ALÉM DAS PALAVRAS

6. VERDADES E MENTIRAS QUE SE MISTURAM

Por mais que tivesse tentado esquecê-la, Lis sempre esteve presente em todos os relacionamentos que teve; sempre foi a razão para que nunca durassem muito e para que chegasse à conclusão de que seu destino era ficar só, que era mulher de um único amor. 

Vivian dizia que isso era medo de sofrer outra vez. Afirmava que ela já não amava Lis há muito tempo, mas que a moça tinha lhe marcado de tal forma que confundia seus sentimentos. 

Talvez ela tivesse um pouco de razão. Existia medo, raiva e rancor em abundância no seu coração, mas, também, havia amor. Isso era um fato. Não um amor puro e inabalável como no passado, mas um amor calejado e fraco que ansiava ser apagado. E que, ainda assim, resistiria o máximo possível. 

Aléxia refletia sobre sua vida amorosa nos últimos cinco anos, recostada na janela. Às vezes, deixava um suspiro de lamento escapar, ignorando que era objeto de observação de Nicole. Esta, por sua vez, enxugava o cabelo recém lavado, sentada na cama ouvindo Vivian tagarelando sobre como adorou o lugar. No entanto, as duas mulheres trocavam, vez ou outra, olhares cumplices, em uma conversa silenciosa, que nada tinha a ver com o lugar. 

As palavras silenciosas ganharam som, quando Aléxia entrou no banheiro a fim de, mais uma vez, jogar um pouco de água no rosto para se refrescar e acalmar-se. 

— E aí? — Vivian indagou, baixinho. 

— Fico esperando ela explodir a qualquer momento. Aliás, ela vai fazer isso em algum momento. — Passou uma mão pela face, liberando o ar pelo nariz. — Não sei como te deixei me convencer a fazer isso. Aliás, você mentiu pra mim! — Rosnou. 

A ruiva fitou a porta do banheiro, ainda fechada, e lhe lançou um olhar presunçoso. 

— Você não teria vindo se ela não quisesse. 

— Mas é claro que não! 

Vivian deitou na cama e abraçou um travesseiro. Duas mulheres complicadas, aquelas! Conteve a vontade de revirar os olhos e encarou o teto por alguns segundos, antes de voltar a sentar-se, aproximando-se o máximo possível dela. 

— Foi o seu medo que nos trouxe aqui. Se tivesse sido sincera consigo mesma quando deveria, não precisaria consertar seus erros. Não teria feito muitas outras coisas também! 

Estava sendo dura com ela, mas Nicole havia lhe confiado seus segredos; segredos que diziam respeito a Aléxia também e, apesar de se conhecerem pouco, já gostava dela tanto quanto da melhor amiga. Mateus não estava enganado, meses antes, quando lhe disse que iria adorar conhecê-la. 

A outra lançou-lhe um olhar triste e resignado. Às vezes, um tapa na cara podia ser menos doloroso que algumas verdades. 

— Faça um favor a si mesma, Nicole, aproveite esta oportunidade para lhe contar a verdade. — Indicou a porta do banheiro com o olhar. — Ela já te odeia mesmo. E, se tenho de ficar ouvindo lamentações das duas, que seja por um bom motivo. — Os cantos da sua boca estavam repuxados em um sorriso nada inocente quando Aléxia retornou ao quarto. 

A moça arqueou as sobrancelhas, intrigada com aquela proximidade, mas não teceu comentários. Caminhou para a janela e por lá ficou, ouvindo Vivian tagarelar mais um pouco. 

— Essa casa é do pai dela? — A ruiva perguntou, se juntando a ela na janela. 

— Sim — respondeu, preguiçosa. 

— Pelo aspecto disso aqui, deve ser rico — concluiu. 

O pai da ex-namorada era muito mais que rico; porém, era um homem simples, que apreciava as pequenas coisas. O luxo daquele lugar, era obra da esposa. 

— É dono de uma rede de postos de gasolina na região — esclareceu, desanimada. Então, voltou sua atenção para o que se passava além da janela. 

Assim como a tarde, a noite estava quente. Uma brisa suave soprou, trazendo aos seus ouvidos, os sons da noite no campo, junto com recordações de tantas outras noites que passou naquela casa com Lis. 

Momentos de ternura, momentos de amor, momentos de luxúria, todos indo e vindo em sua mente como páginas de um álbum de fotografias. Como desejava estar longe dali; se possível, em outro planeta. Mas não daria aquele gostinho a Lis. Não a deixaria sair vencedora outra vez. 

