ALÉM DAS PALAVRAS

4. É possível?

Vivian caiu na água com um gritinho e Mateus se jogou atrás dela um segundo depois, mergulhando e emergindo em um beijo apaixonado. Nenhum deles levara roupa de banho, mas isso não os impediria. Eram muito diferentes e tinham tudo para não dar certo, no entanto, as diferenças os tornavam mais unidos e apaixonados e, apesar de não gostar muito dele, Aléxia invejava o que tinham.

Ela observava o casal jogada, de qualquer jeito, em uma cadeira debaixo de um guarda-sol do restaurante. Algumas mesas invadiam a faixa de areia da praia e era numa dessas que se encontrava tomando sua quarta cerveja com Nicole ao lado. Tinha os pés descalços e enfiados na areia até os tornozelos, enquanto a ex-colega estava sentada graciosamente.

Nenhuma das duas havia falado sobre o que aconteceu. Aliás, Aléxia não tinha aberto a boca para nada, a não ser para pedir cerveja e um petisco, ainda intocado sobre a mesa.

Vivian teve muito trabalho para convencê-la a sair do quarto e acompanhá-los. Acabou cedendo, disposta a não se deixar afundar, mais uma vez, no sofrimento por Lis. Chorou por um bom tempo no colo da amiga, por isso escondia os olhos inchados atrás de óculos escuros. Agora, engolia a cerveja sentindo, ainda, o nó que havia se formado em sua garganta quando Lis revelou o motivo de sua visita. Nem mesmo teve forças para brigar com Nicole por ter acendido um cigarro ao seu lado, minutos antes.

Esta, por sua vez, tomava uma Coca Cola com gelo e limão, tão calada quanto a própria Aléxia. Sentia-se uma intrusa ali; remoendo seus fantasmas, enquanto assistia a ex-colega se embriagar.

Compreendia o que se passava com ela, bem mais do que poderia deixar transparecer.

Aos seus olhos, Aléxia sempre foi um pouco inocente e muito sensível, até um pouco infantil. Exemplo disso, foi o seu estranho “pedido de namoro”. Era aquele modo de ser que permitia que as pessoas a magoassem, como ela própria fez no passado. Contudo, também era isso que a tornava especial e bela além da aparência.

Coçou o queixo, imaginando se devia ou não puxar conversa, já que era bastante óbvio o esforço que ela fazia para ignorá-la. Por fim, deu de ombros e resolveu perguntar:

— Então, qual a sua história com a noivinha? — Liberou uma pequena nuvem de fumaça, que foi carregada pelo vento em seguida.

Aléxia saiu de seu torpor e a olhou, ainda em silêncio, e seu estômago se contorceu. Finalmente, havia se dado conta do que fez. Se mostrou fraca diante de alguém que desprezava e, para piorar, tinha pedido a ajuda dela.

Sentiu-se enojada por sua própria fraqueza. Mais ainda, pelo que se obrigou a fazer, pelo modo como estava se sentindo e por ainda gostar tanto da mulher que, em poucos dias, seria sua cunhada.

Esperava ver um sorriso cínico no rosto da outra, mas não havia nada ali. Seus olhos eram dois espelhos d’água, calmos e serenos como um lago no meio de uma floresta intocada.

Quantas vezes desejou estapear aquela bela face? Não fazia ideia, mas foram tantas que até sonhou com isso. Contudo, não era dada a violência e seus desejos nunca ultrapassaram a barreira da imaginação para a realidade.

Por mais que a odiasse, não podia negar que Nicole também tinha um pouco de responsabilidade sobre o tipo de mulher que havia se tornado. Ainda que tivesse muito da garota que ela conheceu e atormentou, gostava de pensar que evoluiu e que as dores que lhe causou tornaram-se degraus que superou. Assim como desejava fazer com Lis.

Respirou fundo e engoliu seu orgulho junto com o resto da sua cerveja. Assim como lhe pedir ajuda tinha sido um dos momentos mais difíceis da sua vida, aquele também estava sendo.

— Obrigada — agradeceu. A palavra lhe pareceu indigesta e amarga, então voltou a fixar o olhar no vazio, remoendo seus dissabores.

Por algum tempo, Nicole respeitou seu silêncio.

Aproveitou o momento para admirar seu semblante sem ser notada. Percorreu os traços delicados de sua face e os fios negros e curtos dos cabelos que, outrora, atingiam a cintura. Os anos lhe fizeram bem. Estava mais bonita do que recordava, embora ainda lhe parecesse estranho não ver um magnifico rabo de cavalo a balançar às suas costas. Na faculdade, Aléxia usava óculos de grau e a ausência deles também a incomodava, mas aquele “novo” visual deixava-a mais leve, mais mulher também.

