Aléssia

Capítulo LIII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> LIII <<<

Tirei minhas roupas e deixei o ar noturno secar meu suor. Deitei e me cobri com os lençóis de linho que forravam minha cama desde a infância. Aquele luxo macio tinha textura de casa, para mim, e adormeci rapidamente sem pensar em temores ou problemas.
Por que não ter isso para sempre?
A voz era aveludada e parecia vir das nuvens claras que cobriam o pequeno bosque em que eu me encontrava. Eu estava vestida com minha túnica cerimonial e tinha os cabelos mais longos do que de costume. Usava uma tiara cravejada de safiras, e brincava com a água fria de um regato. Olhei em volta procurando quem falava comigo, mas não vi nada.
Lençóis de linho… por que perder esse luxo?
Parecia agora que a voz vinha de algum lugar atrás de mim. Caminhei naquela direção e surgiu das sombras, caminhando devagar, um homem magro, alto e calvo. Seu olhar era calmo e seu sorriso inspirava confiança.
Certas coisas não são para todos. Não podem ser. Como garantir lençóis de linho a todas as pessoas? Por outro lado, isso seria motivo suficiente para que ninguém mais pudesse usufruir desse conforto? Claro que não. Coisas especiais são para pessoas especiais. E pessoas especiais existem poucas. O mundo é feito de pessoas comuns. Gente que só tem capacidade para produzir filhos e pegar doenças. O mundo pertence a quem é forte. Apenas o forte pode ter poder. E as pessoas fortes são sempre especiais. O que eu lhe ofereço, Aléssia, é a força. Todo o resto você conquistará a partir dela.
Pareceu-me tentador. Por que dormir em camas de palha dura com cobertas grosseiras feitas de algodão cru?
O homem tomou minha mão e a beijou. Seu sorriso dizia-me que eu era bela e desejável, e isso alegrava meu coração. Deixei que o estranho me tomasse para uma dança e nossos passos ganharam ritmo através de uma melodia que surgiu entre as folhas das árvores. Seus olhos me falavam de casamento, filhos, felicidade e conforto e tudo aquilo me pareceu agradável. Sorri com timidez, e ele me pediu que lhe fizesse meus votos.
Diga-me, minha amada, que será somente minha, e tudo aquilo que desejar, a partir de hoje, será por mim providenciado.
Busquei as palavras mais adequadas, mas quando julguei encontrá-las, não fui capaz de dizê-las. Uma espada roubou-me o fôlego, rompeu meu corpo de fora para dentro, e um cavaleiro emergiu daquilo que outrora fora eu.
Vi meu corpo cair sem vida e um cavaleiro ruivo assumir meu lugar. Seus olhos eram ferozes e suas mãos rápidas no manejo da espada. O homem calvo, meu noivo, soltou gritos aterrorizados e correu. Senti que eu morria, mas quando abri os olhos estava em minha cama, transpirando nos lençóis de linho de meu quarto.
O café da manhã foi servido nos meus aposentos. A luz refletida pela montanha prometia um dia anormalmente quente. O fim da primavera estava nos trazendo temperaturas ainda maiores que as do verão. O ar estava parado e mesmo os pássaros não encontravam entusiasmo para cantar. Talvez por isso eu me sentisse sufocada enquanto quebrava meu jejum e pensava em Alex.
Estava degustando um pouco mais de bolo de mel, quando a aia de meu pai trouxe um recado para encontrá-lo em seu escritório.
Vesti-me com trajes de treino e fui ao escritório.
— Recebi um emissário de Condado Kent, ontem. Seu noivo estará a caminho tão logo resolva um pequeno problema familiar. — Meu pai me informou sobre o assunto enquanto me cumprimentava com um beijo na testa. Essa operação era mais simples em minha infância, agora eu tinha praticamente a sua altura e ele precisava erguer a cabeça para que seus lábios encontrassem o caminho até seu destino.
— Pequeno problema familiar? O que pode ser grave o bastante para atrasar um casamento real? — Tentei parecer interessada no casamento, embora minha preocupação fosse apenas como fugir dele.
— Alguma coisa ocorrida com a futura esposa do irmão caçula de Armand. Não entendi bem, e também não importa. Enviei um aviso lacrado a seu noivo. Ele deve estar aqui na próxima lua nova, sob pena de experimentar a ponta de minha espada. Não creio que ele seja assim tão estúpido.
— Você fez bem, meu pai. Quanto antes resolvermos os assuntos pendentes, melhor.
Ele concordou, depois perguntou se eu já havia tomado meu café. Aparentemente o Rei ainda não havia feito seu desjejum.
— Talvez seja oportuno resolver também outra pendência, meu pai: entregar-me o comando do exército. Assim quando Armand chegar, já me encontrará no comando de nossas tropas. Isso, certamente, lhe tirará qualquer esperança de comandar a segurança de nosso reino.
A ideia incomodava meu pai. Se eu fosse seu filho homem, já teria assumido esse papel. Mas apesar da educação bélica, estava claro que meu pai pensava em mim como Princesa e Rainha, não como líder de seus soldados.
