Aléssia

Capítulo I

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> I <<<

Nascer para assassinar o próprio pai é, provavelmente, o mais cruel de todos os destinos. Quando a Feiticeira Catrina anunciou que o Rei de Âmina seria morto por minha espada, fiz todo o possível para contradizê-la. O destino, entretanto, é imperativo e não poupa ninguém.

Sou Aléssia Valentina de Amaranto O’Líath, filha de Maura Alexandrina O’Líath e Aran de Amaranto, legítima herdeira do trono de Âmina. Por muito tempo fui conhecida apenas como Aléssia Valentina de Amaranto: o nome de minha mãe me foi tirado após sua morte.

Passei a juventude enclausurada no Castelo de Três Círculos, conforme a tradição de meu povo. O que significa que cresci confortavelmente afastada da realidade e, embora me julgasse culta e muito esperta, era a mais infeliz dos ignorantes.

O Castelo de Três Círculos foi construído por meus ancestrais. Desde sua construção nunca foi tomado de assalto. É inexpugnável. Quem tentou conquistá-lo, morreu na tentativa.

Cresci em um raro momento de paz na história de nosso Reino, o que me proporcionou uma infância feliz. Provavelmente por isso doeu tanto quando, no início da juventude, descobri a verdade sobre minha família.

Meu pai era um tirano. Isso, por si só, já não é uma coisa fácil de aceitar. No meu caso, que cresci cercada de mimos, é particularmente difícil. Não vou inventar que Rei Aran era um péssimo pai para que isso me sirva de atenuante. Comigo ele sempre foi apenas gentileza, carinho e atenção. E eu o amava muito.

A primeira imagem que tenho dele é de um homem galante, vestido com as cores de nosso reino, entrando a galope pelo portão principal do castelo. Eu devia ter uns cinco anos. Estava em meu quarto, no segundo andar da casa principal. Meu pai viajara há mais de uma semana, eu sentia uma saudade horrível. Conquanto os criados fossem sempre muito atenciosos, e por mais que a companhia de Amaryllis me fosse agradável, nada substituía a presença dele. Então, quando ouvi os gritos de abram os portões, meu coração deu piruetas de alegria. Corri para a janela e lá estava ele, o elmo dourado reluzente ao sol, entrando a galope com sua comitiva. Os soldados vestidos com roupas de festa, as bandeirolas coloridas, tudo muito bonito. Desci correndo pelas escadas e voei pelo pátio em direção a seus braços.

Meu Rei. Meu herói. Meu pai!

O mundo girava e nós éramos o centro. A barba levemente áspera de meu pai causava cócegas no meu rosto. Seu cheiro forte de homem, o calor e segurança de seus braços sustentando meu corpo no alto enquanto rodávamos em frenética alegria. Don Otto, um dos conselheiros do reino, chegou pigarreando, querendo atenção.

— Agora, não, Otto, a Princesa e eu temos assuntos urgentes para tratar.

— Desculpe-me, Majestade, mas creio que as providências que precisam ser tomadas são…

— DEPOIS, OTTO! — seu grito me fez estremecer por um segundo, então ele afagou meus cabelos vermelhos, beijou minha testa e continuou — Depois, eu já disse. Marque uma reunião para amanhã. Minhas próximas horas são de Aléssia, e não há nada no reino que não possa esperar.

Não sei o que havia de urgente mas, seja o que for, esperou bem mais do que algumas horas. Gastamos os dias seguintes em muitas brincadeiras pelo campo. Fui liberada de minhas atividades educacionais, enquanto o próprio Rei evitava seus conselheiros. Só depois retomamos a rotina. Sempre com o cuidado de haver um tempo nosso. Minha entrada no gabinete era liberada, por mais séria que fosse a reunião. E no fim das tardes brincávamos no campo ou na biblioteca.

E não era só de meu lazer que o Rei se ocupava pessoalmente. Sua presença era constante em todos os setores de minha vida. Apesar de todas as responsabilidades e compromissos, Rei Aran nunca delegou a terceiros minha educação. Podemos considerar que meu pai era meu mentor e que, tanto meu tutor quanto professores, eram executores dos planos traçados por ele.