— Por que você precisava de uma namorada falsa? — Questionou. Não conseguiu se conter, precisava saber mais dela.

A outra a fitou, os lábios se contorcendo em desagrado. O desprezo que lhe dedicava era quase palpável.

— Droga! Você não poderia se contentar com um simples “obrigada”? — Ela perguntou, irritada. Fez menção de erguer-se, ansiando se afastar, mas Nicole pousou a mão sobre a sua, impedindo que completasse o movimento. A apertou suave e sorriu, desarmando-a.

Não havia nada de provocativo naquele sorriso. Em vez disso, lhe pareceu triste e, de repente, sentia-se cansada demais para discutir com ela ou qualquer outra pessoa. Na verdade, só desejava ficar ali, embriagando-se para entorpecer os pensamentos e admirando o mar.

— Gosto de saber o motivo de ter fingido ser a namorada de alguém — deu de ombros e retirou sua mão devagar. Era estranho estar ali, sentada ao lado dela depois de tantos anos e do muito que a magoou. Entretanto, aquele momento havia sido uma escolha sua; procurou por ele e pretendia usufruí-lo da melhor maneira possível, mesmo que isso significasse suportar o ódio que cativou.

Aléxia demorou-se a fitar a mão que ela apertara com tanto cuidado. Engoliu em seco e ergueu o olhar.  Ela mesma não conseguia compreender bem o que fez. Tinha sido uma atitude impulsiva e infantil, cujo único benefício foi afastar Lis mais depressa e sem gritos. Mas, por um minuto, também foi satisfatório vê-la desconcertada ao saber que seguiu adiante e namorava alguém.

— Dá para ver que ainda está apaixonada por ela — comentou a loira após tomar o resto da sua Coca Cola. Os cantos dos seus lábios estavam erguidos em um sorriso singelo. Fitou o mar por alguns segundos, então voltou-se para Aléxia e quase riu da expressão surpresa em sua face, mas controlou-se.

Estavam conversando educadamente, sem gritos ou insultos, e pretendia permanecer assim, porque havia muito tempo que a Nicole que Aléxia conheceu não existia mais e, também, porque desejava dar mais um passo em direção à paz de espírito que tanto buscava.

— Nós nunca… — ela tentou negar, mas interrompeu-se ao ver um sorriso “conta outra” rachar os lábios da loira. Ela exibia uma fileira de dentes muito brancos, enquanto os fios dourados de seus cabelos esvoaçavam pelo vento forte.

— Quando estávamos na faculdade, eu costumava sair da aula para fumar atrás do bloco D. Acho que você lembra que ele dava para o estacionamento — coçou a bochecha, sorrindo de lado.

Aléxia recordava que não era segredo para ninguém as escapadas dela para fumar durante as aulas. Já naquela época, o cigarro era o seu companheiro mais fiel.

— Me lembro de uma dessas escapadas, em especial — fitava o vazio, como se revivesse o passado diante de seus olhos e, por um breve instante, seus lábios se contraíram em uma expressão de desagrado. — Encontrei o Dimas no corredor e ele me convidou para uma festa qualquer. Acho que era para comemorar a formatura do irmão dele. Não sei com certeza. Só sei que nunca fiquei tão bêbada numa festa, quanto fiquei naquela — riu, balançando os ombros levemente e uma sucessão de borrões e sorrisos bêbados lhe invadiu a mente, então piscou algumas vezes e as imagens se foram. — Mas estou me desviando do assunto — voltou a mirá-la. — Naquela tarde, meus cigarros e eu, assistimos a um encontro apaixonado de um casal. Foram poucos minutos, mas pude ver em cada gesto, cada olhar, em cada beijo, algo que confesso nunca ter experimentado de verdade em minha vida: Amor.

Ela riu como se achasse engraçado o que disse. Aléxia reparou que seu semblante parecia mais suave do que se lembrava e acabou se perguntando o que tinha lhe acontecido em todos aqueles anos, para que se mostrasse tão diferente do que era naquele momento. 

— Havia muito amor ali — Nicole completou, um pouco reticente. Não costumava falar sobre sentimentos. Havia aprendido a manter os seus em silêncio, apesar de fazer muito tempo que não os calava mais.

Se lhe prestassem atenção, conseguiriam ouvir, com clareza, o que se passava em seu coração.

