ALÉM DAS PALAVRAS

8. PROVOCAÇÕES PARA O CAFÉ DA MANHÃ

Nicole aspirou o ar frio da manhã com prazer. Mal tinha passado das cinco horas e o sol já se erguia imponente no céu, prometendo um dia quente e agradável. Caminhou até a beirada do lago, puxando um cigarro da carteira. Ia com passos arrastados e olhar vidrado. 

Estava cansada. Dormira muito pouco, já que passou a maior parte da noite desfrutando do calor de Aléxia que, aos seus olhos, ficava ainda mais bonita dormindo. 

Riu do seu atrevimento. Podia ter estragado tudo naquele momento. Mas, talvez, jamais voltasse a ter outra oportunidade como aquela e estava decidida a aproveitar todas que surgissem. 

Soltou a fumaça pelo nariz e o vento a dissipou, enquanto seu riso crescia. Contudo, ainda era muito baixo para ser ouvido da residência ao longe. 

— Ah, Nicole, as coisas poderiam ter sido tão diferentes se você não tivesse tido tanto medo de si mesma — falou para si, os olhos fitos nas águas, recordando o momento em que viu Aléxia pela primeira vez e a sensação que lhe assaltou. 

Naquele instante, quase dez anos antes, sentiu o mundo parar, “seu” mundo parar. Mas ainda não estava preparada para compreender o significado disso e quando finalmente aconteceu, também não estava. Então, se afastou da amizade que haviam começado a cultivar e mentiu, insultou, maltratou a garota que povoava seus sonhos e coração. E quanto mais a machucava, mais se destruía. 

Liberou um suspiro pesado e afastou as lembranças com outra nuvem de fumaça. O som de passos lhe chegou e voltou-se para encarar Alberto, deixando à mostra um dos seus sorrisos mais cativantes, o qual ele não retribuiu. 

Os olhos inchados revelavam que tinha acordado há pouco tempo, assim como os cabelos ligeiramente amarrotados. Ela admirou o rosto bonito, ainda por barbear. Tão diferente da irmã e, ainda assim, muito parecido. 

— Bom dia! — Cumprimentou com voz rouca e Alberto sussurrou uma resposta quase inaudível, lançando um olhar incomodado para o cigarro dela, que não se perturbou e deu uma longa tragada, a fumaça escapando pelas narinas. 

— Dormiu bem? 

— Não! A sua irmã ronca como um caminhão! — Soltou uma gargalhada para a expressão surpresa dele. — É brincadeira! Ela dorme como um anjo, até se parece com um. 

Ele exibiu os dentes, mas não lhe passou despercebido que não sorria, de fato. Admiraram as águas do lago em silêncio por um par de minutos, mas ela captou seu desconforto e o modo como os olhos se apertavam, como se estivesse reprimindo a raiva. 

— Por que não diz logo? — Resolveu indagar. 

Alberto ergueu o olhar para sua figura, uma expressão confusa. 

— Ah, não vamos fingir que você gosta de mim, cunhadinho — ela continuou. — Você pode ter tentado na primeira meia hora daquele jantar, mas quando contei a minha história com Aléxia, me odiou. 

Ele soube disfarçar, mas Nicole era uma profunda conhecedora do ódio, da raiva e do ressentimento. Captou seus sentimentos com facilidade. De repente, o rosto bonito se tornou uma máscara carregada de raiva. 

— Não pode me culpar por achar que você não é mulher para a minha irmã. 

A moça deu de ombros, concordando. 

De fato, não se importava com a opinião dele. Não ligava para a opinião de ninguém há muito tempo. A única pessoa com a qual se importava, naquele momento, era Aléxia. 

— Todo mundo tem o direito de errar e aprender com seus erros. 

O “cunhado” soltou uma risada de escárnio que ecoou incomodamente alta, como se estivesse esperando há muito tempo para fazê-lo. 

— Leu isso em um livrinho de autoajuda? — Colocou-se diante dela. 

Suas alturas se equiparavam e fitaram-se nos olhos. 

— Não me interessa se você encontrou a luz, se foi abduzida ou caiu em si. Se você a magoar… 

— Não vou! — Ela cortou. 

— Se a magoar, acabo com a sua raça! 

Foi a vez de Nicole sorrir com escárnio. Uma frase clichê, para um homem clichê. Ele ciscava, exibindo-se como tantos outros homens que conheceu. Um valente “príncipe encantado”. Era como estar diante de um de seus irmãos e, ainda assim, encontrar defeitos na perfeição. 