Nicole se aproximou delas, ainda concentrada em pentear os cabelos. Seu perfume invadiu os sentidos de Aléxia, que a amaldiçoou por cheirar tão bem e perguntou-se se conseguiria não achar mais traços de perfeição nela, com exceção daquela personalidade odiosa. 

Alguém teve a ideia de unir algumas das mesas, que seriam usadas para a festa, em baixo de uma enorme jaqueira. Luzes foram espalhadas pelos galhos e uma fogueira acesa próximo a lagoa. Música fluía de um aparelho de som ao lado do tronco da jaqueira, se misturando as vozes e risos. 

O casamento seria na segunda-feira, mas já havia uma quantidade considerável de membros das duas famílias ali; todos sentados em volta da mesa improvisada, ingerindo as bebidas de suas preferências, enquanto aguardavam o jantar ser servido. 

— Por que não ficamos na casa dos seus pais, na cidade? — Quis saber Nicole. 

Aléxia voltou sua atenção para ela, por um breve instante. A fitou longamente, desejando compreender seus reais motivos para estar ali. Seu silêncio pareceu incomodá-la, então ela deu-lhe as costas e se afastou. Reclinou-se sobre a cômoda com o olhar atento no espelho, enquanto passava batom nos lábios carnudos. 

Sem conseguir esconder a irritação com sua presença, Aléxia respondeu: 

— Fiz a mesma pergunta para a minha mãe. Aparentemente, pensam que estarem todos aqui, tornará mais fácil a organização dos últimos preparativos para o casamento. Além disso, as duas famílias estarão se unindo depois de amanhã e eles consideram esta uma oportunidade perfeita para estreitarmos os laços. 

O desconforto era perceptível na voz e não fez qualquer menção de escondê-lo. 

— Isso é tão “seriado americano” — Nicole comentou, rindo para o seu reflexo. Podia sentir os olhos de Aléxia sobre si, estampando um misto de confusão e irritação por estarem vivendo aquele estranho momento. 

Respirou fundo, forçando-se a não curvar os ombros. Vivian estava com a razão. Era hora de aquilo acabar, era o momento de libertar suas verdades. Talvez nunca tivesse outra oportunidade como aquela e, já que agora era “namorada” de Aléxia, iria se divertir um pouco antes dela odiá-la muito mais. 

As duas amigas acompanharam seu sorriso. Voltou-se para elas com um olhar provocante. Usava uma camiseta branca e um short preto, mas apesar da simplicidade, parecia preparada para uma festa, afinal, sua beleza era gritante até quando procurava não ressaltá-la. 

— Muito bem, amorzinho, hora do show! — Anunciou. 

Aléxia engoliu em seco, sentindo um friozinho na barriga e uma vontade enorme de estapeá-la, enquanto Vivian caía na gargalhada. 

*** 

Lis estava sentada na cabeceira da mesa, entre Alberto e o irmão dela, Gil. Parecia distraída, girando o garfo sobre a toalha impecavelmente branca, uma mão no queixo. Aléxia demorou-se a fitá-la atrás de uma das janelas da sala. Vivian soltou uma piadinha qualquer, empurrando-a com o ombro, piscou e saiu com Mateus à tiracolo. 

Mais um minuto se passou, até que tivesse coragem de se juntar a eles. Sentiu o calor do olhar da ex, assim que cruzou a porta e colocou os pés na grama. Ela já não parecia distraída; ria e conversava alegremente, mas não tirava os olhos de Aléxia. Esta, por sua vez, não tirava os seus dela. 

Sustentou o olhar, enquanto a intensidade dos seus batimentos cardíacos aumentava ao ponto de sentir alguma dificuldade para respirar. Quanto mais a olhava, mais rápido seu coração batia e pior se sentia. Pensou em dar meia volta e retornar para o quarto com a desculpa de que não estava se sentindo bem, o que não deixava de ser verdade. Contudo, seu orgulho rugiu dentro do peito; um animal ferido, lutando para manter-se de pé. 

Se tinha de ser doloroso, e se era seu destino passar por essa dor, que assim fosse. 

Deu um passo em direção à mesa, mas parou quando sentiu os dedos longos e macios de Nicole se encaixando nos seus, delicadamente. Um arrepio percorreu sua espinha, quando ela se aproximou por trás e sussurrou em seu ouvido: 

— Estou morrendo de fome, “amor”. 

