Aléssia

Capítulo II

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> II <<<

Os dias seguintes foram de aflitiva solidão. Amaryllis vivia sua vida, enquanto eu descobria a minha. Aprendi da forma mais difícil o valor do silêncio, da quietude e da prudência. Dediquei-me aos estudos com mais afinco do que em todos os anos anteriores. Desinteressei-me das brincadeiras e desafios com os cavalariços. Debrucei-me sobre os livros e tratados de política, economia, administração. Apenas os afazeres domésticos continuavam a me torturar. A ausência de Amaryllis gritava em cada aula. Ninguém me explicou seu sumiço, nem eu perguntei. Não havia necessidade.

O inverno chegou num bom momento. Com o rigor das intempéries, minha permanência no quarto não levantava suspeitas. A partir da primavera, entretanto, minha presença começou a ser cobrada por meu pai. Passei os meses floridos com um péssimo humor e cumprindo tarefas apenas por obrigação. Não sentia prazer algum nem mesmo nas refeições, que sempre foram momentos de alegria. Como se não bastasse, a retomada das aulas práticas trouxe a preocupação de evitar Douglas. Quanto a Amaryllis, essa desapareceu por conta própria.

Quando o inverno seguinte deu seus primeiros sinais de partida, uma angústia diferente começou a me inquietar. Da janela do meu quarto, eu via a estrada que saía de nossos portões. O mundo lá fora era terra e, vez ou outra, alguma árvore. Não havia muito o que ver e era, a bem da verdade, uma paisagem cotidiana, o quadro diariamente visível de minha janela. Mas o que haveria além do ponto que meu olhar alcançava? E que estranho era nunca ter tido essa curiosidade antes! Por algum motivo inexplicável, minha casa começou a parecer uma prisão. E percebi, com certo horror, que nem mesmo o castelo eu conhecia direito.

Havia todo um mundo entre o castelo e o mundo externo. O Círculo Intermediário. O lugar em que soldados e criados viviam. E onde eu nunca estivera.

O nome de nosso castelo, Três Círculos, deriva de sua arquitetura: três muralhas dispostas em círculos concêntricos protegendo a Casa Principal. Entre a muralha externa e a intermediária ficam os prédios do exército. A distância entre os dois muros é de quatro milhas. O muro intermediário e o interno estão separados por apenas duas milhas. Nessa segunda ala estão as casas dos soldados e serviçais do castelo, o Povoado. O círculo interno é o maior com doze milhas de diâmetro. Nele ficam a Casa Principal, as oficinas, cozinhas, estábulos, área para treino militar, o campo e o bosque em que eu me divertia na infância. Cada muralha possui quatro portões que coincidem com os pontos cardeais. Os portões do Norte ligam o castelo à estrada principal e, na minha juventude, eram abertos apenas para saída do exército ou chegada de alguma embaixada estrangeira. Os portões do Sul eram — e são até hoje — passagem para a área de fazendas que fornecem alimentos para a população local e são fechados apenas ao entardecer. Os portões externos do Oeste e do Leste permaneciam constantemente fechados e, no período em que vivi no castelo, nunca os vi abertos. Os portões Oeste e Leste de ligação entre a Área Militar e o Povoado são mantidos permanentemente abertos. Na minha juventude o portão Oeste entre o Povoado e o Castelo fechava ao deitar do sol, enquanto o portão Leste permanecia aberto até as vinte e três horas. Hoje permanecem abertos todo o tempo. Todos os portões — abertos ou fechados — possuem sentinelas e são mantidos sob vigilância em período integral até hoje.

Foi, portanto, no Povoado que comecei a buscar refúgio para minhas aflições. Não sei ao certo o que me levou lá pela primeira vez. Talvez a curiosidade, talvez certo senso de aventura. A Tradição não me proibia de frequentar o Círculo Intermediário. Mas meu pai, sim. Havia, então, um gosto de mistério e proibição naquele lugar, por mais que ele estivesse no quintal de minha casa.

As sombras do muro começavam a cobrir o lado sul de nosso jardim, ironicamente repleto de amores-perfeitos naquela época do ano. As tardes tornavam-se quentes e uma inquietude me impediu de ficar no quarto quando terminei meus estudos. Com a proximidade do verão os dias ficavam mais longos e decidi dar um passeio. Mandei meu cavalariço selar Amora enquanto me dirigia a casa para colocar roupas mais frescas. Vesti um leve camisão de linho branco e calças de montaria. Não tinha planos. Não sabia para que lado ir. Conhecia a área interna do castelo tão bem que era capaz de cavalgá-la de olhos fechados. Os roteiros de sempre me pareceram monótonos, aborrecidos.

Completei meu traje com uma faixa carmim, que firmava a calça na cintura e, enquanto a amarrava, observei as muralhas que continham meu mundo. O fim do inverno enchia o ar de cheiros, cores e sons. Crianças corriam em algum lugar, mulheres gritavam por seus filhos e os mercadores ainda berravam os preços de suas mercadorias. Foi naquele instante que senti uma imensa curiosidade sobre o povoado.