Relaxada, depositou a guimba do cigarro em um cinzeiro sobre a mesa. O vento brincou com as cinzas, carregando-as para longe. Pegou outro da carteira e foi acendendo, enquanto falava:

— Nunca mais vi esse casal junto. Contudo, nunca o esqueci e tive a certeza, naquele dia, de que fui testemunha de um segredo — seu olhar estava fixo no mar. — Imagine a minha surpresa quando, sete anos depois, volto a me deparar com o mesmo casal e sou convocada a fingir que sou namorada de uma delas — seu olhar retornou para a mesa cheio de significados e, ao mesmo tempo, com um brilho inquietante.

Aléxia riu com desgosto ao compreender de quem falava.

— Estou surpresa por você não ter feito um escândalo na época — comentou venenosa e tomou um gole da cerveja que o garçom havia acabado de trazer. As garrafas vazias se acumulavam na mesa com rapidez.

Ao longe, Vivian e Mateus brincavam, jogando água um no outro entre beijos e abraços, completamente perdidos em seu mundo particular.

— Também fiquei surpresa — Nicole revelou. Seu sorriso era leve e muito diferente do que se lembrava, mas tinha certeza de que a antiga Nicole ainda estava ali. Provavelmente, esperando o momento certo para se revelar e lhe atirar na face seu momento de fraqueza ao lhe pedir ajuda.

— Quando disse que mudei, era verdade — falou, como se estivesse lendo seus pensamentos. De fato, sabia que era isso que estava se perguntando. Aléxia tinha o mesmo olhar curioso e, ao mesmo tempo, cético que muitas das pessoas que a conheceram no passado exibiam ao vê-la tão mudada após tantos anos.

Não era uma surpresa, mas não deixava de se sentir magoada com isso. Não pelos olhares e a desconfiança. Sua mágoa era para consigo mesma; por ter feito tanto mal as pessoas e a si, por não ter percebido o quanto se destruía e, assim, destruía o que e quem a cercava.

Um riso descrente escapou de Aléxia.

— Apesar do que fez por mim hoje, ainda não acredito.

A moça suspirou.

— É justo — prendeu uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Só peço que me dê uma chance de provar o que digo.

— Sinto muito, mas quando olho para você, tudo que vejo é o seu sorriso bêbado me humilhando no meio da festa de aniversário do Thiago.

Como se tocar no assunto evocasse as lembranças, recordou quando Nicole, bêbada, notou sua presença na festa de um de seus colegas de classe e começou a fazer um leilão dos convidados. Primeiro, alguns meninos. Todos acharam divertido, até mesmo Aléxia, até que chegou sua vez.

Nicole demonstrou uma leve surpresa, depois voltou a sorrir. Aquele era outro momento do qual não se orgulhava. 

— Isso foi há muito tempo. Éramos tão jovens e imaturas… — Falou devagar, como se saboreasse o gosto amargo daquela lembrança.

— Não tanto assim — retrucou.

— Errei muito com muitas pessoas, especialmente com você. Chegará o dia em que lhe pedirei perdão por tudo o que fiz.

— Chegará?! — Sorriu cética.

— Sim — afirmou.

— E o seu pedido de perdão apagará as lembranças tristes, as dores que me causou, o caminho das lágrimas que derramei em meu travesseiro quando retornava para meu quarto após mais um confronto com você?

Nicole engoliu em seco. Pela primeira vez, estava desconfortável e a ex-colega sentiu-se um pouco satisfeita com isso. Contudo, sabia que direcionava sua raiva, pelo que aconteceu em sua casa, para ela. Mesmo assim, continuou.

— Por favor, pare com o teatrinho de “boa moça”. Estamos sozinhas aqui. Você é uma filha da mãe, é um fato. Diz que mudou, mas e daí?! Isso não apaga o que fez no passado. Pelo menos, não para mim.

Riu com ironia e ergueu a mão para impedi-la de falar.

— Não sou mais aquela garota que você atormentava, Nicole. Aprendi a enfrentar meus medos. Quase todos, pelo menos — pensou em Liz e no irmão. — Você era um deles. Cansei de apanhar da vida e das pessoas.

Riu outra vez, secando a garrafa que segurava de um único gole.

— E de que adiantou me esforçar tanto para mudar, se não posso fugir de quem realmente sou? Aquela garota ainda vive em mim e, às vezes, ela toma o controle. Como aconteceu mais cedo. Outra vez, voltei a ser estúpida e medrosa! — Estapeou a mesa, causando um leve sobressalto na companheira.