— É fofo da sua parte bancar o protetor, mas Aléxia é adulta. É uma mulher que sabe o que quer. 

— Nem sempre! Lex pode se perder algumas vezes. Como agora, por exemplo. 

— Conhece bem pouco da sua irmã, então — alfinetou. — Ela sabe o que quer. Sabe muito bem. E, se estamos juntas, é porque nos amamos — como desejava que aquelas palavras fossem verdade, se tornassem verdade — e você não tem que se meter em nossa vida. 

O maxilar dele se contraiu, contrariado. 

— Eu a amo e não vou deixar ninguém, ninguém além dela, nos separar! 

Ele soltou um som irritante, quase como se estivesse engasgado. Nicole continuou, deixando vir à tona um pouco da mulher que Aléxia conheceu. Suas palavras derramavam um pouco de veneno à cada sílaba pronunciada. 

— Talvez, um dia, seja você a magoá-la. Aí me pergunto: poderei olhá-lo com desprezo e dizer que acho que você não é o irmão certo para ela? 

Assistiu a transformação no rosto dele. Havia tocado em algo delicado. Por fim, deu-lhe as costas e retornou para a casa com passadas suaves e despreocupadas. Não precisava conquistar Alberto, nem seus pais ou amigos, somente Aléxia. 

*** 

Quando Aléxia acordou, Nicole se encontrava recostada na janela com seu inseparável cigarro pendurado nos lábios rubros. Os cabelos derramavam-se sobre os ombros, exalando o perfume do banho recente. Parecia ausente, contemplando a paisagem além da janela. 

Demorou-se a observá-la por um minuto, recordando o calor do seu corpo com um arrepio a percorrer suas costas. 

Desgraçada”, pensou. E deu-se conta do perfume dela em sua pele e nos lençóis. 

— Droga, o seu café da manhã de fumaça está me incomodando! — Reclamou, com voz rouca. 

Nicole ainda demorou alguns segundos para se voltar, sorriu e respondeu liberando outra nuvem de fumaça. 

— Bom dia para você também, “amor”. 

— Que horas são? — Esfregou os olhos e bocejou, desprezando a provocação na última palavra. 

— Ainda é cedo. O café ainda nem foi servido, mas seu irmão disse que nos chamaria quando ficasse pronto — mentiu porque queria lhe falar sobre o ocorrido. 

Ouvir a menção ao irmão despertou Aléxia por completo. 

— Quando você o viu? 

— Há cerca de uma hora. Tinha saído para fumar um pouco e esticar as pernas. Tivemos uma conversa interessante sobre o “nosso” namoro — respondeu com um sorriso divertido, que não disfarçou o desconforto que sentia, mas Aléxia aparentou não notar. 

— O que vocês conversaram? 

A loira recostou-se à parede, espreguiçando-se. Um movimento tão suave quanto o de um felino. Deu uma última tragada no cigarro e o apagou no cinzeiro sobre o parapeito da janela. 

— Ele deixou claro que não me acha a pessoa certa para você, devido nosso histórico — deu de ombros, o olhar deslizando para o piso. 

Aléxia soltou um suspiro chateado, enquanto fixava o teto. Já esperava por isso. 

Não lhe escapou os olhares atravessados que o irmão dedicou a Nicole durante o jantar. Nem se deixou enganar pelo sorriso e o dar de ombros após conversarem sobre o assunto com Vivian e Mateus. De qualquer forma, não importava muito, afinal, o seu “namoro” não era real e a mentira acabaria assim que pegassem a estrada de volta para casa. 

— Mas acho que o convenci das minhas boas intenções — sorriu, preguiçosa, e Aléxia tentou não achá-la terrivelmente bonita naquele momento. Estava ficando cada vez mais difícil não o fazer. 

Recordou as palavras do pai, na tarde anterior, e imaginou o quarto como um estúdio fotográfico onde Nicole era o alvo da câmera. Sim, não existia dúvida de que se ela se dedicasse à profissão de modelo, as câmeras a amariam. 

Achava que devia ser crime alguém ser tão bonita assim. 

— Como? 

Ela deu de ombros com um biquinho travesso. 

— Argumentei que ele era a pessoa menos indicada para me questionar, já que estava se casando com a ex da irmã. 

— O quê?! — Sentou-se na cama e teria levantado no mesmo instante se não percebesse o sorriso cínico dela. — Droga, você está brincando comigo! 