Minha rotina começava antes do alvorecer com aulas de esgrima, luta, arco-e-flecha. Em seguida vinham as intermináveis lições de história, economia, política e estratégia militar. Tanto quanto sou capaz de me lembrar, todas essas lições sempre estiveram presentes em minha vida. Lembro que com três anos eu golpeava bonecos com uma espadinha de madeira. Nunca me pouparam de nada com a desculpa de que eu era uma menina. Ao contrário, exigiam de mim sempre o máximo, já que estava destinada a governar nosso povo.

Meu pai, aliás, era especialmente rígido comigo. Sua presença nos treinamentos era comum. Na infância, enquanto eu treinava com meu equipamento especial, ele se exercitava ao lado. Interrompia suas atividades e me observava. Então corrigia minha postura, meu modo de segurar as armas, a forma como mirava ou me direcionava para os alvos. Também era comum que me mandasse observá-lo em seu treino. Aproveitava esses momentos para mostrar como mantinha o pé firme na terra enquanto desferia um golpe, como seu braço recuava para absorver o impacto de uma investida do adversário e logo depois se alongava num gesto de ataque.

— Observe como utilizo a força do adversário contra ele mesmo — disse-me em certa ocasião. E fez um soldado repetir várias vezes o movimento de ataque para que eu observasse sua técnica de recolher o braço, receber o impacto e a hora exata em que transformava o impacto recebido em força de contra-ataque.

Lembro também, nítido como hoje, de uma manhã em que o céu amanheceu cor de chumbo. A cozinha estava deliciosamente impregnada pela mistura de cheiros do pão fresco, ainda quente sobre o balcão, e dos bolos de milho e laranja que estavam nos fornos de lenha. Saboreava cada detalhe da refeição, a manteiga que derretia no pão quente, o leite morno de ter estado nas tetas da vaca, a geleia de framboesa aguardando sua vez. Enquanto eu me divertia com a comida um aguaceiro forte começou a bater contra os vidros das janelas. No pátio os homens corriam em busca de proteção.

— Hoje não vou ter lição matutina, Pri, vou comer seus bolos até meu estômago dobrar de tamanho! – disse animadamente para Agripina, nossa cozinheira, enquanto abocanhava mais um pedaço de pão.

Como resposta à minha alegria desmedida meu pai entrou na cozinha. Instantaneamente as criadas pararam e se curvaram até quase o chão. Achei aquilo engraçado. Meu pai raramente aparecia e, portanto, a cena era rara.

— Venha comigo imediatamente, Aléssia. Hoje serei seu instrutor.

Caminhou para a porta dos fundos e fazia menção de abri-la quando eu, sem largar o pão que mordiscava, disse-lhe o que me parecia óbvio, mas que, aparentemente, meu pai não havia percebido:

— Está chovendo como se o mundo fosse acabar, meu pai. Treino só amanhã. Ou de tarde, se os Deuses varrerem as nuvens pra bem longe.

Para meu eto o Rei abriu a porta e parou na soleira olhando-me com ar de reprovação. Uma forte rajada de vento e chuva entraram na cozinha derrubando louças, panelas e ingredientes culinários. As mulheres correram atrás das coisas enquanto meu pai dizia, em tom severo:

— Venha imediatamente! O inimigo não deixaria de nos atacar porque está chovendo!

Não me movi. Olhava-o com eto enquanto mastigava o pão quentinho. Então o Rei soltou um de seus famosos berros e, no susto, saí correndo para a chuva.

Os pingos eram tão grossos que doíam na pele. Meu pai e seu enorme corpanzil moviam-se como se nada estivesse acontecendo. Eu tentava andar ereta como ele, mas acabava por me curvar na luta contra o vento e a água. Meus pés patinavam na lama e não raras vezes o tombo me pareceu inevitável.

Chegamos ao campo de treinos e peguei minhas débeis armas de madeira. Meu eto foi maior quando meu pai mandou largá-las e jogou em minhas mãos Serbal, sua espada predileta.

Por pouco meu corpo não sucumbiu ao peso da arma. O terreno escorregadio não me ajudava em nada. Ficar em pé com aquele peso já era um desafio.

— Senhor, essas não são as melhores condições para que Aléssia aprenda a manejar uma espada de verdade!

Meu instrutor de armas tentou intervir a meu favor.

— Cala a boca, Chad! Quem é você pra saber mais do que eu? Aléssia está crescendo. Já é tempo de lutar como gente grande. E é nas intempéries da vida que aprendemos nossas lições definitivas. Assim é e assim sempre será!

