou. Abraçou a amiga, sentando um beijinho na bochecha desta e escolheu um lugar à mesa. 

Estavam no mesmo restaurante, à beira da praia, em que tinham ido com Nicole, antes do casamento do irmão. Era uma manhã ensolarada de domingo e ela estava mais que feliz por aceitar o convite da amiga para almoçar.

— Você parece bem. Diferente. Não sei dizer! 

Aléxia lhe dirigiu um sorriso carinhoso e afundou os pés na areia. 

— Eu me sinto bem. — Dizia a verdade, porém escondia os olhos inchados de chorar, por trás dos óculos escuros. 

— Sua mãe me ligou ontem à noite — contou pausadamente, à espera da sua reação. 

— E? 

— Lis e Alberto estão separados. Ela o abandonou — Vivian a olhou com mais atenção e aguardou que se manifestasse a respeito, o que não aconteceu. — Não tem nada a dizer? 

Aléxia tinha o olhar atento ao mar. Recordava-se da conversa que havia tido com Nicole naquele mesmo local, meses antes. 

— Deveria? — Respondeu, por fim. 

— Sei lá! Apenas achei que essa notícia talvez te alegrasse. — No fundo, Vivian esperava que não. Tudo que menos desejava era uma amiga entregue a amargura e sentindo prazer com a desgraça alheia. 

Aléxia retirou os óculos e a mirou com intensidade. 

— Nenhum laço desfeito ou sofrimento alheio é motivo para alegria, Vivi. Mas eu já sabia do rompimento deles, porque Beto veio me ver ontem. Ele achava que Lis estava comigo. Foi horrível! 

A preocupação tomou Vivian. 

— Você está bem? 

— Já disse, me sinto bem. Chorei um pouco, se é o que quer saber, mas me sinto bem. Eles escolheram seu próprio caminho, Vivi. Preferiram mentir para si mesmos e, agora, a mentira foi esmagada pela verdade que não foram capazes de suportar. 

Vivian recostou-se na cadeira, surpresa por sua atitude. Ela falava com tanta calma e sabedoria que, ao recordar-se dos últimos meses e todas as vezes em que a viu chorar, pensou estar diante de uma desconhecida. Era certo que aquela estranha amizade com Nicole tinha ajudado na sua recuperação. Mesmo assim, sempre que se encontravam, notava a tristeza que montou morada em seu semblante, como não ocorria naquele momento, apesar das circunstâncias. 

O mesmo acontecia com Nicole. Vivian percebia a alegria que aquela amizade com Aléxia lhe trazia, mas, também, a tristeza. E chegou a comentar isso com a nova amiga, mas Nicole fechava-se sempre que tocava no assunto. Era como se tivesse perdido um pouco do seu brilho após aquele fim de semana na chácara e não tinha voltado a falar que iria conquistar Aléxia, nem mesmo quando insistiu em questionar a respeito. Na ocasião, a loira deu de ombros como se tivesse compreendido que não tinha chances de realizar aquela façanha. 

Vivian tomou um gole do suco que o garçom depositou apressado sobre a mesa e Aléxia a imitou. 

— Depois de te ver daquele jeito, pensei que estaria abalada após ver seu irmão.

Aléxia riu, relaxada, e pousou a mão sobre a dela. Vivian não tinha ideia do tamanho do carinho que lhe dedicava. 

— Acho que é a primeira vez, em anos, que não quero saber de Lis ou Alberto. Ela é passado e eu tenho um futuro para viver com alguém especial. Se vai dar certo, não sei. Mas quero tentar. 

A surpresa da amiga lhe trouxe uma risada. 

— Acho que perdi alguma coisa — Vivian disse, vendo-a sorrir travesso. 

De fato, Aléxia nunca teve a oportunidade de contar para a amiga sobre a noite de amor que viveu com Nicole, nem a decisão que tomaram de reatar a antiga amizade a fim de tentar construir um caminho para uma relação mais profunda. 

— Acho que perdeu mesmo. 

Vivian ergueu os óculos de sol e deixou-os no alto da cabeça, como uma tiara. 

— Isso me lembra que você sumiu na sexta-feira. Não estava no bar quando chegamos e não atendeu minhas ligações. Onde esteve? 

— Nos braços do amor — respondeu marota e assistiu o par de sobrancelhas ruivas se erguerem. 

Como se o que disse fosse uma deixa, Mateus e Nicole surgiram, conversando animadamente. Vivian apressou-se em cumprimentar o namorado com um beijo e ficou de queixo caído ao ver Aléxia fazer o mesmo, puxando Nicole para um beijo apaixonado. 

— Definitivamente, acho que perdi muita coisa — Vivian concluiu. Mateus balançou a cabeça, concordando, tão surpreso quanto a namorada. 

— Quando foi que isso aconteceu? — Ele quis saber. 

Com uma gargalhada, Nicole fez uma piadinha e prometeu contar tudo com calma depois. Então, estalou um beijo nos lábios da namorada, lhe ofereceu a mão e indagou: 

— Que tal dar um mergulho com uma velha inimiga? 

Aléxia sorriu, entrelaçando seus dedos aos dela. 

— Só se eu puder namorá-la depois! 

FIM 



Notas:

Ainda não acabou! Temos epílogo!




O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2023 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.