O riso de Nicole se tornou mais alto, preenchendo o quarto como se fosse música. 

— Precisava ver sua cara! 

— Eu te odeio! — Bufou. 

Ela arrastou os pés até a cama e curvou-se levemente, ficando a poucos centímetros do seu rosto. 

— Dizem que há uma linha tênue entre o amor e o ódio. — Comentou com um sorriso jocoso. — Não se apaixone, não sou para o seu bico! 

— Cretina! 

Atirou o travesseiro nela e a viu rir alto novamente. Uma risada leve, bem diferente da que recordava e que a deixava ainda mais bonita. Deixou escapar um muxoxo, contrariada. Como se um dia pudesse enlouquecer o suficiente para cair de amores por uma inimiga, por “aquela” inimiga! 

Não importava que a estivesse ajudando, que alegasse ter mudado; Nicole sempre seria àquela das lembranças ruins que carregava. 

— Você adoraria isso, não é mesmo? Adoraria poder se gabar disso e pisar em mim de todas as formas possíveis. 

O rosto da loira estagnou em uma expressão enigmática por alguns instantes em que a mirou intensamente. Por fim, um sorriso brejeiro voltou a se espalhar pela bela face. 

— Ou, talvez, eu te amasse como nenhuma mulher jamais te amou e me entregasse a você de corpo e alma — usou um tom levemente dramático, apenas para que não notasse a sinceridade em cada sílaba proferida. 

Aléxia atirou outro travesseiro nela, irritada. 

— Pare com essa palhaçada! Guarde o teatro de mulher apaixonada para quando estivermos diante de outros. 

— E quem disse que é teatro? Não ouviu minha história ontem à noite? 

— Sério, para com isso! Está começando a me assustar de verdade. — Com a antiga Nicole sabia lidar, mas essa brincalhona, cuja face ia do sarcasmo gritante à paixão, era assustadora. 

A moça liberou um suspiro, seu rosto apaixonado se desfez dando lugar a um cínico. 

— Como quiser, “amor”! 

Por sua vez, Aléxia revirou os olhos. Nicole conseguia deixá-la no limite de suas emoções de um segundo para outro. O modo como a olhou, um minuto antes, percorrendo cada centímetro do seu corpo descoberto foi assustadoramente agradável. A “desgraçada” sabia como interpretar um olhar de desejo e, embora a odiasse e soubesse que não passava de teatro, foi prazeroso ser observada daquela maneira. 

“Maldita”, mordeu o lábio, fazendo uma pequena oração para que aqueles dias se passassem rápido e pudesse retornar ao ódio completo por ela. 

Encolheu-se na cama, fitando-a. Ela havia regressado para a janela, perdendo-se novamente em um momento contemplativo. 

— Há alguns anos, você não suportaria ficar no mesmo ambiente que eu e, pela segunda vez, passamos a noite juntas na mesma cama. Você não está surtando e, mesmo que eu queira muito acreditar que enlouqueci, não é este o caso. O que aconteceu, Nicole? — Deixou-se guiar pela curiosidade. 

Os ombros dela se curvaram um pouco e a resposta lhe chegou através de um sussurro. 

— Eu cresci, me olhei no espelho e ele me olhou de volta. 

— O que isso quer dizer? 

Ela se voltou para fitá-la, deixando que enxergasse a tristeza refletida em seu semblante. 

— Um dia eu te conto. Prometo. 

Uma batida leve na porta impediu que Aléxia fizesse uma nova pergunta e isso lhe trouxe um momento de alívio. Não sabia se queria mesmo saber o que se passou com a ex-colega. Relutava em enxergá-la com outros olhos, por mais que estivesse lhe dando provas de sua mudança. 

A loira foi abrir a porta e uma Vivian ainda sonolenta entrou. 

— Bom dia! — A amiga sussurrou, passando por ela, cambaleante. 

— Você está com uma cara horrível — fechou a porta devagar, recostando-se nela. 

Vivian se jogou na cama e abraçou Aléxia, como se a amiga fosse um imenso urso de pelúcia. 

— Ressaca — murmurou, fechando os olhos e estalando um beijo na bochecha da amiga. 

— Acho que tenho um analgésico na nécessaire — informou Nicole. 

Vivian fez um gesto de “legal” com o polegar erguido e murmurou algo ininteligível.  Mesmo assim, Nicole se encaminhou para o banheiro, em busca do remédio, enquanto ela se enroscava mais em Aléxia, explicando com voz arrastada: 

— Fomos para a cama de madrugada. Mateus e o primo da Lis, aquele bonitão de barba… 

— Victor — Aléxia recordou. 