Não precisava vê-la para saber que um sorriso lhe tomava a face, cheio de provocação. 

Por débeis instantes, tinha esquecido que ela estava ao seu lado quando saíram da casa. Sua voz lhe soou rouca, doce e aveludada e penetrou seus ouvidos, mergulhando em cada centímetro do seu corpo, carregando uma profusão de sentimentos confusos. 

— Estou faminta — Nicole tornou a falar e encostou o corpo no dela, divertindo-se ao notar os pelos eriçados na nuca da ex-colega. 

Com certa dificuldade de lembrar a quem pertencia àquela voz, Aléxia se voltou para ela, partindo a linha invisível que unia seu olhar ao de Lis. Então, ocupou a mente com a raiva que sentia de Nicole pelo modo como a provocava sempre que a chamava de “amor”. 

— Você é tão irritante! — Falou, tentando fingir um sorriso; ciente de que eram objeto de observação da ex-namorada. Fez menção de ir em direção à mesa em que Vivian e Mateus já estavam sentados, mas Nicole não se moveu. Em vez disso, ela a puxou para si. 

De longe, parecia a brincadeira inocente de duas namoradas, já que Nicole não desmanchava o sorriso. Vivian admirou a cena com Mateus, tenso, apertando sua mão. 

— Espero que elas não se matem com essa história — ele sussurrou. 

Aléxia tinha passado uma hora inteira, no jantar na casa de Vivian, durante a semana, falando o quanto Nicole infernizou sua vida na faculdade. Ele ouviu tudo com descrença e não teve coragem de perguntar a amiga sobre isso. Contudo, não era idiota. Ele via vergonha estampada na face da amiga sempre que o assunto se voltava para Aléxia. 

Nessas horas, ficava ainda mais difícil de acreditar que era a garota com a qual cresceu. 

Aceitou um copo de cerveja que alguém lhe ofereceu, tomou um gole longo e voltou a fitar as duas. 

Nicole enlaçou a cintura de Aléxia, colando seus corpos. Estavam tão próximas que seus hálitos se misturavam. A loira reprimiu o arrepio que lhe subia pela coluna e apertou-se um pouco mais a ela. Fitava-a nos olhos, um dos cantos da boca arqueado com jeito de malícia. 

— O que está fazendo? — A ex-colega exigiu saber, surpresa demais para esboçar qualquer outra reação. 

Nicole riu gostosamente, controlando a vontade de afastar-se e fugir para longe. Aléxia não imaginava, nunca imaginou o quão poderosa era. Talvez por sua inocência, talvez por seu desejo de se manter longe de quem lhe feria ou porque Nicole sempre soube esconder muito bem o que sentia debaixo de camadas e mais camadas de ódio, desprezo e insultos. 

Ela atirou a cabeça para trás, os cabelos se rebelando contra a vontade do vento. Faria aquela farsa valer a pena; contaria verdades em vez de mentiras e realizaria alguns de seus sonhos, cativando o ódio da mulher que amava há quase dez anos. 

Tocou a face da “namorada” com as costas da mão; uma carícia singela. 

— Estou sendo aquilo que pediu: sua namorada. — E o que não daria para que aquilo fosse verdade? Para que não tivesse tido medo de encarar quem era de verdade? 

— O quê?! 

A malícia cresceu em sua face. 

— Esperava mesmo fingir me namorar sem termos qualquer contato físico? 

A pergunta surpreendeu Aléxia e depois de uma rápida avaliação, admitiu para si que realmente esperava que o contato físico com ela se limitasse às mãos dadas. Seu estômago se revirou, imaginando o que aquelas palavras significavam. Ela não faria isso e, com certeza, Nicole também não. Mesmo assim, algo naquele olhar a assustava. Sentiu-se uma presa indefesa, diante de uma leoa. 

— Eu… — Respirar ficou difícil por alguns instantes em que percebeu o calor do corpo dela junto ao seu. Limpou a garganta e tentou continuar a resposta, mas um dedo de Nicole pousou em seus lábios, enquanto ela a olhava com doçura.  

Aléxia engoliu em seco, novamente. Aquele olhar, aquele sorriso, aquela não era a Nicole que conhecia. 

— Não precisa se preocupar, só vamos fazer parecer que é de verdade — a loira afirmou, fingindo ignorar o suspiro de alívio que deixou escapar. 

Aléxia limpou garganta. Suas mãos estavam trêmulas e as pousou nos quadris dela, certa de que pareceria estranho, para qualquer um, manter-se tão encolhida nos braços da “namorada”. Obrigou-se a sorrir, furiosa com a facilidade com que Nicole o fazia naquele momento. 

