Aléssia

Capítulo LVI

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina
>>> LVI <<<

A lua era um disco quase completo surgindo a leste quando um grupo de cavaleiros se aproximou do portão principal. Naquele fim de tarde, eu passeava sobre a muralha externa e vi com curiosidade o pequeno grupo que avançava a paisagem desértica em direção a nossa cidade.
Pararam nas proximidades do portão principal, e um homem com o estandarte de Condado Kent avançou um pouco mais. Senti meu coração faiscar, olhei em volta tentando adivinhar qual daqueles cavaleiros era meu noivo. Ocupada com a rotina e a guerra próxima, esquecera-me desse contratempo. E ainda faltava um bocado para a lua negra. Como adiaria o casamento até lá?
Dei ordens para que os portões fossem abertos, simplesmente porque não havia outra coisa a fazer. Depois desci e fui receber os visitantes. Naquele dia eu usava uma armadura completa, e senti prazer em me apresentar como de fato eu era.
A pequena comitiva estava se alinhando entre os dois portões do oeste, quando cheguei conduzindo Amora em um trote leve. Não usava o elmo e meu cabelo resplandecia como fogo no fim de tarde. O porta-estandarte havia se postado na escolta de um homem alto e forte, que trajava uma armadura negra da cabeça aos pés. Um par de olhos azuis observava-me pelas aberturas do elmo fechado, e não havia nenhuma simpatia neles. Era um homem duro e pouco cortês e, por sua posição a frente da comitiva, era exatamente quem eu temia: meu noivo.
— Princesa Aléssia de Amaranto, filha do Rei Aran de Amaranto e Chefe-Em-Pessoa do Exército Real de Âmina.
As palavras do arauto forçaram todos a se curvar ante minha autoridade. Saudei nossos visitantes com um aceno de cabeça, deixando bem claro a meu futuro marido que eu não dobraria minha espinha. Depois os acompanhei até a Casa Principal, mantendo-me calada durante o rápido trajeto.
Ordenei que os serviçais cuidassem dos cavalos e conduzi os nobres ao interior de nossa casa. Encontramos meu pai na sala principal, já devidamente ciente da chegada de visitantes. Sorriu ao ver Sir Armand, mas não foi correspondido no gesto.
Meu futuro marido possuía os cabelos quase brancos de tão louros. Seus olhos eram ornados pelas sobrancelhas mais grossas e claras que já vi em minha vida. O rosto largo tinha ossos tão duros quanto os seus modos. Era um homem seco e eu o detestei imediatamente. Recusou o gesto de boas-vindas de meu pai e, olhando-me de soslaio, disse que nossa família o havia ultrajado e que, por isso, vinha em busca de reparação.
Rei Aran não gostou das palavras, nem das ameaças embutidas nela. Condado Kent era um reino frágil, com um exército que não equiparava um quarto do nosso. Sorri por dentro: meu noivado estava desmoronando.
— A noiva de meu irmão foi capturada por soldados de Âmina. Exijo explicação e reparação imediata. E, se algum mal foi feito à moça, exijo o pagamento de indenização correspondente ao ultraje de um nobre!
Vi os olhos de meu pai se apertando num misto de dúvida e raiva.
— Não temos prisioneiros no castelo. Meu exército não capturou nenhuma mulher. Não sei de onde tirou esse absurdo, mas exijo que se cale imediatamente e, se ainda deseja casar-se com minha filha, ajoelhe-se agora e me jure lealdade.
Sir Armand franziu o cenho.
— Talvez não me tenha feito entender, por isso vou repetir — disse petulantemente, após alguns minutos — A Princesa Irina Diognart, de Altnasfera, noiva de meu irmão, o Príncipe August, de Condado Kent, foi sequestrada em Âmina quando viajava da casa de seu pai ao castelo de minha família, onde o casamento deveria ter acontecido há quatro luas.
Então foi isso o que Irina se recusou a me contar mesmo sob tortura?
O que achava que faríamos se soubéssemos quem era? O que meu pai teria feito se soubesse quem estava escravizando? E o que ele faria agora, que sabia?
Meu pai estava roxo. De raiva, medo ou vergonha? O que importava? Eu precisava me aproveitar da situação.
