ALÉM DAS PALAVRAS

7. As desventuras de um não-beijo

— Você está querendo que ela te perdoe ou que te assassine? 

Nicole soltou um risinho, voltando a prestar atenção ao copo vazio entre as mãos. Depois da sua confissão, a “namorada” aguardou alguns minutos, então pediu licença e saiu da mesa discretamente. Um minuto depois, Vivian ocupou o lugar dela, aproveitando que todos se distraíam em conversas paralelas. 

— Você me mandou aproveitar a oportunidade. É o que estou fazendo. 

— Falei para lhe contar a verdade e não para fazê-la te odiar mais! 

A loira curvou-se para ouvir melhor o que ela dizia. 

— Você a beijou e ela saiu daqui em parafuso! 

Ela se empertigou, enviando um olhar afetado para a namorada do amigo. Com um sorriso, agradeceu a Victor por encher o seu copo com mais água e sussurrou: 

— Eu não a beijei… ainda! — Sorriu, maliciosa. 

Vivian deixou um gemidinho escapar. 

— O que você pretende, Nicole? 

Ela passeou o olhar pelos ocupantes da mesa e encontrou Mateus. O amigo a fitava, curioso, enquanto conversava com um rapazinho franzino com cara de quem tinha acabado de sair da puberdade. Continuou sua inspeção e descobriu que era objeto de observação da “sogra”, que lhe sorriu rapidamente e voltou a dedicar-se ao prato diante de si. Por fim, encontrou o olhar perspicaz de Lis. 

A noiva do seu “cunhado” não fez menção de desviar o olhar do seu e continuou a encará-la, como se a desafiasse. Ela segurava a mão do futuro marido, fazendo um carinho singelo. O rapaz estava distraído em uma conversa animada com o sogro. Nicole sorriu para ela; um sorriso que Aléxia odiava, mas que teria apreciado se estivesse ali, naquele momento, e visse o quanto afetou Lis. 

Ah, aquela mulher não fazia ideia do quanto Nicole podia lê-la. Do quanto a conhecia sem que nunca tivessem trocado uma palavra antes daquele encontro na casa de Aléxia. Alguns minutos em sua companhia, bebendo das mentiras e provocações que se derramavam de seus lábios, foram suficientes para que a enxergasse como era. 

Voltou-se para Vivian, ainda sorrindo. Desta vez, suavemente. 

— Pretendo fazer o que não fui capaz, quando estudamos juntas. Vou conquistar Aléxia! — Sorriu mais largo, recordando a sua história. — Bom, pelo menos, desta vez, vou tentar! 

Vivian não conteve uma expressão de espanto. Quando planejou aquela viagem e todo o resto antes disso, suas intensões eram a de fazer a amiga tomar conhecimento dos motivos que levaram Nicole a maltratá-la tanto na faculdade. Queria que ela se livrasse daquela dor, a qual a marcou tanto quanto o fim do relacionamento com Lis. Desejava que Nicole encontrasse o perdão que buscava há tantos anos e seguisse seu caminho em paz. Mas jamais imaginou que ela ainda amasse Aléxia, já que só tinha lhe dito que, na época em que estudaram juntas, estava apaixonada por ela, mas não conseguia assumir seus sentimentos por uma garota e, por isso, deixou-se dominar por um preconceito gritante e fazia de tudo para humilhá-la e magoá-la. 

— Você enlouqueceu?! — Perguntou, o mais baixo possível, e recebeu outro sorriso como resposta. — Ela pode chegar a te perdoar; vocês podem, talvez, serem amigas. Mas não há a menor chance de que a mentira que estão vivendo agora se torne realidade. 

Eram palavras duras carregadas de verdade, mas Nicole não queria lhe dar ouvidos. Sim, suas intensões eram a de, apenas, conseguir o perdão da mulher que tanto magoou; mas, quando tiveram aquela conversa sobre fazer a mentira dela parecer real e a puxou para junto de si; quando sentiu seu calor, perfume e maciez da pele dela quando lhe deu um beijo no rosto, seu coração rugiu dentro do peito, implorando por uma chance de amá-la. 