— Certo, mas acho que eles já pensam que é de verdade. 

Nicole riu novamente e curvou-se em direção ao seu rosto. Aléxia prendeu a respiração, mas o que imaginou não aconteceu, então afrouxou as mãos no quadril dela, que tinha apertado, com receio do que poderia fazer, e assustada com a ideia de que alguém que sempre lhe declarou ódio, poderia vir a beijá-la. 

A moça riu, com um balançar de ombros quase imperceptível. 

— Acho que a sua “noivinha” precisa de mais do que palavras. Ela e metade daquela mesa não tira os olhos de nós, desde que cruzamos a porta. 

Sussurrava as palavras em seu ouvido e Aléxia inclinou a cabeça para o lado, fingindo outro sorriso, como se ela estivesse contando algo engraçado ou fizesse uma provocação íntima. 

Bastou uma olhada rápida, para confirmar suas palavras. Lis e alguns de seus parentes, incluindo Beto e seus pais, não tiravam os olhos delas. Não percebeu antes, pois estava cega para qualquer outra coisa que não fosse Lis. 

Seus olhos pousaram em Vivian, rapidamente, e fingiu não ver o brinde discreto que fez com um copo d’água, um uma expressão irônica e maliciosa na face. Quando aquela história acabasse, teria uma conversa muito séria com ela; trincou os dentes. 

Nicole se afastou para olhá-la, mas não a soltou. 

— Você entende agora? 

Aléxia balançou a cabeça para cima e para baixo; devagar, como se fosse uma criança a receber uma importante lição. 

— É sua mentira. Depende de você fazê-la parecer real — Nicole continuou, assustadoramente séria. Então, voltou a sorrir. O olhar adquirindo um brilho apaixonado. 

Parecia tão real, que Aléxia pegou-se pensando que, se uma mulher a fitasse assim em algum momento da vida, não perderia tempo discutindo com seu coração se ainda amava Lis ou não; se daria certo ou não; mergulharia de cabeça na relação. 

Ela interpretava, perfeitamente, seu papel de namorada apaixonada; agora, dependia dela, Aléxia, fazer dar certo. Olhou, mais uma vez, para a mesa e encontrou o olhar furioso de Lis, que o disfarçou com alguns goles da bebida em seu copo. 

Todas as palavras que ela lhe atirou na face, com um sorriso debochado, lhe voltaram. A raiva revirou seu estômago e, finalmente, sorriu para Nicole tentando parecer apaixonada. 

— Eu entendo, “amor”. 

O corpo de Nicole enrijeceu, mas logo relaxou quando se curvou e sapecou um beijo em sua bochecha com um sorriso, tão largo, que ninguém jamais imaginaria quanto ódio as separava. 

— Ótimo! Então, vamos lá! 

Aléxia precisou de um segundo para se recuperar do susto e do prazer que foi sentir a maciez dos lábios dela em sua pele. Com um suspiro irritado, afastou a sensação e a seguiu; a mão encaixada na dela com perfeição. Era uma mão macia e quente, de contato agradável; e havia o perfume que ficou impregnado em suas roupas quando ela a abraçou, fazendo com que se sentisse envolvida por sua presença completamente. 

Enquanto se aproximavam da mesa, percebeu o quanto Nicole parecia natural e à vontade ao seu lado, como se nunca tivessem trocado palavras agressivas e maldosas. Se alguém tivesse lhe dito que estariam vivendo àquela situação algum dia, o teria chamado de louco e, naquele momento, imaginou compreender os motivos da gargalhada, quase insana, de Nicole, mais cedo. 

Não seria capaz de enfrentar aquele casamento sozinha, embora fingir ter uma namorada, fosse o jeito errado de lidar com a situação. Mas assim seria mais fácil evitar ficar às sós com Lis e deixar que ela a pisasse e fizesse troça de seus sentimentos. 

Contudo, não conseguiria evitar morrer um pouco por dentro a cada vez que estivesse em sua presença e lembrasse de suas palavras, tanto as que dissera uma semana antes, quanto as de cinco anos atrás, quando ela pôs fim ao namoro de dois anos, ali mesmo, naquela casa. 

Cada passo que dava em direção àquela mesa, era como se correntes imensas a arrastassem para o fundo de um lago escuro. Incrivelmente, se sentiu agradecida pela presença de Nicole. Odiá-la e aos papéis que desempenhavam naquela farsa, lhe forneciam forças para sorrir cada vez mais apaixonada para a sua figura. 