— Sim! Eles passaram metade da noite falando de futebol e pesca. — Fez uma careta. — Virei um acessório. 

Abriu os olhos, apenas para revirá-los. 

— Então, às cinco da manhã, o bonitão bobão bateu na nossa porta, chamando o Mateus para pescar e, é claro, que Têteu foi — soou desconsolada. 

— Quem é Têteu? — Perguntou Nicole, retornando do banheiro com o remédio e um copo d’água. 

Aléxia riu alto ao perceber que ela não conhecia o apelido. 

— Que foi? — Ela quis saber. 

— Têteu é o apelido carinhoso do Mateus — explicou. 

— Sério?! 

Nicole não precisava ter dito nada, seu rosto e sorriso já deixavam claro que achava o apelido ridículo e Aléxia riu novamente, liberando Vivian para que tomasse o remédio. 

— Bem, então acho que só nós três iremos nadar — falou. 

Vivian entregou o copo para Nicole e voltou a se jogar na cama. 

— Correção: só vocês duas. Eu vou ficar aqui, nessa caminha quentinha, gostosa, sem barulho e curtindo minha ressaca. 

Aléxia não tentou fazer a amiga mudar de ideia. Vivian era o tipo de pessoa que realmente vivia uma ressaca. Nada no mundo a faria se levantar antes da dor de cabeça passar, então se resignou com o fato de que teria somente a companhia de Nicole naquela manhã e torceu para que ela não voltasse a ser a de antes e acabassem se matando antes da hora do almoço. 

A deixou agarrada ao travesseiro e foi tomar banho. Antes de entrar no banheiro, viu a loira se jogar na cama também, no exato lugar que tinha ocupado um minuto antes. 

Nicole aguardou alguns segundos, depois que a porta se fechou. Então, se voltou para Vivian e perguntou: 

— Você não está de ressaca, está? 

A amiga riu, jogando o travesseiro para o lado. 

— Nenhum pouquinho. Só tomei duas taças de vinho. Mateus, como de costume, entornou todas. 

A loira assentiu, descansando o olhar sobre os tênis brancos que usava. 

— Por que a mentira? 

— Estou me achando meio louca no momento, mas resolvi te dar uma mãozinha nesse plano de conquistar a minha amiga. Mesmo achando que é uma ideia “suicida”, tanto para você quanto para mim. 

As íris verdes pousaram nela, curiosas. 

— Por quê? 

— Ainda nem são sete da manhã e você já está fazendo perguntas difíceis — revirou os olhos, afetada. — Eu não sei! De verdade. Pelo menos, não sei mais. 

Convidar Nicole para sair com ela e Mateus na mesma noite em que Aléxia estaria com eles, não foi por acaso. Alguns dias antes, tinha flagrado a nova amiga com uma mulher, uma ficante, como Nicole foi enfática em afirmar. Gostava dela, a achava linda, interessante, culta, o tipo de mulher que poderia conquistar Aléxia. Então, planejou aquela saída com a finalidade de apresentá-las e torcer para que, pelo menos, rolasse um clima entre as duas. Foi um tiro n’água. Jamais poderia ter imaginado que as duas se conheciam e que Nicole tinha sido tão cretina no passado. 

Depois de saber de tudo, queria que as duas se acertassem e que, pelo menos, se perdoassem. Realmente, não sabia o que a incentivava a apoiar os planos de Nicole, mas a ideia de ver aquelas duas juntas parecia muito natural, principalmente após uma noite de sono. 

Que todos os deuses a ajudassem se Aléxia descobrisse o que planejava pelas suas costas! 

— Realmente, não sei! — Repetiu. — Mas alguma coisa está martelando na minha cabeça, desde que as vi juntas ontem. Então, vou te dar essa ajudinha, mas se você aprontar com ela, esteja preparada para me enfrentar. E eu te garanto, Nicole, não vai me querer como inimiga. 

Seus olhos faiscaram com a promessa de vingança e a outra teve certeza de que não eram palavras jogadas no vento. Sorriu para ela e voltou a agarrar-se ao travesseiro. 

— Algum conselho? 

— É você quem quer conquistá-la. Já estou ajudando demais, mas tente não fazê-la te odiar ainda mais! 