— Os rebeldes, meu pai — disse repentinamente, como se me importasse com a situação. Olhamo-nos com cumplicidade, e ele me deu o comando da situação. Fiz uma mesura ao príncipe-herdeiro de Condado Kent — Perdoe-nos, Sir. Temos alguns distúrbios internos e desconhecíamos os problemas causados a nossos nobres vizinhos. Mas tomarei medidas imediatas.
— Tomará? Exijo que vosso Rei assuma pessoalmente as responsabilidades da situação.
— As questões de segurança do reino me dizem respeito, Sir. Terá sua cunhada de volta e as cabeças dos culpados em uma bandeja. E esse é todo o pagamento que Âmina lhe dará.
O homem engoliu em seco, não respondeu. Talvez por eu estar armada dentro de meu próprio salão, quando ele fora obrigado a deixar as armas com os funcionários do estábulo. Meu pai aproveitou a oportunidade para cobrar-lhe lealdade.
— Muito bem, creio que isso resolva as coisas. Agora vamos ao que realmente importa, Sir Armand. Trataremos imediatamente de seu casamento com minha filha, e quando a união se consumar, poderão sair à busca de sua noiva.
Pensei em como meu pai pretendia esconder Irina enquanto o lorde permanecesse como nosso convidado, mas por sorte o homem parecia tão ansioso pelo casamento quanto eu.
— Não haverá casamento até que a noiva de meu irmão esteja intacta e segura a seu lado. Posso trazer meu exército, se é isso o que deseja, Majestade, mas o casamento só acontecerá após o mal nos ter sido reparado. E apenas se Irina estiver viva e intacta.
Não dei tempo para que meu pai respondesse. Havia algo implícito em sua fala que me permitia atacá-lo discretamente:
— Agradecemos pela oferta, Sir, mas tenho sob meu comando um exército quatro vezes maior do que o de Condado Kent.
— Creio que seu pai queira um homem para comandar esse exército, por isso a urgência do casamento. Mas posso fazê-lo antes das bodas, caro sogro, se isso for de seu agrado.
Puxei lentamente minha espada e o barulho do aço sendo liberado causou um pequeno frisson no salão. Não era elegante portar uma espada dentro de um castelo. Menos ainda desembainha-la. Mas eu nunca ligara muito para isso.
— Quer ir lá fora provar a textura do meu aço, Sir?
O desafio era real. Armand era um homem enorme e assustador, e mesmo um guerreiro experiente teria medo de enfrentá-lo. Mas eu era arrogante e confiava demais em minha própria capacidade. Até aquele dia, apenas Alexandra havia me derrotado em uma luta. E eu não pretendia dar o mesmo gosto àquele idiota.
Ser desafiado para um duelo com uma mulher era uma ofensa. Poderia ter recusado e manter fama de valoroso, caso eu fosse uma lady. Mas eu não era, e alguns homens de sua comitiva sufocavam o riso.
A resposta do príncipe foi sair e pegar a espada com seu escudeiro. Não fez questão de colocar sua armadura, uma forma de me menosprezar. Então tirei a minha, desconsiderando suas ofensas quando me dizia que eu era mulher e deveria usar a armadura para me proteger.
Retirei todas as minhas proteções e me coloquei à frente de meu noivo usando uma malha branca de algodão e calça de couro fervido. A roupa era justa e acentuava as formas de meu corpo. E eu era uma mulher bonita, fato que fazia os homens me odiarem ainda mais. Vi quando Sir Armand olhou etado meu corpo, e uma leve ponta de desejo perpassou seu olhar. Naquele instante desejou me levar para a cama. Tentaria me domar e transformar na mulher dos seus sonhos. Perceber esse desejo nele apenas me deu mais vontade de derrotá-lo.
Os homens juntaram-se em círculo e esperavam a luta começar. Os cavaleiros de Sir Armand riam e escarneciam de mim. Meus homens não diziam nada. Entrei na área de luta com a ponta de Brenda apontada para o chão. Olhei furiosamente para meu adversário e lhe fiz um gesto para que me atacasse.
— As damas primeiro — ele gritou.