Então, iria tentar conquistá-la, embora soubesse que, talvez, só fizesse com que a odiasse ainda mais, como Vivian afirmou. Não importava. Ela lhe deu aquela chance, então iria aproveitá-la. 

Seria a namorada de Aléxia, seria sua mentira e lutaria para se tornar sua verdade. 

*** 

Aléxia enxugou o rosto. Lavou a face e os lábios algumas vezes, irritada por ainda sentir o calor de Nicole neles. 

Como a odiava! 

Sua vontade era voar no pescoço dela; encher aquele rosto bonito de arranhões e tapas, cuspir todos os insultos em que era capaz de pensar e nunca mais voltar a vê-la. Contudo, precisava dela e do seu “amor” por alguns dias. Estava decidido, assim que o casamento se realizasse, pegaria suas coisas e retornaria para a capital com Vivian e Mateus. Não se daria ao trabalho de fingir, nem mais um minuto, que morria de amores por Nicole. 

— Então, você caiu de amores por uma inimiga. 

A voz de Liz a alcançou, quando chegou ao pé da escada. Ela estava recostada à porta que, pelo que recordava, dava para um escritório e ficava em frente à escada. 

Respirou fundo. Seu humor estava péssimo depois do showzinho de Nicole e nem conseguia se sentir desnorteada na presença da ex, como aconteceu uma semana antes e mais cedo, no jantar. 

— Inimigos se tornam aliados e amantes — sorriu, com escárnio. Mal pôde acreditar que o conseguiu fazer, embora começasse a sentir a velha sensação de desalento se aproximar e tratou de ir em direção à porta que levava para fora da residência. 

Mas Lis agarrou seu braço. 

— Por que veio, Alê? 

O contato da pele dela na sua era um tormento e lhe tomou o ar por alguns segundos. Aqueles olhos que tanto amou lhe pareceram tristes por um instante, mas logo tornaram-se frios e debochados, como o sorriso nos lábios dela. 

— Por que veio se martirizar? 

Puxou uma grande quantidade de ar para os pulmões e liberou rapidamente, deixando a raiva lhe tomar as palavras. 

— Martirizar? Não sei do que está falando. 

A outra irritou-se. 

 — Ah, por favor, não venha negar outra vez! Está estampado, na sua cara, que ainda gosta de mim. Pode exibir aquela loira sem sal o quanto quiser, mas seus olhos te traem. — Apertou os dedos em seu braço um pouco mais. 

Apesar da dor que as palavras dela e o contato firme lhe causavam, Aléxia sentiu um pouco de satisfação ao vê-la perder o controle pela presença de Nicole. Talvez, não fosse de todo mal que a moça se mostrasse tão “carinhosa”. Podia fazer aquele “sacrifício”, se isso tirasse o sorriso debochado do rosto de Lis. 

— Meus olhos?! — Riu. — A única coisa que meus olhos podem demonstrar, é o quanto “amo” àquela mulher. Quanto a ainda gostar de você, está se dando muita importância. Por favor, me deixa em paz! 

Desvencilhou-se da mão dela, com alívio. Lis ainda tentou impedi-la de se afastar, mas já alcançava a porta com passadas largas e rápidas, estampando um sorriso enorme ao encontrar Nicole no meio do caminho até a mesa. Não lhe deu tempo para falar e a puxou de volta para ela. 

*** 

Pouco tempo após o jantar, Nicole pediu licença e se retirou com a desculpa de que estava sentindo um pouco de dor de cabeça. Aléxia fez menção de acompanhá-la, mas esta a dispensou dizendo que aproveitasse a companhia de sua família. 

— Ela parece incrível — Alberto comentou, lhe entregando uma cerveja, tão gelada que seus dedos doeram ao envolver a garrafa. 

Estava cansada demais para falar e pensar em Nicole, mas foi justamente para isso que se afastou da fogueira. Precisava remoer uma pouco da raiva que sentia dela, embora tivesse ficado satisfeita com o resultado que causou em Lis. 