Entretanto, havia agora o receio de contrariar a Pedra. E, mesmo a contragosto, meu pai concordou.
— Teremos uma reunião do conselho essa tarde. Convocarei Galvan e faremos a transmissão de poder.
Sorri. Se pudesse assumir o controle do exército, então talvez pudesse decidir o futuro do reino de forma rápida e indolor.
— Estarei lá — disse simplesmente — e saí para o pátio.
Fui aos estábulos e encontrei Irina ainda amarrada. Prendi seus pulsos unidos e depois soltei a corrente que prendia seu pescoço à cerca da baia de Amora. A corrente era longa e me permitia conduzir a jovem como se fosse um animal selvagem. Puxei-a assim, com os braços presos, por toda a extensão entre a estrebaria e a casa principal. Os criados pararam seus afazeres estarrecidos com a cena. Mas bastou um grito meu para que todos encontrassem algo com o que se ocupar.
Maltratar Irina me doía por dentro. Mas poupá-la do sofrimento poderia custar minha vida e a de muitas outras pessoas. Não creio que meu pai acreditasse em minha encenação, se percebesse que eu tratava a escrava com carinho e respeito. Além disso, naquela época eu não podia saber até onde Irina era inocente, ou se era fiel a meu pai e lhe transmitia informações a meu respeito. Épocas de guerra são épocas horríveis em que não há possibilidade de existir justiça no mundo.
Empurrei Irina para a casa da criadagem e ordenei que lhe limpassem, vestissem e a levassem para meu quarto junto com a refeição da noite. Depois saí para caminhar.
Era a primeira vez que caminhava livre pelo pátio interno do Castelo. A atmosfera tinha um ar tão familiar e agradável que precisei dizer a mim mesma que as aparências eram enganosas. Senti uma vontade quase irresistível de cavalgar, mas isso significaria retornar à baia de Amora e eu não tinha muito tempo.
Aproveitei, pois, para esticar as pernas. Afastei-me da casa principal com a estranha sensação de uma criança burlando seu castigo. Os serviçais curvavam-se a me ver, e tudo era como se eu nunca tivesse me ausentado do Castelo. Eu era a Princesa de Âmina, herdeira do trono, como sempre havia sido.
Nenhum soldado me interpelou ou tentou limitar meu direito de ir e vir dentro do Castelo dos Três Círculos. Nem mesmo quando cruzei o portão oeste e entrei no Círculo Interno. Caminhei na vila popular apreciando o fim de tarde da primavera. Alguns soldados me acompanhavam à distância, enquanto os populares me observavam com reverência e temor.
Lembrei dos tempos em que eu julgava andar incógnita por ali. Pensei em Matilde. Senti saudades de uma época em que o mundo girava em torno do meu umbigo, e eu não tinha problemas maiores do que saber o que Matilde sentia por mim. Hoje eu sabia. E esse conhecimento era acompanhado por toda uma miríade de dores, o fim das minhas ilusões infantis.
Decidi voltar para casa antes que um descontrole emocional me levasse de volta aos braços da mais famosa meretriz de Âmina. Girei nos calcanhares e comecei a retornar ao portão quando uma senhora saiu das sombras e correu em minha direção. Um grupo de soldados surgiu a cavalo e me cercou. Os animais pateavam os cascos no chão e as pessoas se afastaram assustadas. A velha me olhou com ar faminto, as roupas pobres e molambentas, e retornou para as sombras de onde saiu. O oficial que chefiava o grupo me perguntou se gostaria de um cavalo para retornar, respondi que queria caminhar. Os cavaleiros me escoltaram até o outro lado do portão e depois dispersaram. Alguns deles me seguiam à distância. Eu não era assim tão livre, afinal. Mas em alguma ocasião de minha vida, naquele Castelo, eu teria realmente sido livre? A vigilância era constante, ainda que eu não me atentasse para ela. A diferença é que antes eu enxergava aquilo como um cuidado de meu pai. Agora vejo como uma maneira branda de me manter em cativeiro.
Enviei a meu pai um convite para almoçarmos na sala íntima, e ele aceitou. Esse era o hábito em minha infância e Rei Aran parecia feliz em resgatar velhos costumes.
Degustamos o almoço com um bom vinho e nos estendemos na conversa até o horário da reunião do conselho. Com isso esperava desviar a atenção de meu pai de qualquer conspiração que pretendesse fazer.
Não sei até onde minhas providências ajudaram, mas a reunião transcorreu exatamente como eu desejava. Galvan chegou nervoso com a convocação, e foi surpreendido pela notícia de meu pai. O conselho tentou ponderar a situação, mas não havia o que fazer: naquela tarde eu me tornei Chefe-Em-Pessoa do exército real, e Galvan deixou a casa principal como meu subordinado.
Obviamente ele não gostou, e eu esperava que o comandante me trouxesse problemas. Os homens o admiravam e o seguiam por livre e espontânea vontade. Mas seriam resistentes a seguir uma mulher, que lhes era imposta por ser a filha do Rei, e que havia usurpado o lugar do líder que eles tanto amavam. Se eu realmente desejasse o controle sobre o exército, essa estava longe de ser uma boa maneira.
