ALÉM DAS PALAVRAS

3. Vamos fingir por 10 minutos

— Droga, Alê! Quer parar com isso?! Já te pedi desculpas um milhão de vezes! — Berrou Vivian, exasperada.

Aléxia estava debruçada sobre o capô do seu jipe. Esfregava, com força exagerada, uma flanela molhada no que parecia ser os restos fecais de um pássaro. Ainda se encontrava furiosa com Vivian por tê-la feito ir para casa com Nicole.

— Continue pedindo e ainda não será o suficiente — bufou e voltou a dedicar a atenção ao jipe, que já estava imaculadamente limpo, mas, nem por isso, parou de esfregá-lo.

Seu despertar na casa de Nicole havia ocorrido uma semana antes, mas não conseguia esquecer o quanto se sentiu humilhada por ter se permitido beber tanto que sequer foi capaz de se negar a ir para casa com ela. Além disso, não conseguia se perdoar por se deixar abalar pela velha inimiga, outra vez. 

Mas, a maior parte do seu nervosismo, tinha outra razão. Em uma semana, teria de assistir o grande amor de sua vida se casar com seu irmão e a perspectiva da chegada desse momento a estava enlouquecendo. 

No fundo, sabia que estava punindo Vivian por seus problemas, apenas porque não conseguia se punir mais do que o que já tinha feito. Porém, não daria o braço a torcer.

‘— Você e Nicole têm algumas coisas mal resolvidas e acho que deveriam tentar se acertar. — Vivian insistiu, se recostando na porta do jipe. Tinha um olhar vidrado e um pouco distante, devido ao sono de uma noite de plantão na emergência do hospital em que trabalhava.

Aléxia parou o que estava fazendo para fita-la e não se apiedou do aspecto cansado da amiga, que a encarava firme.

— Nos acertar?! Aquela maluca infernizou a minha vida por quatro anos! Por favor, me poupe de ter de ouvir a “minha” melhor amiga defende-la.

Vivian deixou os braços caírem na lateral do corpo e fez uma careta. Aléxia sabia como ser uma irritante cabeça-dura. Depois da conversa que teve com Nicole, estava decidida a fazer aquelas duas se acertarem. 

— Não estou defendendo ninguém. Por tudo que você me contou, ela não era um anjo contigo, mas, agora, está mudada.

A amiga se voltou para ela, com uma risada de escárnio.

— Sério?! Fora alguns quilos a mais, não notei qualquer mudança nela.

A ruiva revirou os olhos.

— Nossa, você me irrita, sabia? Parece criança! — Andou ao longo do veículo, balançando a cabeça. O vento brincava com seus cabeços e os prendeu em um rabo de cavalo desleixado. — Não importa o que te fez no passado. Agora, ela está diferente. Se você se desse ao trabalho de conversar um pouco com ela, entenderia.

— Você nem a conheceu naquela época. Como pode saber o quanto mudou ou deixou de mudar?

A ruiva deixou um suspiro irritado escapar. Seus olhos se apertaram, percorrendo os traços zangados da face dela, que estava vermelha pela raiva e esforço empregado na limpeza do jipe. O sol forte também colaborava com a tonalidade de sua pele, mas parecia não se importar.

— Desisto! — Ergueu as mãos.

— Obrigada! — Deu um sorrisinho vitorioso.

Alguns minutos se passaram, até que Vivian voltasse a falar. Havia desistido de se recostar na porta do jipe, quando ela enviou um olhar atravessado e reclamou que estava manchando onde tinha acabado de limpar.

Aquele jipe era um dos amores da amiga, então se afastou dele, resignada, e procurou um lugar na calçada, que era tocada pela sombra de uma árvore. Conhecia Aléxia, bem demais, para saber que estava voltando o foco da sua raiva para ela, para não ter de pensar no casamento que se aproximava. Obviamente, guardava uma grande mágoa de Nicole, mas o verdadeiro problema era Lis e Alberto.

Brincou com uma folha, por alguns instantes, girando-a entre os dedos e lançando olhares para a amiga. Recordava a conversa com Nicole e se perguntava como o ser humano conseguia ser tão estúpido.