Zombei, dizendo que por isso mesmo lhe dava a vênia de começar, e fui andando em torno dele com a ponta de Brenda descrevendo um círculo no chão de terra avermelhada. Ele cuspiu em minha direção e gritou palavras de escárnio, mas não me atacou. Logo meus homens riam do príncipe por sua covardia, no que foram acompanhados pelos próprios homens da escolta de Sir Armand. Sem outra opção o príncipe deu de ombros, como se pedisse desculpas por atacar uma mulher, e atirou a espada num golpe rápido contra mim.
Puxei Brenda com velocidade e sua lâmina aparou o golpe ferozmente. Sir Armand não esperava que eu tivesse força para confrontá-lo, e sua espada estava frouxa no punho. Meu oponente lutava com displicência e contava que pudesse me derrotar com rapidez. Por pouco a espada não saltou de sua mão e o tempo que ele precisou para retomar o controle da arma foi suficiente para abrir sua guarda. Atirei a ponta de Brenda rapidamente contra o príncipe, obrigando-o a saltar para longe. Seu sangue ferveu de ódio ao ser ameaçado por uma mulher, e meus homens aumentaram suas ofensas.
O sentimento de humilhação torna os homens descuidados. O príncipe investiu sua espada com raiva contra mim. Seus golpes eram fortes, mas previsíveis, e os aparei um a um sem nenhuma dificuldade. E a cada choque de lâminas o peso de Brenda representava uma vantagem, de maneira que o príncipe estava com sua arma sempre um pouco desequilibrada.
Quanto mais a luta se estendia, mais meus homens gritavam felizes. A raiva de Sir Armand cegava-o a ponto de correr atrás de mim pelo círculo de luta. Nenhum guerreiro poderia se orgulhar de lutar daquela maneira infantil, e ele se deu conta do papel tolo que fazia. Parou de repente, encarando-me com ódio, e começou a berrar ofensas. Chamou-me de puta, disse que montaria em mim na frente de meu pai e depois me entregaria para usufruto de seus homens. Cuspi em sua direção com escárnio e continuei sorrindo. Poucas coisas me davam tanto prazer na vida quanto derrotar um homem prepotente. Suas palavras não conseguiram nem minimizar o escárnio de meus soldados, e apenas meu pai pareceu atingido pela ofensa.
Continuei andando em círculos, o que o obrigava a girar comigo, sob pena de me ter em suas costas. Meu oponente agora demonstrava mais respeito, estudando meus gestos. Eu mantinha Brenda com a ponta baixa, o que me economizava o esforço de suportar seu peso, ao mesmo tempo em que convidava o inimigo a um ataque. Mas ele hesitava e quanto demais demorava em se decidir, piores eram os insultos gritados pelos homens de Âmina. Sir Armand queria que eu o atacasse, e eu poderia fazê-lo facilmente, mas preferia expô-lo ao ridículo antes de lhe impor minha vitória.
A luta seguia meu ritmo. Eram meus passos no círculo que determinavam o caminhar do príncipe de Condado Kent. Talvez por isso ele tenha parado de repente, oferecendo-me suas costas, eu caminhei rápido em sua direção. Os homens da comitiva de Sir Armand gritaram, alertando-o, e era exatamente isso o que eu queria. O príncipe girou com sua espada erguida à altura de minha cabeça. Eu trazia Brenda ainda abaixada e fiz o gesto oposto ao dele, erguendo-a rapidamente e aproveitando a guarda aberta para uma estocada na direção do peito de meu oponente. O príncipe girou o corpo bem rápido, mas a ponta de minha espada furou-o na altura do ombro esquerdo e agora uma mácula de sangue brotava em suas roupas acetinadas. Meus soldados uivaram de prazer.
Respeitar-me como um guerreiro à sua altura era a única salvação para Armand, e ele o fez a contragosto. Ergueu a espada em guarda e começou a estudar-me. Atacava apenas para me ver aparar o golpe e enfim duelávamos como dois cavaleiros. Os homens de Condado Kent começaram a gritar palavras de incentivo a seu príncipe, e os meus reagiram aumentando seu escárnio. Sir Armand lutava agora com a cabeça, e não com os nervos, e nossas lâminas se chocavam com rapidez. Sua tática era cansar-me, já que Brenda é uma espada pesada e, obrigando-me a mantê-la erguida, pretendia provocar um erro meu. Mas quem errou foi ele.