Os pais de Lis, como anfitriões, vieram ao seu encontro. 

Aléxia ganhou um abraço apertado de Seu Mário, que sempre a tratou como uma filha. O homem quase a esmagou em seus braços e a manteve ali pelo máximo de tempo possível, falando sobre o quanto era maravilhoso revê-la, após tantos anos. Já sua esposa, Inês, foi mais contida, apertou a mão dela, sorriu amarelo e foi só. 

A atitude não surpreendeu Aléxia, pois ela nunca gostou muito daquela “menina com um jeitinho esquisito”. Assim a ouviu falar, certa vez, para a filha. A razão de Dona Inês para isso era a mais óbvia possível. A mulher sempre soube que Aléxia tinha uma queda pela filha dela. Felizmente, nunca descobriu que a amizade das duas garotas era bem mais profunda do que parecia. 

Assim como o seu pai, Mário lhe dirigiu um olhar de aprovação, após cumprimentar Nicole. Por sua vez, a moça voltou a se mostrar a namorada perfeita, esbanjando toda sua simpatia e beleza e Aléxia acabou sorrindo, orgulhosa, para ele. 

Lis veio, em seguida. Com passos suaves e um gingado provocante nos quadris. 

Aléxia evitou seu olhar, para não se trair. Ela a abraçou rápido e deixou um sorriso fingido na face por alguns instantes. Era óbvio que sua presença a desagradava, mas Nicole parecia contrariá-la muito mais. Lis fingiu não a reconhecer e pediu desculpas, com um risinho amarelo, quando Nicole a recordou que já haviam se visto. 

— Perdão! É que, com os preparativos para o casamento, acabei esquecendo. 

A moça apenas lhe enviou um sorriso de lado, adquirindo um ar presunçoso. Por fim, deu de ombros como se não fosse nada de mais. Contudo, puxou Aléxia para mais perto, envolvendo sua cintura com possessividade. Gesto que a moça interpretou como uma maneira de deixar ainda mais claro seu papel de namorada. 

— Pensei que viria desacompanhada — Lis comentou, parecendo inocente, enquanto fitava Aléxia. Expressava, com palavras, o que seus olhos diziam: Nicole não era bem-vinda. 

— Filha! — Repreendeu o pai, e ela se empertigou com um sorriso sem graça. 

— Desculpem, não foi minha intenção… — Mas era, e estava tão claro quanto um dia ensolarado. 

Um desconforto quase palpável caiu entre o grupo e Aléxia começou a formular uma resposta com um gemidinho, mas Nicole se adiantou e falou em seu lugar. 

— Ela não vai a lugar algum sem mim! — Exibiu o sorriso provocador que a ex-colega conhecia muito bem. Pela primeira vez, ela gostou dele quando notou o quanto Lis se mostrou contrariada. A cunhada se esforçou para retribuir aquele sorriso, mas tudo que conseguiu exibir foi uma leve careta. 

Ah, por que era tão difícil olhá-la?! Por que não a mandava para o inferno de uma vez? 

— Mais uma vez, peço desculpas — a cunhada insistiu. — Não quis ofendê-las. Realmente, não julguei que vocês tivessem uma relação tão séria. 

— Um erro de interpretação — Nicole alfinetou, tentando manter as feições suaves e desinteressadas. 

Como Aléxia se permitiu cair de amores por aquela mulher? Era bonita, era verdade. Mas tudo em seus gestos e palavras, lhe soava falso e isso lhe pareceu irônico, considerando o papel que desempenhava naquele momento. 

A tentativa dela de humilhar e desestabilizar Aléxia, era mais que óbvia. Mas Nicole não permitiria que conseguisse. Ela já estivera no lugar de Lis, já tinha desempenhado o papel de vilã dona de palavras sutis, mas carregadas de veneno. Nada que dissesse poderia atingi-la e, com certeza, não deixaria que tocasse Aléxia. 

Se iria interpretar o papel de namorada dela, o faria com maestria. 

Notou o semblante carregado da “namorada” e a puxou para mais perto, tão perto que chegou a ser doloroso, mas Aléxia agarrou-se com força à sua cintura, como se fosse uma tábua de salvação. 

— Sim, claro! — Exibiu os dentes, mas não sorria de fato. — Me desculpem, novamente. Mesmo assim, não me recordo do Beto ter comentado que você estava namorando — Lis se voltou novamente para Aléxia. 