Com essas palavras meu pai se lançou feroz contra mim, usando uma de suas espadas secundárias. Serbal era excepcionalmente pesada e mesmo um homem adulto teria dificuldades em manejá-la. Temendo decepcionar meu pai ergui o braço da melhor forma que pude, mas a espada me jogou ao chão e rolei desolada pela lama. Os pés do Rei tocaram de leve minha coxa ordenando que me levantasse. Investiu contra mim mais uma dúzia de vezes e em nenhuma fui incapaz de erguer a espada. Então ele largou sua arma, parou a meu lado e começou a corrigir a postura de meu corpo:

— Agora que você entendeu a dificuldade real de uma batalha, está pronta para aprender como se usa uma espada de verdade.

E me presenteou com Flora, forjada especialmente para mim.

Choveu torrencialmente o dia todo. Ficamos até o entardecer no campo de treinamento sem pausa nem para uma refeição leve. Quando o sol se pôs — se é que é possível usar essa expressão para um dia dominado pelas trevas — voltamos para casa. Cheguei a meu quarto com tanta dor que não tive disposição para jantar. Adormeci com minhas roupas imundas de barro.

Foi a primeira vez que me senti adulta. A futura Rainha de Âmina.

Depois daquele dia negro meus treinos se intensificaram. Aprendi a usar meu novo florete e, vez por outra, empunhava Serbal, para me habituar com o peso e a empunhadura de uma espada larga. Minha rotina diária ficou mais exaustiva e as exigências de meus instrutores se tornaram ferrenhas.

Mas não apenas as lutas e teorias diplomáticas faziam parte de minha educação. Meu pai também exigia que eu aprendesse as atividades domésticas, já que desposaria futuramente o governante de um reino vizinho.

Cresci ouvindo falar desse casamento. Pelos comentários da criadagem desde meu nascimento eu já tinha um noivo. Mas meu pai nunca me falava sobre isso e eu simplesmente não levava as fofocas a sério.

Quando meus ciclos femininos surgiram, comecei a participar das reuniões ministeriais. Três invernos depois já tinha direito a voto, o que me dava status de Conselheira do Reino. Aprendi a usar esses atributos para fugir das atividades domésticas, pois eu simplesmente as detestava. Ada, nossa governanta, era exigente em todos os aspectos. Cobrava-me a postura correta e os trejeitos de uma dama. Certa feita invadiu o gabinete de meu pai para reclamar de meus modos. Por trás da porta o ouvi dizer que me repreenderia por meus modos.

— E as roupas dessa menina, Majestade? Ao longe não é possível distingui-la dos meninos! Qual o homem que vai querer desposá-la assim, em trajes masculinos?

— Com o dote que tem qualquer um vai querer desposá-la, Ada. E é bom que seu futuro marido tenha respeito pelas calças que ela usa. Aléssia será a Rainha! Será dela não só o poder como o comando de nosso exército. Jamais dele, por mais rei que possa ser em suas terras estrangeiras. Somos a maior nação deste território, e todos os reinos devem se curvar às nossas exigências. Aléssia tem direito a seus caprichos. Ensine-a os modos corretos à mesa. Faça-a aprender o necessário para comandar as criadas. Nada mais é necessário. Aléssia não é uma mulher comum.

Se essas palavras surtiram algum efeito em Ada, por certo foram o efeito contrário ao desejado por meu pai. A governanta aumentou substancialmente sua cobrança e, quando me queixei, a resposta do Rei foi Ada sabe o que faz.

Continuamos então na mesma, com minha instrutora exigindo que eu tecesse e bordasse, colocando-me de auxiliar nas tarefas da cozinha, obrigando-me a fiar por horas intermináveis. Assim foi por muito tempo, eu obedecendo a poder de cabo de vassoura. Qualquer descuido e eu fugia para o pátio. Preferia passar meu tempo junto dos cavalariços, provocando-os para briga. E Ada não perdia nenhuma dessas oportunidades para gritar aos quatro ventos o quanto uma mãe faz falta na educação de uma filha.

Não me agradava ser lembrada de que eu era uma pobre órfã. Meu pai me basta, eu gritava com grosseria. E me trancava no quarto, mordia os lábios, rangia os dentes, sufocava no peito o desamparo e a vontade de chorar. Sofria de uma saudade crônica de minha mãe, mas ninguém sabia.