— Você nem imagina o quanto! — Tomou um farto gole, com um gemidinho de prazer ao sentir o líquido gelado deslizando pela garganta. 

O irmão a mirou, curioso. Depois, deixou um sorriso bonachão tomar a face, enquanto dizia: 

— Calma! Deixa um pouco para saborear! 

Ela encolheu os ombros e tomou mais um gole, antes de responder: 

— Estava com sede. Obrigada! 

— De nada. Mas isso não é água, então vai com calma. — Balançou a cabeça, ainda sorrindo. 

Ela riu, concordando com uma piscadela marota e sentou-se sobre uma pedra grande, ali perto. Ajeitou-se sobre a rocha, deixando espaço para o irmão. Seus ombros se tocavam, compartilhando o calor de seus corpos. 

Há quanto tempo não sentava ao lado dele com nada mais que um sorriso nos lábios e uma conversa muda, através de olhares? Conteve um suspiro saudoso. Lis lhe tomou aquilo também. Destruiu seu coração e momentos como aquele ao lado dele e da família. 

Alberto brincou com a garrafa entre as mãos. Quando falou, seu desconforto era evidente. 

— Então…  — Hesitou por alguns segundos. — A história que ela contou é verdade? 

Aléxia mordiscou a parte interna da bochecha. Estava surpresa por ele ter demorado tanto para perguntar. Aliás, estava surpresa por só ele ter lhe questionado a respeito. Contudo, sabia que a mãe logo a poria contra a parede. Dona Alexandra não era o tipo de pessoa que se contentava com historinhas tristes com finais felizes, ainda mais, se sua filha as protagonizava.  

Sabia que toda a simpatia que Nicole cativou quando chegaram, havia evaporado e a “sogra” logo bancaria a “mamãe ursa” saindo em defesa do seu filhote. 

Passou a mão nos cabelos bagunçados pelo vento e deixou um sorriso sem graça escapar para a noite. 

— Cada palavra! — Odiou-se por mentir para ele. 

Beto fitou o lago e as estrelas por um longo tempo. Tempo que Aléxia aproveitou para se perder em algumas divagações. 

— Caramba, que coisa! 

Ele falou baixo, mas a quebra do silêncio lhe causou um leve sobressalto. Disfarçou o incômodo com a pena no olhar dele, entornando o resto da sua cerveja. 

— Não é?! — Respondeu sem forças. Apenas porque notou que ele aguardava alguma manifestação de sua parte. 

Ela catou uma pedra no chão e atirou na lagoa. O irmão a imitou, fazendo com que sua pedra tocasse a superfície da água três vezes antes de afundar. 

— Não imaginei que você passasse por esse tipo de coisa na faculdade — ele comentou triste e Aléxia sentiu um aperto no peito. — Quero dizer… A gente vê essas coisas na TV e não imagina que possa acontecer conosco ou alguém que conhecemos. — Olhou para os lados, um pouco envergonhado. — Ah, não sei bem o que te dizer! Você sempre foi “você” pra mim. Quem você beija, homem ou mulher, nunca foi problema para mim, então me desculpe se pareço surpreso e até um pouco zangado com a ideia de que você namora alguém que te machucou dessa forma. 

Ela atirou outra pedrinha na água, forçando-se a não curvar os ombros. O entendia perfeitamente e, embora Nicole tivesse sido muito convincente na sua “mentira”, as verdades que contou pesavam mais. Tinha optado por não contar à sua família o que acontecia, naquela época. Não havia se aberto nem mesmo com Lis. 

Em parte, se acostumou com alguns olhares atravessados, até mesmo de membros de sua própria família, mas não queria que soubessem que os olhares haviam se transformado em outra coisa com Nicole e seus amigos. 

— Era besteira, não valia a pena falar sobre isso. 

— Besteira? — O cinismo delineou os lábios dele. — Pelo modo como ela falou, não era besteira. Não se pede perdão por besteiras. 