Largou a folha e o vento a carregou consigo.

— Quero que saiba que ela e o Mateus são loucos um pelo outro — informou, com seriedade exagerada; os braços estavam cruzados sobre o peito e os dedos tamborilavam a pele morena, queimada de sol.

Irritada com aquela conversa que não tinha fim, Aléxia revirou os olhos. Estava cansada de falar de Nicole. Queria mesmo é que ela tomasse um chá de sumiço do planeta e fosse infernizar os marcianos ou qualquer outra raça alienígena. Não interessava, contanto que estivesse longe de suas vistas e vida.

— Então, neste caso, é você que deveria estar de orelha em pé. Se bem me lembro, Nicole sempre foi um “rodo” na faculdade — comentou, venenosa.

— Você não tem jeito mesmo — percebeu um sorrisinho malicioso nos lábios dela, que sumiu quase imediatamente. — O que quero dizer é que a presença dela pode se tornar uma constante em nossas saídas.

Aléxia parou de lustrar os faróis e se voltou para ver um sorriso sonso e um pouco malvado. Nos cinco anos em que cultivaram aquela amizade, nunca desejou tanto poder agredi-la fisicamente, como naquele momento. Era o efeito Nicole que, mesmo a quilômetros de distância, mexia com seus nervos.

Por alguns instantes, sua expressão era um misto de incredulidade e raiva. Então, respirou fundo e disse, entredentes:

— Sendo assim, ficarei muito feliz e agradecida se a minha “melhor amiga” me avisar sobre a presença dela, assim poderei declinar, educadamente, de qualquer convite para sair.

Vivian cobriu o rosto com uma das mãos, enquanto balançava a cabeça, negativamente.

— Está bem — concordou, voltando a olhá-la. — Já que é assim, saiba que ela e o Mateus estão vindo para cá, com a intenção de irmos a um restaurante na praia.

Por um instante, pensou que estivesse brincando, então percebeu o brilho sério de seus olhos.

— Pode esquecer! — Falou depressa, tentando dar a maior firmeza possível às suas palavras.

Só de imaginar estar na presença de Nicole, outra vez, sentia o estômago se contorcer. Não era pela raiva e ressentimento dos acontecimentos de anos antes, mas, sim, pela vergonha da noite passada na cama dela.

— Sei o que está tentando fazer, Vivi, e não vai dar certo. Conheço essa sua necessidade de resolver os problemas do mundo. Não sou uma de suas causas humanitárias. Não existe a menor possibilidade de uma amizade entre Nicole e eu. Não posso esquecer o passado, assim como, acredito, que ela não possa mudar sua natureza.

Vivian ainda protestou, mas ela já não lhe prestava atenção.

Seu olhar estava fixo no táxi que havia acabado de estacionar atrás do seu jipe e na mulher que desceu dele afetando todos os seus sentidos e emoções.

O coração de Aléxia disparou, loucamente, dentro do peito e o ar lhe faltou por um instante. Então, curvou os lábios em um sorriso que, esperou, não fosse bobo. Esfregou o pescoço, em um gesto nervoso, hipnotizada pela figura dela.

Com passos firmes, Lis se aproximou, enquanto o táxi manobrava para partir.

Em um segundo, Aléxia registrou os cabelos negros e sedosos derramando-se sobre seus ombros; os olhos, da mesma cor, cheios do brilho brincalhão de que se recordava, e os lábios grossos e vermelhos se abrindo em um sorriso cheio de graça e encanto.

— Oi — ela disse suavemente e Aléxia engoliu em seco, enfiando as mãos nos bolsos traseiros do short para que ela não as visse tremer.

— Olá.

Lis deu um passo em sua direção e, como se estivesse tentando se proteger de algum perigo, seu corpo recuou a mesma distância, esbarrando no jipe. Mesmo desejando, loucamente, se atirar nos braços dela, preferiu manter-se a uma distância segura.

— Já faz muito tempo — comentou, tentando engolir o nó que se formou na garganta.