Ou quase ninguém. Amaryllis sabia.

Amaryllis, filha de Renan, meu tutor. Com os cabelos amarelos como os raios do sol e a pele parecida a um lírio branco. Era minha companhia mais constante desde a primeira infância. Na medida em que crescíamos nossa amizade se tornava sólida, íntima.

A única coisa melhor do que brigar com cavalariços era estar com Amaryllis. Mesmo quando tudo o que ela queria era tecer e fiar. Em sua companhia eu encontrava prazer nas tarefas mais aborrecidas. O detalhe não escapou à ardilosa Ada que começou a convocar minha amiga para as lições domésticas. E se já éramos unha e carne, com aquela convivência quase forçada tornamo-nos inseparáveis.

Tão inseparáveis que me parecia natural que fossemos companheiras para sempre. Jamais me ocorreu que, talvez, Amaryllis tivesse outros planos para sua vida. Eu acabara de me tornar Conselheira do Reino quando descobri que a vida nem sempre se importa com os meus caprichos.

Tarde de primavera e o calor nos convidava para um passeio. O único problema eram as aulas de bordado. Lady Charlote, com seu sotaque engraçado, emaranhava linhas na sala de costura. Nossa instrutora tinha esse problema peculiar: entretinha-se com os pontos e não percebia que as linhas, a seus pés, pegavam-se de amores umas pelas outras. Depois de um tempo estavam num só bolo. Fosse Ada que ministrasse essa aula e com certeza a tarefa enfadonha de separá-las seria minha. Mas Lady Charlote era tão parva que perdia tempo, ela mesma, brigando com os fios. Foi num instante desse, em que nossa mestra estava com a atenção tomada pelo emaranhamento das linhas, que Amaryllis e eu nos esgueiramos até a porta. De lá saímos numa carreira pelo gramado. A princípio a corrida era uma fuga, mas logo tomou ares de disputa.

— Você não consegue me alcançar, Amaryllis!

— Isso não vale, Aléssia, você está de calças!

Minha resposta foi um pinote que me colocou passos à frente. Sempre detestei perder e se estivesse disputando com um dos meninos teria aproveitado a vantagem para fazê-lo comer poeira. Mas com Amaryllis eu ganhei apenas a distância necessária para escolher nosso destino. Mantendo-a a poucos passos de distância, fui para os bosques, onde podíamos vivenciar nossa amizade sem nenhuma intromissão. Atirei-me ao gramado quando já não era possível ouvir os sons da vida no castelo. Estávamos sós.

Com falta de ar minha amiga se jogou a meu lado. O bom de ser uma menina é que Amaryllis nunca se preocupava com educação e compostura quando estávamos a sós. Do jeito que se jogou a saia subiu até a cintura e a visão de suas pernas desnudas me deu arrepios. Deitei minha cabeça em seu colo e ela me acolheu com afagos no cabelo. Distraidamente comecei a acariciar suas pernas, seu cheiro florido de menina entorpecendo minha cabeça. O perfume de Amaryllis era mais alucinógeno do que o vinho.

Vez por outra um raio de sol vencia a barreira de folhas e nos atingia, mas logo o vento rearranjava as folhas e ficávamos novamente mergulhadas na refrescante sombra do arvoredo. Nada mais acontecia além de nossas carícias ingênuas. Até que minha companheira decidiu quebrar o silêncio, e meu coração se partiu.

— Alê, você já gostou de algum menino?

A pergunta era tão absurda que minha reação foi rir. A única pessoa especial pra mim, além de meu pai, era ela própria. Cheguei a abrir a boca pra dizer exatamente isto, mas ela colou dois dedos em meus lábios e continuou, com a voz doce e ofegante de quem revela um segredo.

— Ele gosta de mim, Alê!

Fiquei pasma. Ele quem? Que absurdo Amaryllis me falava?

— Já tem uns dias que vem me olhando. Disse que cresci, já sou mulher. Imagina ouvir isso de um menino! Fiquei toda sem graça. Achei que ele estivesse me pregando uma peça. Mas… foi muito cavalheiro, sabe? É um verdadeiro lorde! Também pudera, não é? Tem a educação de um fidalgo!

— De quem, diabos, você está falando, Amaryllis?

— Do Douglas, revelou timidamente.