*** 

Quando desceram para tomar café, não havia quase ninguém à mesa. Somente a mãe de Aléxia e Dona Inês ocupavam cadeiras. A moça forçou um sorriso para a sogra do irmão e curvou-se para beijar a mãe. Foi imitada por Nicole, cujo gesto deixou Dona Alexandra um pouco desconcertada. 

— Bom dia! — Cumprimentaram-se. 

— Onde estão todos? — Aléxia indagou. 

Nicole sentou ao seu lado com graça e um sorriso brejeiro, se apossando logo de uma xícara de café. Serviu-se e à namorada também, então passou a se concentrar em uma torrada. 

Dona Inês respondeu, pousando seu olhar de ave de rapina nas duas, bebericando seu próprio café. Mal conseguia esconder o seu desagrado pela presença do casal e isso não passou despercebido por nenhuma das mulheres, incluindo Dona Alexandra. 

— Estão lá fora, ajudando com a decoração. O dia mal amanheceu e já estavam discutindo onde ficaria cada coisa. Ainda não tomaram café, logo chegam — colocou alguns fios de cabelo atrás da orelha e enviou um sorrisinho maldoso para Aléxia. — Estamos todos tão ansiosos! Seu irmão é um rapaz adorável, o “homem” perfeito para uma “mulher” como a minha Lis. 

A moça dedicou sua atenção a torrada que Nicole fez questão de depositar em seu prato. De repente, sentiu a raiva revirar seu estômago. Aquela mulher sempre soube de seus sentimentos pela filha e nunca poupou esforços para acabar com a “amizade” que pensava que as duas tinham. Cada palavra que saía de sua boca, era uma provocação. 

Atenta a tudo, como de costume, Nicole captou as intenções da dona da casa. Não precisava de uma avaliação minuciosa para perceber de onde Lis tirou seu veneno. Com um gesto suave, tratou de soltar, como quem não quer nada: 

— Com certeza, será um casamento lindo como o nosso será! — Enviou uma piscadela marota para a “namorada”, fingindo não notar que a mulher do outro lado da mesa engasgou-se com o café. 

Dona Alexandra, que até o momento não sabia como agir diante das palavras maldosas da futura sogra de seu filho, ocultou um risinho tomando um gole do seu suco, enquanto a filha usou um guardanapo. Nicole continuou, empurrando Aléxia com o ombro, suavemente: 

— Espero que não se importe em usar o terno, já tenho o vestido desenhado — deu um chutinho no pé dela sob à mesa, capturando um olhar escandalizado da senhora da casa. 

Dona Alexandra se empertigou, entrando na provocação: 

— Se quiser levar minha filha ao altar, mocinha, ela terá que usar o vestido. Sonho em vê-la em um desde que nasceu. 

Ao seu lado, Dona Inês estava terrivelmente contrariada. 

— E com isso ela quer dizer: Qualquer vestido. — Aléxia emendou. 

De fato, não gostava de usar vestidos, embora tivesse alguns. Contudo, desde que se recordava, nunca usou um diante da mãe. 

Ainda dando corda à brincadeira, a mãe completou: 

— Se quiser a minha benção, Nicole, terá que enfiá-la dentro de um vestido. 

— Ah, isso não será problema! O vestido que ela irá usar amanhã é de arrasar! — Piscou, marota, e passou o braço sobre os ombros de Aléxia. — Que acha, “amor”? Podemos aproveitar a festa e anunciar o nosso casamento. 

Dona Inês soltou um barulhinho esganiçado, as mãos esmagando um pobre guardanapo. Nicole estava exagerando na provocação, mas Aléxia não iria reclamar. Pelo contrário, estava amando irritar a ex-sogra. 

Colocando uma fatia de bolo em seu prato, agitou o garfo, dizendo: 

— Não é uma má ideia — enfiou uma porção do bolo na boca, para evitar uma gargalhada diante do olhar assassino da mãe de Lis. Mesmo assim, manteve um dos cantos da boca arqueado e permaneceu assim por um bom tempo, enquanto o silêncio se apossava do ambiente e tomavam o resto café sem mais provocações até que Alberto, acompanhado pelo pai e pelo sogro, irrompeu pela porta entre risos e tapinhas camaradas nas costas. 

Beto cumprimentou a irmã com um beijo na testa e um “oi” seco para Nicole. Aléxia estranhou sua atitude, pois ele era sempre gentil e atencioso, então lembrou que a “namorada” comentou que tinham conversado mais cedo. Achou que tudo que disse era uma brincadeira, mas pelo modo como o irmão se comportava e o riso irônico no rosto de Nicole, a conversa havia sido real. 