Alberto tinha razão, mas não podia voltar atrás na mentira barra verdade que Nicole contou e o observou catar outra pedra e atirar no lago. Mais uma vez, estava sem palavras naquela noite. 

— Como ela mesma admitiu, você é um anjo! Outra, em seu lugar, jamais perdoaria. 

— Às vezes, o passado deve ficar no passado — Mateus falou com um sorriso meio bêbado, segurava uma cerveja, enquanto enlaçava a cintura de Vivian. 

— Desculpem, não queríamos ouvir a conversa de vocês, mas captamos um pouco do assunto, enquanto nos aproximávamos. 

Aléxia sorriu para ela balançando os ombros. 

— Não é nada de que vocês já não saibam — comentou e voltou sua atenção para o lago escuro. 

— Nicole é uma boa mulher, Alberto. Ela cometeu erros e aprendeu com eles — Vivian comentou, fugindo do olhar reprovador da amiga. Era a verdade. Uma pena que Aléxia ainda não tivesse percebido. 

Agarrou-se mais ao namorado. Previa muita confusão com a decisão de Nicole de tentar conquistar Aléxia. Mas, pensando bem, o amor é uma caixinha de surpresas. Nicole magoou a amiga porque não queria admitir que estava apaixonada por ela. Aléxia a odiava e declarava isso para os quatro ventos e quem mais quisesse ouvir, mas não se importou em engolir esse ódio e lhe pedir ajuda. Pegou-se a imaginar se, no fundo, o ódio não poderia vir a tornar-se amor. 

Teve de segurar a vontade de rir com tais pensamentos, mas a verdade era que achava que as duas formavam um belo casal e, se a amiga soubesse perdoar, talvez fosse capaz de encontrar um grande amor. 

Naquele momento, a decisão de Nicole já não lhe desagradava. No entanto, receava o que isso poderia vir a fazer com sua amizade com Aléxia. Liberou o ar, recostando a cabeça no ombro do namorado e ele a abraçou, desvanecendo seus receios. 

— Cara, conheço a Nico desde a infância. Ela tem lá os seus defeitos. E quem não tem? Mas a sua irmã não poderia ter encontrado uma pessoa melhor — sorriu e deu uma piscadela para Aléxia, que quase engasgou com a surpresa de vê-lo a apoiando, já que tinha sido enfático ao dizer que não concordava com aquela farsa. 

Beto deu de ombros, mas sua expressão permaneceu enervada por mais um minuto. Não fitava a irmã, mas ela notou a tensão em seus músculos e o maxilar contraído em sinal de desagrado. Por fim, ele entornou o resto da sua cerveja e atirou outra pedra no lago. 

Era até bom que ele não se apegasse a Nicole, assim, não haveria questionamentos quando o fim do seu “namoro” fosse anunciado, em um futuro próximo. 

— Não pensei que teria tanta gente aqui, esta noite — Vivian comentou, tentando puxar assunto. 

O rapaz a mirou, desfazendo a carranca e abrindo um sorriso largo. Um sorriso muito parecido com o da irmã. 

— É carnaval e, você sabe, aqui é tudo muito parado. Uma noite de sábado, à beira da fogueira, é quase um grande evento — brincou. — Lis e eu, combinamos assim. Escolhemos esta data porque todo mundo estaria de folga e queríamos fazer uma grande festa. Um grande momento para toda a família, para os amigos e para nós. 

Aléxia mordiscou o lábio. Sempre que o ouvia falar sobre Lis, seu coração se comprimia dentro do peito. Ele se voltou para ela, empurrando-a suavemente com o ombro. 

— Se eu fosse você, ia me preparando — aconselhou. 

— Do que está falando? 

— As notícias se espalham rápido e amanhã todas as tias fofoqueiras estarão por aqui, sondando você e a minha cunhada — riu baixinho. 

Ela o fitou, as sobrancelhas arqueadas. 

— Não estou entendendo. Por que iriam nos sondar? 