Quis afastar as emoções que a dominavam, fixando o olhar em um ponto qualquer da rua, mas logo seus olhos voltaram a se prender nela, sedentos e saudosos da beleza de sua figura.

Era a primeira vez, em cinco anos, que se encontravam. E, como tinha imaginado, estava sendo doloroso e impetuoso.

Lis sorriu e procurou qualquer indício de saudade em seus lábios. Pelo contrário, não havia qualquer calor naquele gesto. Era o sorriso que se daria a um estranho na rua ou na fila do supermercado.

— Realmente — ela respondeu, finalmente.

Como Aléxia não sabia bem o que dizer, comentou:

— Você está muito bem, não mudou muito — sentia-se um pouco estúpida com aquela frase, parecia que a tinha tirado de um filme bobinho da Sessão da Tarde, mas não deixava de ser a verdade.

— Você também não, mas noto algumas diferenças.

Aléxia levou as mãos à cabeça, compreendendo que se referia aos seus cabelos, que sempre foram longos e quase atingiam a cintura. Agora, eram curtos e bagunçados, com uma franja média que lhe caía, charmosa, sobre os olhos.

Deu de ombros, como se não importasse.

— É, achei que seria interessante mudar.

— Que pena, adorava seus cabelos.

O comentário a remeteu ao passado. Lis adorava brincar com seus cabelos, enrolando os dedos nos fios sempre que se viam às sós. Dizia que amava a maciez e o cheiro deles.

Lembrando-se da presença de Vivian a observá-las, Aléxia apressou-se em apresentar a amiga, enquanto aproveitava para se recuperar das emoções que lhe assaltaram, consciente de que, agora, se encontrava muito mais vermelha que antes.

— É um prazer — Vivian disse, mas o contrário foi facilmente percebido no tom que usou e em seu olhar duro.

Aléxia não podia culpa-la por isso, já que tinha passado os últimos cinco anos enchendo seus ouvidos sobre como amou Lis e foi descartada como se não fosse nada.

— Digo o mesmo — Lis respondeu educadamente e voltou-se para a ex-namorada que se concentrava em regularizar a respiração. — Será que podemos conversar em particular? Serão, apenas, alguns minutinhos.

Aléxia deu um sorriso vacilante para Vivian que, silenciosamente, retornou para a sombra na calçada. Com um gesto, indicou a entrada da sua casa e seguiu na frente. O portão rangeu um pouco quando aberto, mas não foram muito além dele, ficaram na soleira da porta, se encarando por um tempo que a moça achou longo demais, embora só tivesse se passado um minuto.

Os olhos negros de Lis, a avaliaram sem disfarce. E, os cantos da boca, carnuda e vermelha, formaram um arco, como se aprovasse o que via, aumentando o desconforto da ex.

De repente, Aléxia percebeu que a sensação de aconchego e segurança da sua casa desapareceu, nem mesmo a visão das flores em seu pequeno jardim, outro de seus amores, a acalmou. E, apesar do sol forte de quase meio-dia, ela se abraçou.

— Cinco anos é muito tempo de silêncio… — começou a dizer, com mágoa.

— De ambas as partes — Lis recordou, sem qualquer emoção evidente.

— Sim — concordou, e refletiu por um instante, lembrando-se que se obrigou a jamais procurá-la depois do fim do seu relacionamento.

As palavras que ela usou, na ocasião, foram duras demais para que permitisse ao amor que sentia engolir seu orgulho.

— O que está fazendo aqui?

Por um segundo, ela pareceu a Lis que conheceu e amou. Seu coração se apertou dentro do peito, enquanto observava o vento brincar com os cabelos dela. Estava tão bonita quanto se recordava, mas havia algo diferente, algo que não soube identificar.

Mesmo assim, sabia que esse algo era o que a definia como uma mulher diferente daquela que habitava suas lembranças.

Lis limpou a garganta e firmou o olhar no seu, com dureza.

— Vou ser direta com você, como sempre fui — informou.

Aléxia sabia que isso era uma meia verdade, mas nada disse.

— Vim para pedir que não vá ao meu casamento.