Respirou fundo algumas vezes, afastando alguns fios da franja que lhe caíram sobre a face. Olhou em volta, notando que era objeto de atenção dos ocupantes de outras mesas e um leve rubor lhe tomou as bochechas, então passou a dedicar sua atenção ao rótulo da garrafa, mas não o fitava realmente.

— Você não é estúpida, nem medrosa! — Nicole afirmou, condescendente.

— Então, por que me sinto assim?! — Exalou, sem saber a razão de falar sobre seus sentimentos com alguém que odiava e que, provavelmente, faria piadinhas de mau gosto sobre isso depois.

A loira apagou o cigarro, ainda pela metade. O deformou no cinzeiro e a mirou suavemente.

— Não é estupidez amar, mesmo que isso nos magoe — disse.

Deslizou a mão pelos cabelos e um sorriso complacente lhe tomou os lábios vermelhos.

— Quanto a ser medrosa, você nunca foi. — Ergueu as mãos, como se estivesse na defensiva. Aléxia a fitava, surpresa. — Você é uma das pessoas mais corajosas que conheci, não deixe que alguém lhe diga o contrário e nem se permita pensar assim.

— Eu bebo e você que fica bêbada?! — Indagou, provocando-a. Estava desconcertada com a forma que lhe falava.

Nicole deu um risinho e continuou:

— Eu sou covarde, Aléxia. Fui medrosa por muito tempo. Posso falar, com propriedade, que você não é assim. — Limpou a garganta. — Sim, chegará o dia em que lhe pedirei perdão e sei que isso não irá apagar o mal que causei. Mas gostaria que, por agora, você tentasse me ver como sou neste momento e não como a idiota que fui.

Aléxia ponderou sobre seu pedido, assistindo ao voo de um helicóptero no horizonte.

Com amargura, decidiu que não valia a pena. Nicole e ela eram como água e óleo, jamais iriam se misturar. E, apesar das palavras, das atitudes nos encontros recentes, ela sempre seria uma das suas maiores dores. Mas, já que sua presença, aparentemente, se tornaria uma constante nos encontros com os amigos, resolveu esperar para ver. Quando a Nicole verdadeira aparecesse, ela estaria preparada.

Alguns pingos de água atingiram seu braço quando Vivian se sentou na cadeira ao lado, ainda de mãos dadas com Mateus. Estavam completamente ensopados, mas rindo como crianças e a sua chegada afastou o silêncio carregado que tomou as duas ex-colegas de faculdade.

— Você está bem? — Vivian indagou, deixando um pouco da sua alegria de lado e com evidente preocupação no olhar.

— Estou. — Fez uma tentativa de sorrir, mas não teve muito sucesso. Naquele momento, sorrir lhe parecia um esforço quase sobre-humano.

A amiga fingiu acreditar. No entanto, sua preocupação cresceu ao notar que ela estava na quinta cerveja e não fazia muito mais que uma hora que estavam ali.

Aléxia odiava o olhar de pena que os amigos estavam lhe dirigindo e se perguntou quanto tempo mais aguentaria sem cair no choro novamente. Tudo que queria era ficar um tempo sozinha, mas se recusava a fazê-lo. Temia se entregar ao choro e desespero novamente.

Lis ainda habitava seu coração, nunca se enganou sobre isso. Entretanto, imaginou que a presença dela não poderia mais afetá-la daquela forma. Infeliz engano. O simples fato de vê-la a machucou, assim como a presença de Nicole fazia.

— Vocês já se divertiram um pouco, agora é a nossa vez — Nicole falou, de repente. — O que acha, Aléxia? Quer dar uma volta com uma velha inimiga?

Surpresa, a moça pensou em dizer não, mas não queria ficar perto dos olhares piedosos dos amigos, então, surpreendentemente, aceitou.

***

Durante algum tempo, caminharam pela orla em completo silêncio; Aléxia com uma long neck nas mãos e Nicole com seu inseparável cigarro.

— Obrigada.

Nicole parou, observando-a com a sobrancelha erguida. Aléxia completou:

— Por me convidar — fez um gesto indicando que falava daquele passeio.

— Você não gosta da minha companhia, mas fico feliz que tenha aceitado vir — recomeçou a andar.

— Só porque não estava mais suportando o olhar de piedade deles — esclareceu e a seguiu. — São meus amigos, mas o “cuidado” também pode machucar.