Ele riu um pouco mais alto e passou o braço sobre os ombros dela. Já se encontrava um pouco ébrio. 

— É sério?! Você não percebeu? 

— Percebi o quê? — Perguntou, cada vez mais confusa. 

Seu olhar cruzou com os do casal de amigos e notou que se encontravam na mesma situação. Beto se empertigou, limpando a garganta e alargando o sorriso, enquanto falava. 

— Bem, todos estarão curiosos, porque Nicole é a primeira namorada que você apresenta a família. 

Ela engoliu em seco. Se permitiu ficar de boca aberta por alguns instantes. Sorriu, incrédula, já balançando a cabeça negativamente. Em poucos segundos, fez uma análise de todas as suas relações e a verdade do que o irmão lhe dizia, finalmente, lhe atingiu. 

Ironicamente, Nicole era a primeira namorada que apresentou a família. 

*** 

Estava um pouco tonta quando entrou no quarto, mas nada que pudesse ser declarado como embriaguez. 

Sentia-se um pouco leve e relaxada, após um fim de noite agradável com o irmão e os amigos. Em parte, isso se deu pelo fato de Lis ter se mantido afastada e longe da sua vista depois daquele episódio junto à escada. 

Mas parte do seu bom humor se esvaiu quando avistou Nicole na cama. 

Ela usava camiseta e calças de pijama e dedicava atenção ao livro que tinha nas mãos. O rosto sério e concentrado estava parcialmente oculto pelo livro e pelos óculos de grau com aros quadrados que usava. 

Por um segundo, pensou que se tratava de outra mulher e que havia entrado no quarto errado, mas logo seus olhares se cruzaram e o sorriso cínico dela surgiu quando baixou o livro. 

Como Aléxia permaneceu a observá-la em silêncio, perguntou: 

— Que foi? 

Enquanto se dirigia para o quarto, decidiu que não estava a fim de brigar com Nicole àquela noite, já havia tido tensão demais por um dia. Permaneceu calada e deixou o olhar vagar pela cama, tentando apagar de sua mente o pensamento de que, vestida daquele jeito e com óculos de grau, ela estava muito sexy. 

O pensamento lhe pareceu ter a força de um soco no estômago e seu semblante se tornou mais carregado. Concentrou-se no lençol, onde listras coloridas avançavam moldando-se ao formato da cama. 

Nicole interpretou seu olhar como uma resposta à sua pergunta. 

— Não achou que eu fosse dormir no chão, não é? 

Seus músculos se tencionaram com o deboche nas palavras dela e deixou a outra parte do bom humor escapar, assim como o pensamento sexy que tivera segundos antes. 

— Claro que não, “amor” — respondeu, entrando no banheiro com passos largos e duros. Bateu a porta atrás de si para abafar o som da risada dela, que ainda se dedicava ao livro quando retornou ao quarto se sentindo mais leve e relaxada após um banho longo. 

Em silêncio, assumiu seu lugar na cama, deixando o máximo de espaço possível entre ela e a loira que se divertiu com a cena. 

— Se chegar mais perto da beirada da cama, vai acabar acordando no chão. 

Aléxia bufou e puxou o lençol até a altura do queixo. 

— Parece até que está com medo de mim — continuou Nicole, largando o livro e deitando-se também. 

— Até parece! — Bufou. 

A moça riu alto, enquanto Aléxia se virava a fim de ficar de costas para ela. Desejando provocá-la um pouco mais, encostou seu corpo ao dela e a sentiu ficar inteiramente tensa. Segurou a vontade de gargalhar. 

— Tem certeza de que não está com medo de mim? — Perguntou em um sussurro, ao envolver a cintura dela, colando-se mais ao seu corpo. 

Aléxia teve vontade de saltar da cama, mas Nicole se afastou, de repente, levando o calor agradável e perturbador do seu corpo consigo. 

— E aí, como foi? — Perguntou, contendo um suspiro resignado por não poder permanecer abraçada a ela. Divertia-se em provocá-la, mas tudo que queria era uma chance de amá-la. 