Alguns segundos se passaram, em que imaginou ter ouvido errado, mas ela tornou a repetir a frase. O sangue parou de circular em suas veias; estava consciente de que toda a cor também havia sumido da face.

Desviou seu olhar do dela, enquanto assimilava as palavras, com um suspiro longo, e viu o carro de Mateus estacionar, um pouco à frente do seu. Nicole desceu dele com um sorriso deslumbrante e abraçou Vivian, enquanto Mateus se juntava a elas, desajeitado.

O vestido estampado com flores, que Nicole usava, esvoaçava ao vento, acompanhando o ritmo de seus cabelos, acentuando a beleza da qual era dona. Por um breve instante, seus olhares se cruzaram e Aléxia se sentiu pior.

Era duro levar um fora da mulher que mais amou em sua vida pela segunda vez, mas era ainda pior que isso acontecesse na frente da mulher que mais odiava.

Ordenando-se a se controlar, voltou a fitar os olhos castanhos de Lis.

— Por quê? — Perguntou, esforçando-se para que ela não notasse a dor que lhe causava.

Lis deu um leve suspiro.

— Olha, não me leve a mal. As razões são muitas, mas, principalmente, porque você me lembra de uma época da minha vida que eu quero esquecer, um lapso da minha juventude. Além disso, Alberto pode acabar percebendo algo.

Se houvesse uma mesa entre elas, provavelmente teria sido deslocada com a força da raiva e dor que estava sentindo.

— Então, é isso que sou para você? Um lapso? Um erro?

Lis sorriu com condescendência.

— O que aconteceu entre nós, está no passado. — Fez um gesto vago, como se afastasse algo invisível. — Não nego que foi bom, mas meu futuro é com o seu irmão. Peço, pelo que já significamos uma para outra, que não vá ao casamento.

Aléxia balançou a cabeça com desgosto e o vento lhe trouxe o aroma das rosas no canteiro, cheias de espinhos, como as palavras que ouvia.

Quem era aquela mulher?

Onde estava a menina por quem tinha se apaixonado?

Que fim tinha dado ao seu coração?

Cerrou os punhos, cravando as unhas na carne e desejando poder expulsar toda aquela dor de si. Com o canto do olho, percebeu que Vivian e os outros as observavam. Sorriu tristemente para a amiga, certa de que, dali alguns minutos, ela lhe ofereceria os ombros para derramar suas lágrimas sem questionamentos ou críticas. Então, voltou a dedicar sua atenção àquele belo fantasma de seu passado.

— Considere isso um favor para nós duas — ela continuou.

— Do que está falando?

— Acho que é bem óbvio — deu de ombros, pedante. — Cinco anos é muito tempo para guardar ressentimento de alguém, Lex — usou o apelido que seu irmão lhe dera ainda na infância. — Não sou boba e sei que você também não é, então vamos abrir o jogo. Todos esses anos e você ainda está sozinha, nunca vai para casa nos feriados quando estou lá ou sempre se esquiva de um encontro quando seu irmão e eu estamos por aqui.

Ela sorriu, mais uma vez, com uma pontada de ironia.

— Agora mesmo, percebo em seu olhar que ainda sou importante para você. Foi exatamente dessa forma que me olhou quando tudo chegou ao fim entre nós. Faça um favor a si mesma e não se martirize indo ao casamento.

Aléxia engoliu em seco, seu corpo inteiro tremia de raiva e humilhação. O peito se comprimia de tristeza. Como ela podia fazer isso? Como podia ficar afastada por anos e, de repente, aparecer lhe atirando aquelas palavras ao rosto como se não fosse nada?

Teria sido, mesmo, tão inocente e apaixonada ao ponto de não perceber o quão cruel ela era?

— Olha, — Lis suspirou, dando indícios de que começava a se aborrecer com a conversa — seu irmão te ama demais, mas o que acha que aconteceria se ele percebesse o que você sente? — Atacou novamente.

— Acho que está mais preocupada em evitar que ele descubra o que você sentia quando estava comigo — revidou quase entredentes e diminuiu a distância que havia entre elas, dando um passo à frente.