Um minuto depois, Nicole pediu licença e se retirou. A teria seguido se sua mãe não tivesse lhe pedido um minuto de atenção. 

*** 

Batia o pé inconscientemente, enquanto aguardava a mãe falar. Se encontravam na sala de estar e, assim como a mãe, observava Nicole caminhando diante da casa com um cigarro pendurado nos lábios. 

Ela ia de um lado a outro arrastando os pés. 

— Você está feliz? 

Obrigou-se a fitar a mulher mais velha e limpou a garganta para responder com outra pergunta: 

— Não pareço estar? — A voz saiu ríspida, embora não tivesse intenção. 

Ainda se encontrava agastada com Dona Inês e, também, pelo olhar azedo que o irmão lhe dedicou quando viu Nicole estalar um beijo em sua bochecha antes de sair. Dessa vez, o gesto não a incomodou, como esperava, e imaginou que o motivo foi a satisfação pela raiva crescente no olhar da dona da casa. 

Nunca se sentiu tão satisfeita em ver alguém zangado, como naquele momento, e tinha quase certeza de que sua mãe também apreciou isso. Afinal, a viu engolir em seco quando a mãe de Lis começou a destilar seu veneno. 

Dona Alexandra a mirou em uma avaliação minuciosa, como só uma mãe é capaz. 

— Ontem eu teria dito que não. Você me pareceu muito desconfortável ao lado dela. Principalmente, quando nos contou a história de vocês — seus lábios crisparam-se. — Por que nunca nos constou o que acontecia? 

Deixou os ombros arrearem. Sabia que a mãe não deixaria aquela história passar em branco. 

— Não teria mudado nada — respondeu com um forte exalar. 

— Talvez não, mas teria o nosso apoio. 

Deu de ombros, lançando um sorrisinho envergonhado. 

— Gosto de pensar que sempre tive, já que vocês nunca se opuseram as minhas verdades e escolhas. 

Dona Alexandra lhe sorriu, condescendente. 

— Sim. Mas sabe o que quero dizer. A ajudaríamos a suportar, procuraríamos uma solução juntos. 

Aléxia sorriu mais abertamente. Não tinha dúvidas disso, no entanto, tinha decido enfrentar aquilo sozinha. O mundo era grande e cheio de pessoas boas e compreensivas, contudo sempre haveria aqueles como Nicole e seus amigos. Não podia correr para os pais sempre que ouvisse uma piada de mau gosto ou recebesse um olhar atravessado por ser quem era. 

— Não foi uma época muito feliz e, com certeza, não irei esquecê-la tão cedo. Mas parte da mulher que sou hoje é resultado dela. 

Dona Alexandra tornou a olhar para Nicole. 

— Pelo menos, ela é bem-humorada e está disposta a te proteger, como aconteceu agora há pouco. Mas confesso que não me sinto confortável sabendo que ela a magoou dessa forma. Nem consigo compreender como pode estar com ela, depois do que houve. 

Ah, se ela soubesse a verdade! Se conhecesse a raiva que se revirava em seu interior sempre que olhava para o sorriso debochado de Nicole, sempre que sua mente se voltava para o passado. Se pudesse compreender o motivo de estarem ali, vivendo aquela mentira… Com certeza, seria uma decepção para a mãe e, talvez, ouvisse um bom sermão. Um sermão mais que merecido. Mas era adulta agora e, mesmo que não estivesse se comportando como uma, as decisões eram suas, os erros eram seus e precisava assumi-los. 

— É passado, mãe. — Obrigou-se a dizer, mas, no fundo, desejava que fosse verdade. Desejava arrancar aquela pedra de seu coração. 

Nenhum ódio era saudável. Ansiava, verdadeiramente, que um dia não tivesse sequer uma gota dele em si. Odiar era mais fácil que perdoar, era fato. E apesar do quanto esse sentimento crescia quando estava com Nicole, ainda assim, não o queria. Era confuso odiar e não querer fazê-lo, embora não conseguisse se controlar. 

Obrigou-se a não passar a mão pela cabeça e deixar a confusão transparecer em seu olhar. Maldita Nicole! Maldita Vivian por deixá-la se meter naquela encrenca e cavar, ainda mais, o buraco em que estava. 

— Depois do jeito como se olharam naquela mesa, da cumplicidade que vi, tenho certeza que sim. Só a avise que, se quiser mesmo se casar com você, terá que nos pedir a sua mão. 