Encarando-me como um adversário real, Sir Armand passou a dominar o confronto. Empurrava-me para trás e me obrigava a gingar para encontrar espaço de manejo da espada. Percebendo a vantagem, acelerava cada vez mais seus golpes, não me dando tempo de contra-atacar. Fazia-me cambalear pelo terreno e agora era a sua comitiva que me gritava ofensas. Meus pés eram rápidos, mas os pedregulhos espalhados pela terra eram traiçoeiros e acabei escorregando. Caí com os braços abertos, mas não soltei Brenda. As narinas do príncipe se abriram furiosamente, enquanto ele se atirava contra meu peito. A ponta da espada tinha destino certo, mas fui mais rápida, girei o corpo e puxei minha espada com força pelo chão atingindo-o na altura do tornozelo.
Deixei que a lâmina de Brenda ganhasse um impulso extra por conta de seu peso. O golpe foi potente, pois eu pretendia derrubar meu oponente e em seguida saltar sobre ele. Esperava que, como todo bom cavaleiro, o príncipe usasse tiras de ferro para proteger o tornozelo, mas para meu eto senti o aço atingir carne e osso na altura dos tendões. A lâmina girou para cima e para baixo enquanto eu erguia meu corpo e o príncipe soltou um grito medonho quando seu corpo desabou sem forças.
Caiu de bruços e fez um esforço para se virar. Olhou-me com as pupilas dilatadas de ódio e murmurou algum xingamento ou maldição que não entendi. Sua espada estava caída no chão e eu a apanhei. Depois pisei em sua garganta e desafivelei seu cinto da bainha. Atirei todo o conjunto para meu escudeiro, e me virei para lhe exibir a lâmina de Brenda suja com seu sangue. Eu sorria com uma felicidade medonha, e minha aparência devia ser diabólica, porque mesmo entre os soldados de Âmina houve quem fizesse gestos para afastar o mal. Ergui a espada em triunfo e caminhei na Rota do Sol como todo bom vencedor. Os homens de Condado Kent olhavam-me incrédulos, enquanto minha tropa vibrava numa crescente explosão de orgulho. Alguns deles se afastaram, me abrindo uma passagem em direção à Casa Principal, e quando uma pequena pedra atingiu minha na cabeça. Voltei.
— Mate-me, sua puta!
Para homens como ele a morte era preferível a tornar-se inválido por uma mulher. Nunca fui uma pessoa mesquinha, e talvez me apiedasse de sua situação, se ele me pedisse com gentileza. Mas vociferava com ódio e berrou ofensas a toda minha família. Minha resposta foi uma cuspida que lhe acertou em cheio no rosto e fez os homens explodirem em riso. O príncipe certamente não era um homem cortês no trato com seus subalternos e, alguns deles, percebendo-o totalmente vencido, já não disfarçavam o prazer de vê-lo humilhado. Então ele gemeu e implorou. Rogou pela própria morte, única maneira de reparar sua reputação. Sorri com escárnio e pousei a ponta de Brenda sobre seus dotes masculinos.
— Olhe bem para mim, Armand. Sua noiva. Sua futura esposa. A mulher a cujos pés você se curvará em obediência, até o fim de seus dias. E que sua vida seja longa, infeliz, para que eu possa usufruir do prazer de vê-lo arruinado.
Cuspi novamente e o atingi na testa. Ele tentou mover as pernas, provavelmente querendo derrubar-me, mas a dor intensa o imobilizou.
Subi as escadas da Casa Principal, me curvei perante meu Rei, beijando-lhe a mão como um campeão faz a seu soberano. Os homens aplaudiam freneticamente, e assim entrei em triunfo em minha casa, deixando a euforia para trás.
Subi apressadamente as escadas de meus aposentos. O motivo de toda aquela briga deveria estar ali, cuidando de seus afazeres.

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Notas:



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2 Respostas para Capítulo LVI

  1. Oi Diana!

    Caramba que capítulo! Aléssia mostrou quem manda. Seu futuro marido duvidou da capacidade da princesa e se ferrou bonitinho!!! Esperando ansiosa pelo desfecho…

    Abrs o/

    • Acho que a princesa deu um bom passo na direção de se livrar do casório, Lins. Ainda bem que o noivo não é lá muito esperto kkkkkkkkkk

      Bjs, querida, obrigada pelo comentário.

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