Imaginou que ela não poderia partir seu coração mais do que já tinha feito, mas estava enganada. No entanto, lidaria com isso mais tarde. Então, deixou que a raiva a dominasse e ficou grata por isso, pois seria mais fácil negar suas afirmações.

— Você está muito longe da verdade, Liz. Há muito tempo, superei o que se passou entre nós.

A ex deixou outro sorriso irônico dominar a face morena de sol e Aléxia se controlou para não a esbofetear, pois tudo que mais desejava era apagar aquele sorriso. Nunca desejou tanto bater em alguém. Precisava colocar toda aquela raiva para fora ou explodiria.

— Sério?

Não respondeu à pergunta em tom de provocação, pois estava ocupada demais tentando controlar os sentimentos que se digladiavam dentro de si. O som do portão rangeu, atraindo sua atenção e ela percebeu, com um misto de raiva e pânico, que Vivian, Mateus e Nicole se aproximavam.

Aquele era um dos piores momentos da sua vida e, para variar, Nicole estava presente nele. Seu olhar se prendeu ao da antiga inimiga, enquanto ela chegava cada vez mais perto, com passos suaves e um rebolado provocante.

Algo se partiu dentro de si, envolvendo-a em um vazio angustiante. De repente, tudo que desejava era poder se vingar de Lis e provar que estava errada, mesmo que o que disse fosse a mais pura verdade.

Movida pelo turbilhão de sentimentos revoltosos em seu íntimo, fez algo que jamais imaginou em sua vida. Estampou seu sorriso mais doce e apressou-se em cumprimentar Nicole com um abraço apertado, sentindo os músculos desta enrijecerem ao seu toque e captando o olhar atônito de Vivian e Mateus, pela inesperada recepção.

— Quero ver se você realmente mudou — falou baixo no ouvido da loira, que ainda correspondia seu abraço.

Nicole estava sorrindo quando se afastou. Seu olhar era indecifrável e, assustadoramente, penetrante. E, por um momento, imaginou que ela pudesse ler sua alma. Seus rostos estavam bem próximos e pôde sentir o aroma mentolado do hálito dela, enquanto perguntava baixinho, quase sussurrando, em um tom provocante:

— E como quer ver isso?

O estômago de Aléxia se revirava e provou o gosto ácido da própria bile quando falou.

— Finja que é minha namorada por dez minutos — respondeu, usando o mesmo tom e sorriu, quase angelical.

Vivian estava próxima o suficiente para ouvi-la e ofegou, surpresa. Não conseguia acreditar que tinha ouvido aquilo e esperou para ver o resultado, com as sobrancelhas arqueadas e os lábios comprimidos.

Já Nicole, primeiro, achou que fosse uma piada, mas o modo como Aléxia a fitava, aguardando a resposta com ansiedade, deixava claro a seriedade da proposta. Teve vontade de rir, incapaz de acreditar naquilo, mas manteve-se séria e vagou o olhar para além dela, imaginando, acertadamente, o motivo daquele inusitado pedido.

Os segundos pareceram horas para Aléxia; o rosto de Nicole era uma máscara inexpressiva, não conseguia decifrar seus pensamentos, então esperou, como sempre, pelo pior, mas nada do que ela dissesse ou fizesse, seria tão devastador quanto as palavras da ex. Odiou-se por estar fazendo aquilo tanto quanto se odiava por amar Lis.

Aguardou uma risada de escárnio, uma piada, até mesmo um tapa, mas nada veio. Em vez disso, a moça abriu um sorriso encantador, tão deslumbrante quanto a luz do sol sobre suas cabeças.

Nicole tomou a mão dela e a levou até os lábios, com uma piscadela marota.

— Que seja! Isso vai ser interessante — falou, animada.

 Aléxia engoliu em seco, descrente. Não conseguia crer no que estava fazendo e, pior ainda, que Nicole havia topado. Respirou fundo algumas vezes e se voltou para Lis, arrastando a loira pela mão, quase possessiva.

— Amor, esta é a minha cunhada, Lis.  Lis, esta é Nicole, minha namorada — experimentou um gosto amargo na boca ao terminar a frase, mas estava determinada a contradizer a ex que, por um breve instante, deixou sua máscara de indiferença cair.