Montei em Amora com o destino já em minha cabeça e a estimulei para um galope rápido, alvoroçado. Nesse passo de corrida me aproximei do Portão Leste, para grande assombro das sentinelas. Um dos soldados parou à minha frente, braço estendido ordenando-me que parasse.

— O que há, soldado? Algum problema no povoado?

O jovem, nervoso por falar com a Princesa, curvou-se até quase o chão antes de responder.

— Perdoe-me, Alteza, mas… não gostaria de uma escolta?

— Escolta?! Para andar pelo povoado? Não vou sair do castelo, soldado. Agradeço sua preocupação, mas não julgo necessário.

— Pode não ser seguro caminhar no meio do povo, Alteza.

Quem falava agora era outro soldado, um pouco mais velho do que o primeiro que talvez regulasse em idade comigo. Fiz um gesto de incredulidade antes de responder.

— Por que não? O povo dentro desse castelo vive sob a tutela de meu pai. Que mal alguém poderia me querer? E ainda que, por qualquer motivo que fosse, alguém pretendesse me ferir, não haveria de escapar da fúria de meu pai. Quem é insano o bastante para tentar algo assim?

Os dois se entreolharam por um minuto e depois o mais velho continuou:

— Não sabemos quem pode lhe querer mal, Princesa, mas é nossa função pensar na segurança de todos aqui nesse castelo.

— Compreendo que estão fazendo seu trabalho, mas lhes asseguro que não vou passar do Povoado, nem permanecerei aqui após o pôr do sol. Tenho certeza de que estarei em segurança e vou passar, ainda que seja contra a vontade de vocês.

O mais velho me fez uma reverência e depois acenou para que o outro saísse da frente:

— Não se esqueça de que lhe alertamos, Princesa. Caso sinta-se em perigo, grite pela ajuda de um soldado.

— Assim o farei, fique tranquilo. E que vosso serviço seja leve até o fim da jornada diária.

— Agradecemos, Alteza — respondeu o mais jovem enquanto liberava minha passagem.

Meu instinto não estava enganado por querer visitar aquele lugar. O Povoado era um festival de cheiros, cores, texturas, gestos, pessoas. Minha aparição inesperada causou eto. Comentários foram surgindo aqui e ali por onde eu andava e minha presença foi se espalhando como uma onda. Não demorou para que rostos curiosos surgissem nas janelas, pessoas inventavam coisas para fazer nas ruas, crianças corriam em torno de meu cavalo. Eu os olhava com a mesma curiosidade com que me encaravam. Naquela hora, em que luz e sombras começavam a se misturar, as casas me pareceram profundamente tristes. O tom opaco das fachadas me dava uma sensação de sujeira. As pessoas exibiam peles marcadas pelo tempo, pela guerra ou por doenças. Ainda assim sorriam com espontaneidade e pareciam felizes.

Desmontei Amora e me misturei às pessoas que, inicialmente, se sentiram incomodadas com minha presença, como se não soubessem ao certo como se comportar. Mas, como eu simplesmente andava guiando minha égua pelas rédeas, aos poucos foram retomando seus gestos naturais. Não demorou até que os mais ousados se aproximassem para cumprimentar, e eu respondia a todos os gestos com carinho e afeição. Aquela era minha gente, era meu dever protegê-los. Para isso que eu era educada nas mais diversas artes, para ser capaz de tomar as decisões corretas para garantir vida próspera à nossa gente, quando chegasse a hora do meu governo. Cresci sentindo-me especial por esse destino não escolhido. Cresci sentindo certa afeição e carinho por aquela gente que eu não conhecia, mas que me habituei a chamar de “minha”.

Até aquele instante eu não sabia disso, mas a região leste do povoado era a zona das tavernas e do meretrício. Por isso a preocupação dos guardas que me viram passar justamente por ali. O que me fez escolher aquele portão foi o sol que ainda o atingia, quando o lado oeste começava a ficar envolto em sombras. Caminhei tranquilamente, até que um bêbado mais exaltado resolveu segurar meu braço, rosnando algum gracejo que não compreendi.

— Largue-a, seu bastardo! Quem você pensa que é pra tocar desse jeito na Princesa de Âmina?

Uma mulher de cabelos cor de cobre, aparentando pouco mais de trinta anos, afastou a tapas o rapaz que me importunava. Imediatamente outros próximos se afastaram e a mulher segurou as rédeas de Amora junto comigo, guiando-me para uma rua lateral.

— Eles estão etados com sua roupa, Alteza. São parvos e vivem num mundo de pequenas convicções.

Olhei-a com assombro. Com que audácia falava de minha roupa, estando ela mesma em um vestido de decote tão generoso? Acaso seus seios não estavam quase completamente descobertos? Não fosse por um pequeno xale de renda, que manejava de jeito a disfarçar o volume, por certo os homens a atacariam no primeiro passo que desse na rua. Deixei meus olhos correrem por aquela figura. O tecido cru de sua pobre veste era tão fino que suas formas eram facilmente adivinhadas. Era uma mulher linda, embora fosse possível notar que não se tratava exatamente de uma dama. Deixei-a me conduzir pelas ruas mesmo sabendo que isso não era muito prudente. Ela não se afastou muito da rua principal, no entanto. Parou na entrada de uma casa de fachada vermelha que, pela cor, se distinguia bastante de todas as outras casas.