— Douglas? O filho do Lorde Bresser?

— Você o conhece, não é? Acho que é um dos seus companheiros nas aulas de esgrima. O que você sabe dele? Acha que seria um bom marido?

Claro que o conhecia. Douglas havia sido, até aquele instante, um dos meus companheiros mais próximos. Mas as palavras dela me feriram de tal forma que enxerguei tudo vermelho. Corri todo o castelo, alucinada, no encalço do traidor. Encontrei-o nas cocheiras, tratando de seus cavalos. Sem me preocupar com a presença de outros cavalariços chutei o balde de água que Douglas usava para escovar Raio de Luz, seu cavalo favorito. Mais velho do que eu, e também muito mais sábio, o filho de nosso administrador se limitou a me olhar. O ódio era transparente em meu rosto e, aos berros, o chamei para o pátio, para uma luta de vida ou morte. Como o rapaz não reagiu saquei do cinto meu canivete e encostei a lâmina em seu rosto. Um grupo se formou imediatamente à nossa volta, mas o fidalgo não se mexeu. Limitava-se a me olhar com um ar manso que me dava nojo. Firmei o pulso no cabo da faca e fiz menção de lhe cortar a carne. Em vão.

Hoje, quando me falam em dignidade, lembro a postura de Douglas naquele dia. Em momento algum recuou, nem tampouco esboçou qualquer reação. Olhava-me com eto. Eu, completamente emotiva que sou, firmei a lâmina numa tensão que por muito pouco não provocava uma tragédia. O rapaz continuou calmo e, antes que eu perdesse completamente o controle, um punho firme tomou de mim a arma. Alguém tivera o bom senso de chamar Mestre Renan. Vendo seu olhar severo comecei a perceber a situação delicada em que me encontrava. Mas também trouxe ainda mais para perto a presença de Amaryllis. O que ele acharia se soubesse que eu estava disposta a morrer por sua filha? Naquele instante, em pequenos passos, eu estava atravessando a fronteira entre infância e vida adulta.

Douglas continuava imóvel, olhando-me de forma incisiva, agora com um leve ar de orgulho, pronto a me exigir explicações. E eu as devia, por certo.

— Agora que a situação está mais calma creio que possamos conversar, não é, Aléssia? Eu nunca lhe fiz nada. Por que me atacou assim?

A imaginação é um artifício dos demônios. Forja-nos imagens loucas na cabeça. A voz segura de Douglas me fez imaginá-lo cortejando Amaryllis, andando em volta dela pelos recantos do castelo, sussurrando-lhe juras de amor. Como ele se atrevia? A raiva foi subindo vaporosa de meu estômago e, quando dei por mim, tinha o dedo em riste no seu rosto, vomitando uma ordem rosnada.

— Afaste-se dela! É só isso o que lhe digo, Douglas. Afaste-se dela!

Não precisei explicar. O jovem fidalgo entendeu perfeitamente e não pareceu se surpreender.

— Não posso, Aléssia. Eu a amo.

Amor. O que ele sabia de amor? Nem sequer a conhecia direito! Era eu quem vivia atrelada a Amaryllis, era em meu colo que ela cochilava, era comigo que ela se abria. Era eu quem a amava. Como ele se atrevia? Empinei o corpo o mais que pude, para vencer nossa pequena diferença de altura e, olhando-o no fundo dos olhos, disse:

— Pela última vez: afaste-se dela.

— Como já disse, isso é impossível. Eu a amo, Aléssia. Compreenda.

— Você a ama? Você? A ama?! Como se atreve, seu bastardo! Estou lhe dando uma ordem! Afasta-se de Amaryllis! Afaste-se dela!

Naquele momento éramos apenas Douglas e eu. Mestre Renan e todos os outros não existiam nem em minha memória. Estava decidida a resolver o assunto de uma vez por todas. Ninguém tinha o direito de se colocar entre Amaryllis e eu. Ninguém! Ergui os punhos fechados, um murro engatado, quando meu tutor me tomou pela cintura, e me afastou do menino. Devia estar parvo agora que sabia o motivo de nossa discussão.

— Não quero ser insolente, Alteza — gritou Douglas em desafio — mas o que me pedes é impossível…

Recuou dois passos e fez uma mesura em minha direção. De certo modo dizendo-me que reconhecia minha autoridade. Mas fez o gesto de forma tão afetada que deixou claro o deboche. Procurei no cinto o canivete que habitava agora a mão de meu tutor.