Pegou o livro novamente e escondeu seu desejo por trás das páginas dele. Seria uma noite longa e perturbadora, assim como foi àquela em que a levou para seu apartamento. Foi quase uma tortura ter que despi-la e jogá-la em baixo do chuveiro; poder tocá-la, mas não do jeito que queria. Passou a noite inteira velando seu sono ébrio, até que percebeu que estava acordando e fingiu dormir também. 

Não imaginava que ainda se sentiria daquela forma ao seu lado, mas foi só encontrar seu olhar zangado, naquele bar, para que o coração batesse loucamente dentro do peito. Sabia que iria encontrá-la naquela noite, pois Mateus comentou que, talvez, uma amiga de Vivian saísse com eles também. 

Nicole havia buscado por isso; sonhado com isso, desde que a viu em uma foto no perfil social de Mateus. 

— Não estou a fim de conversar com você agora — ela respondeu com a voz abafada pelo lençol. 

— Certo, “amor” — fingiu dedicar sua atenção ao livro e Aléxia tentou dormir, mas não conseguia tirar o que se passou no jantar da cabeça. 

— Por que você me beijou? — Perguntou, finalmente. Estava cansada de tentar adivinhar os motivos de Nicole. 

O som da risada dela preencheu o quarto novamente e virou-se para olhá-la. Nicole a observava, divertida. 

— Mas eu não te beijei — respondeu. Não tinha beijado mesmo, não do jeito que queria. 

— E o que foi aquilo? 

Ela fez uma pequena careta, divertida. 

— Aquilo foi um “não-beijo”. Acredite em mim, se eu te beijasse, você saberia — ergueu as sobrancelhas dando ênfase às suas palavras e Aléxia fingiu não achar o gesto charmoso. 

Olhou para o teto, por alguns segundos, assimilando suas palavras. Definitivamente, Nicole era uma caixinha de surpresas. 

Ok. Seu “não-beijo” me surpreendeu. 

— Mesmo? — Conteve a vontade de sorrir mais abertamente. 

— Mesmo. Aliás, você tem me surpreendido muito ultimamente. Sabe, todo esse lance de “a mulher mais preconceituosa do mundo aceitar o infame papel de namorada de uma lésbica”. 

Quando olhou para Nicole, ela não estava mais sorrindo. Seu rosto estava sombrio. 

— Eu mudei — afirmou. 

— É, você já disse isso. 

— E você não acredita. 

— Não. 

— Mesmo assim, estamos aqui fingindo ser um casal apaixonado para sua família porque você tem medo de que a sua ex saiba que ainda gosta dela — conteve a vontade de gemer, indignada. 

Aléxia engoliu em seco e rilhou os dentes. 

— É, mais ou menos isso… 

— Isso é só um capricho — Nicole continuou, mal contendo a raiva em suas palavras. 

Quando ela perceberia que existiam mulheres, uma mulher em especial, que daria qualquer coisa para ter um fiapo do amor que achava ainda dedicar a Lis? 

Sorriu para disfarçar os sentimentos. 

— Você não a ama mais, Aléxia. Mas não percebeu isso ainda. 

— Achei que fosse designer e não psicóloga — rebateu. — Você não sabe nada sobre mim! Não faz ideia do que eu sinto. 

— Eu já tive minha cota dos ensinamentos de Freud — afirmou, mordiscando os lábios e a ex-colega desviou o olhar, outra vez, achando-a sexy. 

“Era só o que me faltava”, pensou, irritada por reparar naquele gesto e em tantos outros. 

Nicole soprou o ar para fora dos pulmões e prosseguiu: 

— Você não a olha mais como olhava naquele dia, no estacionamento da faculdade. Independentemente do que possa pensar, eu a conheço bem mais do que pensa… 

O som do seu celular impediu que continuasse a falar. O que foi um alívio, pois poderia acabar a assustando e perdendo a chance de tentar conquistá-la. O aparelho estava sobre o criado mudo, ao lado de Aléxia. A colega o pegou, resvalando o olhar sobre o visor. Nicole o recebeu com um muxoxo e silenciou o aparelho que voltou a tocar mais duas vezes. Ela o ignorou em ambas. 