— Não quero parecer rude, Alteza, mas seria conveniente usar um vestido quando vier ao povoado.

— Qual o problema com minhas roupas de montaria?

— Fora o fato de serem exclusivas para homens, não há problema algum com elas.

Deixei escapar um riso alto enquanto a observava demoradamente. Era excepcionalmente bonita e seu jeito atrevido despertava meu interesse.

— Acho que você é a primeira pessoa que tem a coragem de criticar minhas roupas na minha presença.

A estranha curvou seu corpo até o chão, enquanto pedia desculpas, mas eu ordenei que se erguesse imediatamente.

— Isso não foi uma crítica. Na verdade acho que está mais para elogio — respondi quase com malícia. Se saí de casa em busca de novidades, você é uma das boas!

— Acha?

O tom de sua voz era ainda mais malicioso do que o meu. Comecei a gostar daquele joguinho perigoso.

— É melhor ir embora antes que anoiteça, Alteza. Se quiser, posso lhe mostrar um caminho seguro até o portão.

— Qual o seu nome?

Pela primeira vez ela me olhou nos olhos. A rua era estreita e naquele horário o sol não chegava ali. Admirei seu rosto entre sombras tentando adivinhar detalhes dos traços. Alguém gritou ao longe açoitando um cavalo e esse era o único som além da algazarra das crianças.

— Matilde, Majestade, respondeu erguendo levemente a saia e inclinando a cabeça num gesto de cortesia. O cheiro de seus cabelos flutuou no ar e, num gestou instintivo, aproximei meu rosto do dela.

— Muito prazer, Matilde. Obrigada por sua cortesia. Mas a noite está agradável e eu não estou com sono. Acabei de chegar ao Círculo Intermediário e não quero voltar cedo para casa. Gostaria de saber como vocês se divertem por aqui. Os criados, vez por outra, comentam das festas do povoado. Não teremos nenhuma por agora? Não podemos arrumar uma festa ou coisa parecida?

Matilde abriu um largo sorriso mostrando seus dentes brancos e perfeitos. Os lábios grossos se faziam adivinhar mais do que se mostravam naquela penumbra. Aproximando o rosto ainda mais do meu a mulher tocou-me de leve no peito em um gesto que, por si só, já valia como convite.

— Coisa parecida creio que seja possível arranjarmos, Princesa. Quanto a festas, teremos as celebrações de colheita em poucos dias.

— Chama-me de Aléssia, por favor.

— Perdoe-me, Majestade, mas eu jamais seria capaz desse atrevimento. — sua voz tinha tonalidades de respeito e eto.

— Atrevimento é desobedecer a uma ordem minha. Meus amigos me chamam de Aléssia.

— Fico envaidecida pela honra, mas seus amigos são nobres e, com certeza, para eles é fácil quebrar determinadas formalidades.

Um cavaleiro passou próximo a nós e Matilde abriu a porta da casa.

— Convém entrar ou retornar imediatamente ao castelo, Princesa. Não é bom que nos vejam juntas.

Suas últimas palavras foram ditas já no limiar da porta e tão logo terminou de pronunciá-las sumiu no interior da casa, deixando a porta entreaberta. Os castiçais da sala foram acesos enquanto eu providenciava um lugar seguro para prender as rédeas de Amora, de modo que quando entrei a sala rescendia a vela e incenso.

Tranquei a porta às minhas costas, meus olhos famintos despindo-a sem pudor algum.

— Alguém lhe viu entrar, Princesa?

— Não me chame assim, eu já lhe pedi.

— Perdão, é mais forte do que eu. Somos treinados a agir de forma correta na presença da família real.

— Não abaixe sua cabeça quando estiver falando comigo. Não combina com você. Já percebi que tem um jeito altivo e confesso que gosto disso. Além do que seus olhos são lindos.

Matilde não conseguiu disfarçar um sorriso. E então deixou de lado os modos estudados e se aproximou com a cabeça orgulhosamente erguida.

— Se isso é uma ordem, creio que posso obedecê-la.

Seu sorriso era lindo e cheio de atrevimento. Segurou minha mão e puxou-me com suavidade para o aposento interno da casa. Uma cama com limpíssimos lençóis de algodão dominava o cômodo, que tinha ainda uma bacia com água, uma cômoda com espelho, uma cadeira e um pequeno armário. A janela estava fechada e coberta por uma grossa cortina deixando o ar um tanto quanto abafado. Os sons do vilarejo eram quase inaudíveis ali. Toda a cena tinha para mim um quê de irrealidade, como se eu estivesse delirando um sonho muito estranho. Olhando-me com curiosidade a mulher parou em frente à cama e, num único e rápido gesto, desatou o nó que sustentava o vestido deixando-o cair a seus pés.



Notas:



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4 Respostas para Capítulo II

    • Né não? 😉
      Demorei pra dar o ar da graça, essa época é doidera na minha vida, mas fiquei muito feliz de saber que você estava lendo Aléssia Gratidão, Lineier!

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