— Mesmo assim — deu um longo trago no cigarro e sorriu para o vento, causando um leve desconforto na companheira que, quanto mais tempo passava em sua companhia, questionava-se o que havia de diferente nela e de onde vinha aquela leveza em seu semblante para, em seguida, repetir-se que ainda era a mesma mulher que a atormentou por anos.

De fato, estar em sua companhia era torturante, mas o esforço que empregava para não fugir para longe dela a deixava ocupada demais para pensar em Lis e Alberto.

— Por que você fuma tanto? — Perguntou, puxando assunto para escapar do silêncio ao qual se entregaram novamente. Se ficasse muito tempo sem ter no que pensar, sua mente a arrastava de volta para a ex-namorada.

Fitou a ex-colega, seriamente. Lembrava que ela não fumava quando se conheceram. Aliás, ela não fazia muitas outras coisas, também. Nicole era o tipo boa moça, vinda de uma boa família, educada, até um pouco doce. Então, mudou da água para o vinho e passou a ser uma presença constante nas festas, a beber e fumar muito e a persegui-la.

A moça lhe devolveu o olhar, pensativa. Soltou outra nuvem de fumaça e fez um biquinho.

— Acalma os pensamentos ruins — respondeu, finalmente.

— Tem muitos pensamentos ruins?

— O tempo todo.

Haviam parado em baixo de uma árvore no calçadão e admiravam o mar.

— Quando será o casamento? — Perguntou, recostando-se na árvore.

— Daqui uma semana —  suspirou.

— No carnaval?! — Sorriu, descrente.

— Sim.

— Quem se casa no carnaval?

Pela primeira vez, depois de seu encontro com Lis, Aléxia riu. Recordou que também se fizera essa pergunta. Aquela não era uma data romântica. Era uma data de folia, bebedeira e pegação.

— Eles querem aproveitar o feriado prolongado para dar uma grande festa. O feriado é meio que uma forma de garantir que ninguém terá uma desculpa para não ir. — Jogou um sorriso de lado, desanimada.

— É uma data estranha para se casar. Mas quem sou eu para julgar? — Deu de ombros. — E você vai?

Aléxia mordeu o lábio, relembrando as palavras da ex e sentiu-se vazia. Havia um buraco em seu peito e uma grande mancha negra em seus pensamentos. De repente, tudo o que queria fazer, era gritar. Em vez disso, tomou um gole da cerveja, mas já havia esquentado, então atirou a garrafa na lixeira ao lado da árvore.

— É por isso que ela veio — falou, voltando a contemplar o mar. — Veio me pedir para não ir.

Esperou algum comentário espertinho, mas nada veio, exceto o som das ondas e do vento nas folhas da árvore sob a qual estavam.

— E vai fazer isso?

Aléxia retirou os óculos e fitou os olhos verdes da outra, achando aquele dia cada vez mais estranho e doloroso. Estava falando sobre seus amores para a mulher que a infernizou, exatamente por amar daquela forma. Tinha certeza de que chegaria o momento em que se arrependeria amargamente disso, aliás, já estava arrependida, contudo, a respondeu.

— A verdade é que eu não quero ir e já estava pensando em uma desculpa para dar antes dela aparecer. No entanto, existe um “pequeno” problema — fez um gesto, aproximando o indicador e o polegar.

— Qual?

— Serei a madrinha do meu irmão.

Nicole sorriu. Se preparou para fazer um comentário desaforado, mas percebeu que ela estava apenas observando a ironia da situação. Ela mesma já tinha rido às gargalhadas disso; já tinha chorado, gritado, quebrado algumas coisas e se repreendido por uma centena de vezes.

— Então, mesmo que queira, não pode deixar de ir — concluiu.

— Eu sei, é uma merda! — Resumiu, rindo amargamente.

Nicole a acompanhou no riso que foi diminuindo gradativamente, até que o silêncio, outra vez, ganhou espaço entre elas. Contudo, não durou muito.

— Por que me pediu para fingir ser sua namorada?

Algumas rugas se formaram na testa de Aléxia quando ergueu as sobrancelhas, avaliando-a. Exalou, descontente consigo mesma.

— Não é mesmo irônico, fingir que a mulher que você odeia é sua namorada para a mulher que você ama?

Nicole ficou em silêncio por um longo tempo e, quando o quebrou, sua voz não demonstrava qualquer sentimento, assim como sua face era uma máscara inexpressiva.

— Ódio é uma palavra muito forte — observou. Suas palavras não eram mais que sussurros, mas apesar do som forte das ondas, Aléxia as capitou.

Baixou o olhar para as próprias mãos.