Comemorei minha promoção degustando algumas das relíquias da adega de meu pai. Rei Aran parecia feliz em contemplar minha felicidade. Juntos passamos horas planejando o futuro de nosso reino. Sem rebeldes, com um poder compartilhado e com os netos que meu pai tanto sonhava.
Aceitei o convite de meu pai para um jantar em família. A refeição foi servida no próprio escritório onde tínhamos privacidade para conversar. Meu pai estava feliz e desfrutava minha companhia.
Conversamos sobre o exército. Horas depois da troca de comando, o Rei reunia coragem para confrontar a Pedra que havia em mim. Disse que estava preocupado que os homens não me obedecessem e eu respondi que a crueldade era uma linguagem facilmente compreendida.
— Vou castigar com rigor os insubordinados. Galvan será um dos primeiros, é claro. Não é inteligente o suficiente para disfarçar sua indignação. Sair do comando é humilhante porque indica falta de confiança do Rei. Mas perder o comando para uma mulher — ainda que a futura Rainha — é ultrajante para homens como ele. Vai se rebelar, tentar manter o controle sobre seus homens. E vai ser punido exemplarmente.
Meu pai me ouviu em silêncio, e até hoje me pergunto no que ele pensava enquanto ouvia meus planos.
Irina estava em meus aposentos, exatamente como havia ordenado. Usava a túnica simples das serviçais da casa. Mandei que se despisse e me aguardasse na cama. Eu precisava dar um uso para a escrava. E, caso ela fosse uma arma de meu pai, precisava que cumprisse seu papel e dissesse ao Rei o que eu gostaria que ele soubesse.
Assim, sentei em minha escrivaninha e analisei mapas do reino. Esbocei ações contra o exército revolucionário e deixei esses planos visíveis. Se Irina se levantasse durante a noite para investigar o que eu fazia, teria coisas boas a dizer a meu pai. E se não o fizesse, as serviçais de limpeza cumpririam esse papel.
Acordei com o suor escorrendo no meio da noite. Irina dormia encolhida na beira da cama. Estava tão distante de mim que faltava pouco para cair no chão. Pensei em Lara, que dormia agarrada comigo. Entre as duas mulheres que compartilharam meu quarto do castelo, havia um mar de diferenças intransponíveis. A Princesa que amava sua serviçal havia morrido. E ainda que meu tratamento para Irina fosse uma encenação, era impossível não perceber que minha ingenuidade havia acabado, e que agora eu sabia adotar uma postura cruel com muita facilidade. A Aléssia que Lara amava, saberia como humilhar uma pessoa que não lhe fez mal algum?
Afastei as cortinas da janela para observar melhor a noite. O Monte Vermelho era uma mancha escura ao longe, só percebida pelo hábito. Fazia calor, mas ainda assim meu suor era anormal.
Agora eu tinha o comando formal sobre o exército. O que isso realmente representava? O que eu poderia fazer para conquistar o controle sobre Âmina? Como destronar meu pai? E como evitar que a maldição se cumprisse?
Algumas respostas podiam ser simples de se encontrar. Outras eram impossíveis. Mas a amargura não me ajudaria em nada. Era preciso prosseguir. Nada na minha vida tinha volta.
Retornei para a cama rezando para que o sonho que me assustara não retornasse.
A coruja bateu as asas bem à minha frente e depois voou para o oeste. Não sei porque resolvi segui-la. Corri pelos gramados do Castelo sob um céu pontilhado por milhões de estrelas. Passei pelos muros sem sequer perceber que o fazia e, em pouco tempo, chapinhava meus pés no leito do Rio Raso. Minha jornada continuou noite adentro, uma corrida agradável pelos prados pobres e ressequidos que, antigamente, haviam sido férteis e cheios de vida.
Tropecei em algumas pedras e a partir daí o caminho tornou-se lento e difícil. O terreno era acidentado e eu caminhava devagar. Percebi, assombrada, que estava nas proximidades de um penhasco e, ao alcançar sua borda, maravilhei-me com um acampamento que se estendia pela planície, a perder de vista.

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Notas:



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2 Respostas para Capítulo LIII

  1. Diana, tudo bem? Me desculpe por não estar comentando todos os capítulos. Vida de professora em começo de semestre é osso! Rrrsss…
    Mas, estou acompanhando a Alessia, e também curiosa pra saber se o rei está caindo na da Princesa.
    Essa tal Irina tá pagando os pecados de todas as vidas passadas e futuras, coitada!
    A Alex vai chegar triunfal ou vamos dar as contas pra ela? Kkkkk… Espero que seja a primeira hipótese!
    Adorando o conto! Obrigada pela história!

  2. Oi Diana,

    Tô super curiosa pra saber se o rei realmente tá caindo na de Aléssia. Não sei se a Irina é uma espiã do rei, mas coitada dela tá sofrendo pacas! E por onde anda a Alex?! Saudades dela.

    Abrs ?

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