Ela tentou responder, mas suas palavras se perderam antes mesmo de ganharem som. Não sabia exatamente o que dizer e, novamente, Nicole a ajudou. 

— Nosso namoro ainda é um pouco recente — explicou ela, com um leve dar de ombros e um sorriso capaz de derreter uma geleira. 

Uma das sobrancelhas de Lis se arqueou junto com os cantos dos seus lábios e os joelhos de Aléxia tremeram sob seu peso. Se a ex soubesse como ficava irritantemente atraente quando fazia aquilo, repetiria o gesto à cada instante, apenas para atormentá-la. A moça estava certa disso e obrigou-se a dedicar um sorriso apaixonado para Nicole, que não hesitou em retribuí-lo. 

— Sério? E há quanto tempo estão juntas? 

A mentira surgiu nos lábios da loira, rápida como um raio. Sequer pensara muito para lhe dar voz e isso a fez parecer sincera. 

— Dois meses. Mas o nosso lance é bem mais antigo não é, amor? 

A garganta de Aléxia estava seca e uma gota de suor escorreu por sua nuca. Estava se sentindo estúpida diante daquela conversa; ainda não tinha conseguido formular uma frase completa e acreditava que exibia uma expressão abobalhada. Felizmente, estava um pouco escuro ali e, se alguém percebeu, esperava que tivesse interpretado como paixão pela moça loira a quem se agarrava. 

— Sim — e para dar ênfase ao que disse, apertou-se à Nicole. Como a moça era mais alta, recostou a cabeça no ombro dela, esforçando-se para não a empurrar para longe quando esta lhe deu um beijinho no alto na testa. 

Não deixava de ser verdade, “seu lance” com Nicole começou ainda na faculdade. O sorriso que ela lhe dirigiu pareceu diferente, um pouco triste, mas não se prendeu muito tempo nessa impressão. Sorriu de volta, assumindo o controle de si mesma.  

— Mas agora que estamos juntas, nem dá para medir a felicidade — afirmou. 

Lis as observou em silêncio por alguns instantes e Aléxia teve a impressão de que pretendia falar algo, mas a chegada de Alberto a impediu. 

Seu corpo enrijeceu ao vê-los juntos e, pela forma que Nicole aumentou a pressão da mão em sua cintura, soube que ela havia percebido. 

Gil estava com ele, as cumprimentou rapidamente e se afastou. Ele era tão diferente da irmã quanto Aléxia se lembrava. Tinha um olhar castanho agressivo, ao contrário do castanho e meigo dela. Era alto e corpulento, enquanto a irmã era baixinha e franzina. Tinha a pele morena e queimada de sol, enquanto Lis era dona de uma pele pálida salpicada por algumas sardas. A única coisa que tinham semelhante era o cabelo negro, volumoso e cacheado. 

Assim como a mãe, Gil também não era um grande fã de Aléxia, principalmente, depois que esta lhe deu um fora após uma tentativa frustrada de beijá-la em uma festa. Desde então, o rapaz procurava ficar em sua presença o menor tempo possível. Mas a verdade é que ele era um homem preconceituoso, que não suportava a ideia de que uma mulher pudesse preferir a companhia de outra a de um homem. 

Quando, finalmente, sentaram à mesa, Aléxia suspirou aliviada e agradecida por seus lugares serem do lado oposto ao que seu irmão e Lis estavam e se permitiu observar os outros ocupantes. Vivian e Mateus estavam sentados no meio da mesa improvisada e ela capitou um olhar curioso da amiga junto com uma frase não pronunciada: “O que foi isso? ”. Claramente, fazia referência à conversa com Lis, que pôde ser ouvida por todos, já que a música tocava em volume baixo e estavam muito próximas à mesa. 

Aléxia deu um sorriso vacilante e balançou os ombros para a amiga, que voltou a se concentrar na sua bebida, agora, uma taça de vinho, com uma das sobrancelhas arqueadas. 

A maior parte dos presentes eram familiares da noiva, então foi fácil para Aléxia ficar à parte da conversa geral. Entretanto, Nicole não pensava o mesmo e participou ativamente das discussões. Estava encantando a todos e isso não a surpreendia, afinal a “namorada” sempre foi muito popular na época da faculdade, nunca lhe faltaram amigos e namorados. Até mesmo os professores se encantavam com ela. 

Mas o foco da sua atenção, estava do outro lado da mesa. 