— … a menos que Vossa Alteza saiba de algo que impeça meu amor por Amaryllis, completou a frase com cinismo.

— Ela é minha!

Grunhi a resposta sem pensar. Entre dentes, abafada pela minha dor, mas autoritária e audível o bastante para calar a audiência. Estava cega de ódio. E de amor. A atenção totalmente voltada para Douglas, o pensamento embriagado por Amaryllis. Minhas últimas palavras envenenaram o ar como o chumbo derretido atirado por catapultas. E mesmo Douglas pareceu se etar. Ou não esperava que eu tive coragem de dizer o que disse.

— Perdão, Alteza… Ela é… o quê?

Se há um divisor de águas em minha vida, esse divisor foi aquele momento. As palavras de Douglas e seu eto. Pela primeira vez tornei-me cônscia de meu infortúnio. Ela não era minha, obviamente. Amaryllis não era minha. Nem jamais seria.

— Ela é minha… irmã…, completei com a voz baixa e trêmula. Cerrei a mandíbula, sufoquei na garganta as lágrimas que subiam do coração. Tive pena de mim, uma menina perdida num mundo de homens adultos. Tive vergonha de mim, uma Princesa fraquejando na frente de seus serviçais. Tive ódio de mim, uma idiota imatura que expunha ao ridículo a mulher que amava. Amaryllis há de me odiar para sempre, pensei.

— Ela é minha irmã, repeti com a voz mais firme, controlando-me. Douglas apenas me olhava, seu rosto já não demonstrava nenhuma expressão. Mas seus punhos, pela primeira vez cerrados com força, mostravam-me que ele também estava disposto a matar ou morrer por ela.

— Ela é minha irmã, Douglas Bresser! Arranque dela uma única lágrima e estarás morto. Provoque nela uma dor que seja, e serás executado cruelmente, no pátio desse castelo. Se quiser ter uma vida longa, fidalgo, aconselho-o a fazê-la feliz. E se o casamento não estava em seus planos, saiba que isso acaba de mudar. Você irá desposá-la, amá-la, respeitá-la para sempre. E se assim não for, eu mesma aplicarei minha sentença. Pois que aqui e agora, no testemunho da população desse castelo, eu, Aléssia Valentina de Amaranto, legítima herdeira do Reino de Âmina, lhe juro de morte, caso provoques dano ou dor à Amaryllis di Veneris, minha irmã de criação.

Douglas curvou novamente seu corpo, dessa feita numa atitude de respeito. Depois ergueu a espinha e encarou-me com o ar sério e pesaroso. Minha infância, se havia existido algum dia, estava atirada em pedaços no chão daquele estábulo. E junto dela jazia morta minha sincera amizade com Douglas. Acalmei meus nervos olhando desafiadora para todos os homens ali presentes. Ninguém se atreveu a dizer palavra. Num gesto automático espalmei a mão direita e aguardei que Renan, meu sábio tutor, devolvesse minha faca. Não tive coragem de encará-lo, não quis ler a reprovação em seus olhos. Guardei a arma em meu cinto e montei o primeiro animal que encontrei. Saí trotando, sentindo na nuca um arrepio incômodo: aqueles meus últimos gestos eram, em tudo, idênticos aos de meu pai.



Notas:



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6 Respostas para Capítulo I

  1. Li todos os outros contos da autora no Kindle, que são incríveis. Então nem pensei 2x antes de começar essa história.
    Já gostei do primeiro capítulo e curiosa com a Alessia. Só espero não sofrer muito. Kkk

    • Taay, quanto amor nesse comentário! <3

      Espero que até o fim desse ano Aléssia também esteja na Amazon. Estou reescrevendo, melhorando o texto. Mas enquanto a versão final não vem, espero que você curta a viagem aqui no Lesword. Seja muito bem-vinda! Receba um grande abraço.

  2. Não falei que começaria a ler?

    Diana, sua escrita me encanta… e esse cenário então…

    Certeza que vou amar a história de Aléssia.

    Abraços!

    • Oi Anes, seja bem-vinda! ❤️

      Fico muito feliz que tenha gostado desse início, e espero que a história lhe agrade. Que Aléssia possa lhe dar horas de prazer. Um beijo e muito obrigada por seu comentário.

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