O rosto da filha adquiriu um tom fortemente rosado, enquanto a mãe se lançava em uma gargalhada extravagante. 

*** 

Aléxia se sentiu grata pela luz do sol tocando sua pele e respirou o ar puro daquela manhã no meio do nada com alegria. Aquela foi a conversa mais estranha que teve com a mãe. E pegou-se a remoer as coisas em que havia se deixado pensar, enquanto conversavam. 

Fitou Nicole que, por sua vez, pegou outro cigarro, atirando o que restou do anterior no chão, fazendo pouco caso da limpeza do ambiente e pegou-se a imaginar se aquilo não era mais uma provocação para Dona Inês. 

O que a mãe tinha querido dizer com “Depois do jeito como se olharam naquela mesa, da cumplicidade que vi…”? Tinha certeza de que não havia nada de extraordinário em seu olhar para Nicole. Fingia paixão, assim como ela. 

— Alguém já te disse que você parece uma chaminé ambulante? 

Nicole a fitou, demorando-se no tom rosado de sua pele, pois ainda não tinha se recuperado da declaração da mãe e a certeza de que era nisso que reparava, realçou sua cor. 

— Só você é capaz de uma frase tão carinhosa, “amor” — respondeu rindo, então lhe dedicou um olhar intenso e, ao mesmo tempo, provocante. — Prometo largar o vício quando nos casarmos — riu novamente. 

Aléxia bufou, cerrando os punhos. A desgraçada ficava ainda mais bonita quando a provocava daquela maneira. 

Como nunca reparou naquilo? 

— Você é terrivelmente irritante! 

Ela deu de ombros, parando à sua frente. 

— Costumo causar esse efeito nas pessoas, mas nenhuma é tão especial quanto você. 

— Você nunca para? 

— De ser encantadora e maravilhosa? — Riu gostosamente da expressão aturdida em sua face, então olhou para o cigarro que segurava. — Você encomendou uma namorada falsa e ela veio com alguns defeitos. Ignore-os pelos próximos dois dias e, talvez, sejamos um casal realmente feliz. 

Aléxia bateu o pé, mas parou de reclamar, observando a chegada de um caminhão com o resto da decoração para a festa. 

— Sua ex-sogra é um porre — Nicole declarou, deixando o sorriso de lado e atirou o cigarro, ainda pela metade, no chão, pisando nele até que apagasse. 

Aléxia soltou o ar de seus pulmões. Uma grande quantidade de cadeiras já estava disposta perto do lago. O altar começava a ser montado e havia gente indo e vindo o tempo todo, apesar de ainda ser muito cedo. 

— Dona Inês nunca gostou muito de mim. Para o resto do mundo, Lis e eu, éramos apenas amigas, mas ela percebeu a minha paixão pela filha e fez de um tudo para acabar com nossa amizade. — A fitou, longamente. — Obrigada pela a ajuda. Foi inesperada. 

— E divertida, confesse! 

Ela riu, concordando. 

— Não tenho nenhuma intenção de negar isso! 

Nicole deu mais um passo, quase entrando em seu espaço pessoal e Aléxia limpou a garganta para esconder a perturbação que sentiu. Vinte e quatro horas ao lado daquela mulher estavam lhe deixando desnorteada. Às vezes, queria bater nela, noutras, como naquela mesa, minutos antes, apenas sorrir com ela e fingir que o passado que tinham era apenas um sonho ruim. Era tudo tão confuso quando pensava à respeito, como vinha pensando desde àquela madrugada, recordando o último e detestável encontro que teve com ela, anos antes, e o os últimos que vinham tendo desde que a reencontrou. 

Seu orgulho e a raiva pelo passado a obrigavam a se manter alerta à espera da antiga Nicole. Contudo, tinha de admitir para si mesma, que ela não só parecia diferente como agia diferente. 

Odiava Vivian por obrigá-la a conviver com Nicole. Não bastasse a confusão sentimental em que se encontrava por causa daquele maldito casamento, agora se via confusa quando olhava para Nicole e não enxergava a mulher com quem compartilhou farpas, insultos e até agressões no passado. 

Afastou suas divagações, enquanto inclinava a cabeça para trás a fim de fitá-la. 

— Sou sua “namorada”, Aléxia. Vou cuidar de você, enquanto estivermos “juntas”. E todo veneno que ela lançar em sua direção, também será lançado para mim. Infelizmente, para ela, conheço todos os truques e palavras maldosas do repertório de gente cretina e, com certeza, sei como revertê-las. — Sorriu largo. — Venha comigo, “amor”, venha para o lado negro por alguns instantes. 