Cada beijo que Lis trocava com Alberto era uma tortura e acabou se deixando afundar na cadeira, permitindo que sua mente vagasse pelos momentos íntimos e doces que partilharam, pelas juras eternas de amor deitadas à beira do lago em noites quentes, como aquela. Foi a melhor época da sua vida e, inexplicavelmente, Lis destruiu tudo iniciando um namoro com seu irmão. 

Estava tão distraída em seu pequeno mundo de lembranças que só se deu conta que tinham lhe feito uma pergunta na terceira vez em que pronunciaram seu nome. 

— Aléxia! — Uma mão estalou os dedos à sua frente e ela focalizou o rosto bonito e bronzeado de Victor, primo de Lis, que estava sentado à sua direita. 

— Sim? — Retornou ao presente, limpando a garganta. 

Algumas pessoas riram, incluindo seus pais. 

— O que foi? — Perguntou, confusa. 

— Está muito distraída — sua mãe observou. Os olhos dela, azuis como os seus, brilharam divertidos, saltando da sua figura para a de Nicole. 

— Apenas cansada da viagem — mentiu e perguntou, novamente, o que havia acontecido para todos os olhares estarem sobre si. 

A “namorada” deixou um sorriso sem graça escapar. 

— Eles querem saber como se conheceram — Beto respondeu. 

— Hã? — Piscou, sem entender. 

Ele riu e apontou em sua direção, usando os dedos indicador e médio. Seu olhar cruzou com o de Nicole e a ficha caiu.  

— Na faculdade — respondeu, secamente, voltando sua atenção para a salada em seu prato. 

— Só isso? — Lis insistiu. 

— É — deu de ombros, torcendo para que as perguntas parassem por aí. 

Mas Lis não tinha se dado por satisfeita. Não se daria, Aléxia podia ver a curiosidade que a presença de Nicole lhe despertou, além da irritação disfarçada. 

— Já faz um bom tempo. Por que nunca soubemos nada de você? 

Lis a conhecia bem demais para saber que não arrancaria mais nada dela, então dirigiu sua pergunta a Nicole que, uma vez mais, exibiu uma perfeita fileira de dentes em um sorriso simpático. A moça pousou, carinhosa e calculadamente, a mão sobre a de Aléxia, que repousava junto ao prato. 

Ocorreu a Aléxia, que Lis poderia estar tentando descobrir se havia sido traída, já que elas iniciaram seu romance quando a moça cursava o penúltimo semestre da faculdade. 

— Como disse antes, nosso lance é bem antigo. Não nos víamos desde um pouco antes da formatura. Só recentemente nos reencontramos e nos demos uma chance — explicou Nicole. Era a perfeita encarnação da naturalidade. Mas, no fundo, se revirava de raiva daquela mulher e do modo como fitava Aléxia, hora com desprezo e maldade, hora com um “que” de desejo. Ela podia fingir o quanto quisesse, mas ainda queria Aléxia. 

Nicole se reconhecia nela, em seus gestos, em seus olhos. Lis estava fadada a ser infeliz e a machucar as pessoas que a amavam, como ela tinha sido. 

— Se deram “uma” chance e não “outra” chance — Lis observou. 

Nicole tomou um gole d’água. Haviam tentado lhe oferecer vinho, cerveja, vodka entre outras bebidas, mas ela recusou, gentilmente, a todas. Disse que preferia um bom copo d’água em uma noite tão quente. 

— É. 

Lis, como um cão a roer um osso, não parecia disposta a encerrar o assunto sem obter as respostas que queria. Passeando o olhar pela mesa, Aléxia percebeu que Vivian tinha segurado a respiração, enquanto fingia cortar a carne em seu prato; todos os demais, incluindo Mateus, olhavam para Nicole. 

— E por que não se deram essa chance antes? 

Nicole estava se divertindo com aquele teatro e Aléxia lembrou do quanto ela gostava de provocar. Esse era um dos seus piores defeitos, pois não sabia quando parar. Mas ela parecia irritar Lis e isso fez com que desejasse ver um pouco mais da antiga Nicole. 

Como esperado, ela não se deu ao trabalho de mudar de assunto e continuou a responder as perguntas com naturalidade. 

— Era complicado — tomou outro gole da sua água, com o indício de um sorriso no canto da sua boca. “Que mulher irritante”, pensava. 

— Não vejo como. Se duas pessoas se gostam, procuram ficar juntas, não é mesmo?  

A loira deixou escapar um risinho, que pareceu encabulado, e perguntou dando de ombros: 

— Quer mesmo saber a verdade? 