— Está tarde, é o seu pai ligando. Pode ser importante — Aléxia falou, finalmente. Cansada de assisti-la silenciar o aparelho. 

A loira suspirou. Já não parecia tão confiante, como de costume. Seu semblante tornou-se abatido e ligeiramente triste. 

— Não é importante — afirmou, amofinada. 

— Você não atendeu para ter certeza. 

Ela deu de ombros, os lábios contraídos em uma expressão de desgosto. 

— Ele está decepcionado comigo — disse, os olhos fitos no livro que jazia fechado em seu colo. — Nós discutimos há alguns dias e, desde então, estou evitando encontrá-lo. No fim, ser sua “namorada” me poupou de um feriado estressante — tentou sorrir, mas só conseguiu aparentar mais desconforto. 

O silêncio recaiu, novamente, e Aléxia teve a certeza de que, no fim das contas, Nicole também era humana. Voltou a se virar. Antes de fechar os olhos, perguntou: 

— Você tem um biquíni? 

— Por quê? 

— Porque a super lésbica safada, aqui, está a fim de te ver em um! — Respondeu, cínica. 

Como houve um momento de silêncio, apressou-se a explicar: 

— Vou levar você, Vivian e Mateus para nadar amanhã. Só isso! 

— E eu achando que você estava mesmo querendo admirar o meu corpinho! — Brincou e ouviu um bufado. Conteve o riso e continuou: — Ninguém me avisou que precisaria trazer um. 

Aléxia liberou o ar, reprimindo alguns insultos. Nicole já era irritante na faculdade, quando fazia piadinhas sobre sua homossexualidade, mas ficava muito mais quando fazia aquele tipo de insinuação. 

— Humpf! Na verdade, ninguém trouxe, mas não custava perguntar. Apenas vista algo confortável e que seque rápido amanhã. — Fechou os olhos. 

Nicole pôs o livro de lado e apagou a luz. Muito tempo se passou, enquanto fingia dormir. Manteve a respiração regular. A mente estava completamente voltada para a mulher ao seu lado que se encontrava totalmente desperta. 

Aléxia tentou, mas não conseguiu dormir pensando em tudo o que se passou naquele dia e no quanto era estranho estar deitada na mesma cama que aquela mulher. Irritava-se por ela dormir tão tranquila, enquanto mal pregara os olhos. A fitava na penumbra, o olhar fixo no subir e descer do tórax. 

Como a vida gostava de pregar peças. Jamais poderia ter imaginado se encontrar em situação semelhante. 

Ao mesmo tempo em que a odiava por ter retornado a sua vida com uma enxurrada de lembranças ruins, sentia-se grata pela ajuda. Mesmo assim, preguntava-se, a todo instante, quando Nicole deixaria a máscara de boa moça cair. E, se ela tinha mesmo mudado, qual teria sido a razão? 

Não importava, de fato. 

Esmurrou o travesseiro algumas vezes e deitou de costas para ela, novamente. Seu olhar estava fixo na janela, nas estrelas que podia visualizar através dela. De repente, sua cintura foi enlaçada por Nicole, que grudou-se em suas costas. Tentou livrar-se daquele abraço, mas ela estava em um sono pesado, a respiração regular acariciando sua nuca. 

Moveu-se um pouco, chamou seu nome, mas ela não acordou. Tinha se entrelaçado em seu corpo, de tal maneira, que afastar-se tornou-se uma tarefa quase impossível. Poderia gritar, mas isso acordaria metade da casa, então estava fora de cogitação. 

Resignada, acabou se contentando em permanecer ali, entre os braços dela. Seu corpo estava inteiramente tenso, contudo acabou relaxando com o ritmo regular da respiração que acarinhava sua nuca. Aos poucos, resvalou para um sono profundo sem imaginar que Nicole permaneceu acordada, aproveitando, ao máximo, aquele contato. 



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