Aléxia riu com a promessa de provocação em seu olhar; felizmente, não voltada para ela. Nicole a puxou para si, mas não colou seus corpos, como na noite anterior. 

— Espero que tenha uma boa razão para me segurar assim. 

— E se eu disser que é só porque quero te sentir um pouco? — Sorriu mais largo. 

— Então, diria que o açúcar que colocou em seu café estava batizado ou estragado — riu, mas não fez menção de se afastar. 

— Seu irmão e a “noivinha” estão nos observando da varanda. — Aléxia reprimiu a vontade de se voltar para vê-los. — Não sei qual deles parece estar com mais ódio, mas me arrisco a dizer que é ele. 

— O que vocês discutiram de verdade? — Enlaçou o pescoço dela. Como era estranho fazer isso e não querer enforcá-la. 

— Ele realmente acredita que não sou a pessoa certa para você. Foi bem estranho defender uma relação que nem existe. Creio que ficará muito feliz quando te ligar, daqui algum tempo, e você contar que acabamos — sorriu, um sorriso estranhamente sem brilho. 

Não conseguia imaginar o quanto foi difícil para Nicole defender um relacionamento falso de forma convincente, mas acreditou que havia sido perfeita, como na noite anterior ao inventar aquela história. 

— Obrigada — falou agradecida e, sem pensar muito, ficou na ponta dos pés para lhe dar um beijo na face. 

Imaginou que receberia um tapa ou algo parecido, mas, ao contrário disso, admirou o belo rosto dela adquirir um adorável tom rosado. 

— De nada, eu acho — Nicole se esforçou para dizer. 

— E desculpe por ter que passar por essa situação — afastou-se devagar, escorregando as mãos pelos braços dela, casualmente, até suas mãos. 

— Até que está sendo uma experiência divertida. — A soltou. — Não imaginava que ser lésbica poderia ser tão interessante! 

— Sério! O que tinha no seu café? — As duas riram alto, enquanto Beto e a noiva retornavam para o interior da casa. 

*** 

Quando entraram na residência, Nicole disse que ia à cozinha tomar um copo d’água e como estava demorando, foi procurá-la. Ela não estava lá, mas Lis estava. 

Sua primeira reação, foi a de dar meia volta. Não tinha a menor intenção de ficar sozinha com ela, pois sabia que não seria capaz de se conter por muito tempo. No entanto, a ex foi mais rápida, a puxou pelo braço e a jogou contra a parede. 

Estava tão surpresa que não conseguiu esboçar qualquer reação. Apenas a encarou por segundos intermináveis à espera do seu próximo passo, enquanto reunia suas forças para empurrá-la. 

Por alguns instantes, rememorou as palavras de Vivian e as de Nicole, na noite anterior. Será que já não a amava mais, como pensava? Se era assim, por que se sentia tão atormentada com aquele contato? Por que desejava tanto beijá-la? 

Não importava. Nada mais importava, exceto devolver um pouco do veneno que ela derramava sempre que se falavam. Naquele instante, desejou ser um pouco como Nicole. Então, esforçou-se para sorrir e perguntou, usando a mesma entonação que a “namorada” costumava usar para provocá-la: 

— Pretende fazer algo ou só quer admirar meus magníficos olhos azuis? 

Lis pressionou os pulsos dela com mais força. 

— Você é uma desgraçada, Aléxia! Por que tinha que vir? 

Alargou o sorriso, sem saber de onde tirava forças para fazê-lo. 

— Porque você disse para não vir — falou a verdade. 

Admirou as feições carregadas ficarem ainda mais pesadas. 

— Me solte — pediu. 

— Não. 

 A raiva no olhar dela, o mesmo que sempre era doce quando namoraram, a atingiu profundamente, mas não deixou que percebesse. 

— Qual é o seu problema? 

— Você! Você é o meu problema! 

— Ele é meu irmão, não deixaria de estar presente no casamento dele porque você não aguenta olhar para mim e lembrar do que já significamos uma para a outra! 

Lis a soltou, apenas para desferir um tapa em sua face, o que a deixou desnorteada, mas antes que pudesse sair dali ou revidar, a ex a surpreendeu, novamente. Lis pousou seus lábios nos dela, forçando passagem para um beijo louco e apaixonado do qual Aléxia sequer cogitou a possibilidade de não corresponder. 



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