A resposta foi veloz: 

— Sim. 

Aléxia prendeu a respiração. “Estava demorando. Este é o momento em que ela revela a farsa e, mais uma vez, me humilha diante das pessoas”, pensou triste e furiosa ao mesmo tempo. 

Nicole aumentou a pressão sobre a sua mão, quando começou a falar pausadamente. Tinha decidido dizer verdade em vez de mentiras e cada palavra que pronunciou, naquele momento, embora fossem mentiras para Aléxia, era a sua verdade. 

— A verdade é que, naquela época, Aléxia gostava de outra pessoa — fitou Lis, com um sorriso malicioso, deixando claro que sabia se tratar dela e alargou o sorriso ao ver o desconforto na face da outra — e eu tinha um namorado. Além disso, nosso relacionamento começou com o pé esquerdo. Para ser mais exata, nos odiávamos! 

Lentamente, junto com as palavras dela, Aléxia deixou o ar escapar de seus pulmões amaldiçoando Nicole por lhe dar aquele susto. 

— Como é possível? — Alberto indagou, cada vez mais interessado na conversa. Seu tom deixava claro que a ideia de que alguém pudesse odiar sua irmã era inconcebível. 

Aléxia pigarreou um pouco, tentando chamar a atenção para mudar de assunto, mas ninguém lhe dedicou sequer um olhar. Seu irmão tornou a repetir a pergunta e a “namorada” explicou: 

— Digamos que eu não era muito legal com sua irmã naquela época. Eu tinha problemas em reconhecer que me sentia atraída por mulheres, por isso agia de forma preconceituosa com ela. — Respirou fundo. — Me arrependo muito disso. 

Aléxia a mirou, em silêncio. Seu olhar era tão sincero, que quase acreditou em suas palavras. “Caramba, que atriz! ”, pensou. Era perfeita com improvisos e estava lidando, muito bem, com aquela enxurrada de perguntas. Se não a conhecesse, teria acreditado em cada palavra. 

— E o que aconteceu? — Alberto insistiu. 

Nicole sorriu, tristemente. “Merecia um Oscar”, Aléxia concluiu e fez uma anotação mental de um dia lhe dar uma réplica da famosa estatueta. Talvez um pouco de Óleo de Peroba para passar naquela cara de pau. 

— O principal problema era, quanto mais gostava de Aléxia, mais vontade de magoá-la eu tinha. E foram muitas as ocasiões em que fiz isso e das quais não me sinto nenhum um pouco orgulhosa. 

Ela diminuiu a pressão na mão que segurava, a ergueu até seus lábios e a beijou. Mesmo tudo não passando de encenação, o coração de Aléxia acelerou um pouco e deixou um sorriso encabulado escapar. 

Nicole lhe sorriu de volta e continuou: 

— Há alguns meses, nos reencontramos através de um amigo em comum — indicou Mateus com a cabeça e piscou para ele. — Lhe pedi perdão e, não foi fácil, mas iniciamos uma amizade sincera. 

Ela riu, como se achasse engraçado o que dizia, mas, na verdade, encontrava-se em frangalhos por colocar suas verdades em palavras diante de Aléxia que nem imaginava o quão sinceras eram. 

— Sua irmã é incrível! No lugar dela, provavelmente, não teria me perdoado. — Sentiu um sabor amargo ao dizer isso. 

Beto sorriu, concordando. Aléxia percebeu que quase todos sorriam da mesma forma. Mal podia acreditar que eles estavam caindo naquela historinha. 

— Enfim, quando me senti segura, abri meu coração para ela que, para minha felicidade, me deu uma chance. E estamos aqui, cada segundo mais feliz que o anterior. 

Seus olhos estavam fixos nos de Aléxia quando se aproximou, rapidamente, e pousou seus lábios nos dela. Era apenas um roçar de lábios. Um segundo de surpresa e doçura, que deixou Aléxia completamente desnorteada e, ao mesmo tempo, furiosa. 

Nicole não tinha o direito de a beijar, não fazia parte do acordo, mas o “uou” coletivo veio em seguida, acompanhado de alguns aplausos e ela acabou esquecendo a raiva, momentaneamente, trocando o sentimento por vergonha. 

Então, percebeu o olhar de Lis sobre elas e estava cheio de fúria. 



Notas:

Bom carnaval pra vocês!

Se divirtam sem moderação, mas lembrem-se de se cuidarem.

Beijos e até o próximo capítulo!




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