— É um prazer —  sua voz soou baixa, sem a segurança de minutos antes.

— É todo meu — Nicole respondeu sorrindo e Aléxia percebeu que Vivian estava segurando a respiração ao seu lado. Mentalmente, chamou-se de louca uma dezena de vezes e imaginou que a palavra fazia eco na mente da amiga. 

— Lis veio… O que te traz a cidade mesmo? — Perguntou, fingindo ignorar a razão.

A moça se empertigou e respondeu, com um sorriso forçado.

— Compras para o casamento.

— Compras! Ela veio fazer compras para o casamento e resolveu dar uma passada para me ver, afinal faz tanto tempo que não nos encontramos.

Nicole sorriu em resposta a explicação, achando divertida a situação. Nem em seus sonhos mais loucos, se imaginou fazendo algo do tipo, ainda mais com Aléxia. Provocadora, enlaçou a cintura dela, achando graça no tom rosado que lhe tomou a face. Se achegou mais e a ex-colega de faculdade enrijeceu o corpo, nervosa com o contato.

— Nada de mais, apenas alguns mimos para os convidados — explicou Lis, deixando escapar um pouco de desagrado pela interrupção em sua voz, mas, mesmo odiando-a pelo que havia acabado de lhe dizer, Aléxia preferiu pensar que, no fundo, era um pouco de ciúmes.

— Que tipo de mimos? — Quis saber Vivian.

Ela ainda prendia um pouco a respiração, mas compreendeu, rapidamente, o que a amiga estava tentando fazer, embora não concordasse. Mateus, por sua vez, preferiu manter-se calado, já que ninguém o tinha apresentado e Aléxia sentiu-se grata por ele não ter estragado sua pequena mentira.

— Surpresinhas que o Beto quer fazer — explicou a moça, em um tom maçante.

Se alguém ali, além dela, conhecesse seu irmão, saberia que era um homem simples e, provavelmente, preferia um casamento reservado, em um cartório qualquer, à grande festa que teriam.

— Hum, agora fiquei curiosa — Nicole decidiu se envolver, sorrindo maliciosamente. — Sabe, ainda não conheço ninguém da família da Alê e estou ansiosa para ouvir suas armações de infância e situações constrangedoras.

Lis sorriu e manteve-se em silêncio, enquanto aguardava sua conclusão.

— Estamos indo almoçar na praia. Venha conosco e nos divirta com histórias embaraçosas — riu e Aléxia também envolveu sua cintura, fazendo um pouco de pressão. Um aviso claro para não exagerar.

Uma pequena gargalhada escapou por entre os lábios de Lis que, sem perceber, enrolava o dedo em uma mecha de cabelo. Aléxia sabia que aquele gesto inconsciente sempre espelhou sua contrariedade ou nervosismo e sentiu-se um pouco satisfeita apesar de tudo.

— Bem, foi apenas uma visita rápida. É uma pena, mas estou atrasada para um compromisso e não vou poder aceitar o convite. Além disso, não conheci Aléxia na infância, então não seria uma boa fonte de situações constrangedoras — falou e apressou-se em se despedir com um misto de aceno e inclinares de cabeça.

Afastava-se, em direção ao portão, quando se voltou, olhando significativamente para a ex.

— Por favor, pense no que lhe disse, vai ser o melhor para todos.

Aléxia a observou virar a esquina, ainda com a mão na cintura de Nicole, então se afastou lentamente dela. Balançava a cabeça, sem poder acreditar no que tinha acontecido e no que fizera. Suas mãos tremiam, descontroladamente, e seus sentimentos eram um misto de amor, ódio e humilhação.

— Ok, isso foi estranho — Vivian comentou, olhando-a com curiosidade.

Nicole se afastara completamente e lhe dedicava um olhar indecifrável. Felizmente, ela nada disse. Incapaz de falar mais alguma coisa e sentindo a aproximação das lágrimas, Aléxia deu-lhes as costas e entrou em casa batendo a porta atrás de si.



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