— Mas sempre me senti assim em relação a você — foi sincera, encarando-a novamente.

— Sempre?!

Pensou um pouco; a testa franzida. Não, não foi sempre assim. Houve um tempo em que elas foram amigas, mas tudo mudou quando assumiu sua homossexualidade.

— Não, nem sempre. Fomos amigas um dia.

— Podemos ser de novo.

A observou atentamente. Seus olhos verdes tinham um brilho sincero e havia certa expectativa neles, mas não estava disposta a se arriscar e, enquanto vivesse, sempre a consideraria uma inimiga.

— Não, acho que não — respondeu.

Falava devagar e suavemente, apesar de que, em seu peito, aquelas palavras explodiam cheias de mágoa e revolta.

— Nunca me imaginei conversando com você outra vez. Com certeza, jamais me imaginei pedindo sua ajuda, ainda mais da forma que aconteceu mais cedo. Sou grata por ter me ajudado, apesar de ainda estar surpresa com as minhas e as suas atitudes. No passado, você foi horrível comigo sem que eu jamais tivesse lhe feito algum mal. Você me marcou, Nicole. Me marcou de diversas formas e não posso esquecer o que houve — lhe dedicou um sorriso amargo. — Nós temos amigos em comum e, graças a isso, eventualmente acabaremos nos encontrando. Mesmo assim, se eu puder evitar, o farei. Se não for possível, tentarei ser educada com você e poderemos manter uma relação de cordialidade, mas nada além disso acontecerá. A minha lista de amigos é pequena e, com certeza, você jamais voltará a entrar nela.

***

A tarde chegava ao fim, quando Mateus estacionou o carro diante da casa de Nicole. Ela estalou um beijo na bochecha do amigo e saltou do veículo em silêncio. A tarde tinha sido agradável, apesar do humor de Aléxia e o seu próprio que tinha piorado um pouco após a conversa que tiveram. Mas não podia reclamar por estar recebendo aquilo que cativou: raiva e rancor.

Vivian a seguiu até a porta.

— Você está bem?

— Acho que ninguém consegue ficar bem quando ouve alguém dizer que a sua presença lhe inspira ódio.

Olhou para as paredes recém pintadas da casa nova e pendurou um cigarro nos lábios, sentindo saudades de seu antigo apartamento. Tinha certeza de que jamais se acostumaria com aquelas paredes.

— Alê te disse isso?

Balançou a cabeça.

— Não com estas palavras, mas foi quase isso. Te falei que essa sua ideia de nos aproximar, não ia dar muito certo.

— Pensei que quisesse se reconciliar com ela.

— Sim, eu quero isso. Quero muito! Mas não posso apagar o que fiz para ela e acho que forçar a minha presença não é um jeito legal de tentar reatar qualquer laço que tivemos antes de eu me tornar “um monstro”. Ela mal olha para mim, Vivi.

— Mas acabou te pedindo ajuda e até deu um passeio contigo.

— Grande coisa! Ajudei e depois de me agradecer, ela me deu umas patadas! É melhor deixar pra lá por um tempo. Vamos devagar. Talvez, um dia, ela perceba que mudei de verdade e…

— Coisa nenhuma! Com Alê não dá para ir devagar — passou a mão nos cabelos, assanhando-os. — Vou dar um jeito nisso. — Garantiu. — Você se esforçou para encontrá-la e não me venha desistir agora! Tenho uma ideia, mas acho que você não vai gostar e Aléxia menos ainda. Contudo, vai ser divertido! — Sorriu, traquina. Estava ciente de que iria comprar outra briga com a amiga, mas, desta vez, foi a própria Aléxia que lhe forneceu a ideia.

Mateus buzinou, impaciente. Vivian fez um gesto irritado para ele e estalou um beijo na bochecha de Nicole, dizendo:

— Te ligo amanhã e combinamos tudo.

— Olha lá o que você vai aprontar, Vivi!

Balançou a cabeça algumas vezes, receosa do que ela estava planejando, mas considerou que pior não poderia ficar.

Curtiu os últimos raios de sol do dia, com o vento a brincar com seus cabelos, enquanto fumava recostada a porta que ainda não havia se dado ao trabalho de abrir. Sorriu, ao recordar o estranho pedido de Aléxia. Se ela soubesse a verdade, saberia que não precisaria lhe pedir nada.

Balançou a cabeça, liberando a fumaça do cigarro pelas narinas.

— Ah, Nicole, como você foi estúpida! — Sussurrou para si.



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