Aléssia

Capítulo VII

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> VII <<<

O amargor resultante de minha conversa com Amaryllis permaneceu comigo por muitos dias. E foi tão intenso naquela tarde que, pela primeira vez, não tive vontade de ver Matilde. Permaneci em meus aposentos toda a noite, o pensamento fixo nas palavras de minha amiga de infância. No ódio agudo que suas últimas palavras desferiram. Como isso podia partir de alguém que havia usufruído das benesses de minha família por toda a vida? E que ódio era aquele que a fazia erguer a voz para blasfemar o próprio pai?

Vaguei por minha cama horas a fio e já ouvia o canto do galo quando, finalmente, meu cansaço venceu as dúvidas e adormeci. As preocupações, no entanto, infiltraram-se no meu descanso e o sonho resultante foi tão claro e cru, que acabou por determinar minhas ações futuras.

Sonhei que invadia o gabinete de meu pai e o exortava a uma conversa urgente e particular. A sós com ele, narrava-lhe, detalhadamente, a conversa de Mestre Renan com o soldado da guarda pessoal e também minha conversa com Amaryllis. Sua expressão era preocupada e, ao fim do relato, ele me beijava com afeição e agradecia a fidelidade. Depois saía. No dia seguinte a esse encontro acordo e, ao olhar pela janela de meu quarto, vejo os corpos de Amaryllis e Mestre Renan pendendo de um cadafalso, enforcados perante a população local. Com dizeres severos, um arauto lê a mensagem de meu pai, informando que não tolerará nenhum tipo de conspiração, ainda que essa nasça em sua própria casa, comandada por pessoas de sua estima. Que aquelas mortes fossem tomadas como exemplo.

Assisto a cena consternada, sabendo que sou responsável pela morte de duas pessoas amadas, mas me consolo, dizendo que eram traidores do reino. Então, deixo o quarto e ando em busca de meu pai pelo castelo. Os corredores, no entanto, tornam-se paulatinamente estreitos e sombrios. O medo me domina completamente e sinto uma urgência, cada vez maior, de encontrar meu pai. Chego tarde, no entanto: ele está em um dos calabouços e é assassinado por um homem encapuzado. Ao perceber minha presença, o homem se vira e me encurrala contra uma parede. Seus olhos são vermelhos e com uma expressão insana. Ri, ensandecidamente, e depois me agradece por tê-lo ajudado: ao fazer com que meu pai pensasse que Amaryllis e Renan eram os traidores, deixei o caminho livre para que ele usurpasse o reino.

Acordei com o sol já alto, o corpo inundado de suor. A paisagem na janela de meu quarto permanecia calma, como sempre fora. Nenhuma revolução estava a caminho.

Minhas aulas nas semanas seguintes foram tensas. Depois do que ouvi, não confiava mais nas informações de meu tutor. Mas temia deixar transparecer minhas desconfianças. Sem a presença de meu pai, minha segurança residia na aparência de normalidade, deixá-lo seguir tranquilamente com seus planos. Mantive Mestre Renan sobre intensa vigília, no entanto. E ganhei o hábito de questioná-lo, detalhadamente, em nossas aulas. Se não serviu para descobrir alguma conspiração, ao menos me deu o hábito da dúvida.

Coroando tudo isso, as mortes de meu sonho me acompanharam, sinistramente, por todos os dias que antecederam a volta de meu pai. E nem mesmo os braços de Matilde puderam apagar a aflição que isso me causava. Então, quando numa noite chuvosa, ouvi o tropel dos cavalos se aproximando dos portões, a sinistra visão de meu pai vestido em um traje negro, tão nitidamente semelhante à roupa que usava em meus sonhos, me fez optar pelo silêncio.

Foi nesse confuso estado de espírito que, semanas depois, o aniversário da morte de minha mãe me alcançou. Duas semanas antes já era possível perceber a tristeza estampada no rosto de meu pai, enquanto ordenava os preparativos para o festival fúnebre. Sua tristeza servia para aumentar a minha. Imaginava aquele homem forte, escondendo a dor pela perda de sua amada. E minha dor por Amaryllis voltou, secretamente, a meu coração: reconhecia em meu pai minha própria dor pela perda da mulher amada. Numa noite quente o encontrei sozinho no gabinete, o olhar pensativo, observando as estrelas além das montanhas. Pigarreei sem jeito, para me fazer notar, então parei na sacada a seu lado e compartilhei de seu silêncio.

Um vento leve balançava as árvores e espalhava o perfume do jasmim. A sinfonia dos grilos acompanhava o barulho das folhas e, se a gente apurasse os ouvidos, podia perceber ao longe o coaxar dos sapos. O ar fresco tornava agradável a permanência na varanda e o céu luminoso de estrelas inspirava poesia até nos espíritos mais céticos. Meu coração atormentado começou a imaginar Amaryllis, aproveitando o calor da noite, nos braços de Douglas. Muito embora eu soubesse que Mestre Renan era extremamente zeloso com a conduta da filha, ainda assim o ciúme me pregava peças, fantasiava cenas impossíveis. Senti uma solidão absurda e uma súbita vontade de conversar com minha mãe. Em algum canto de minha alma morava a certeza de que ela me entenderia. A saudade, essa minha inimiga de infância, aproveitou para se esgueirar para fora do esconderijo e molhou meus olhos com seu sumo aflitivo.

— Você também sente falta dela, não sente, meu pai?

Minha voz quebrou o silêncio de um jeito áspero e Rei Aran demorou um pouco para me responder. Afagou meus cabelos e me puxou para seus ombros, antes de dizer qualquer palavra.

— Muito.

Sua voz saiu cortada, barrenta de uma emoção contida, exatamente como a minha.

— Como ela era?

— Linda como você, minha filha!

— Eu gostaria de poder vê-la…

Meu pai não falou nada. Limitou-se a beijar minha testa e depois retomou sua contemplação noturna. Fiquei a seu lado, pensando se devia explicitar a pergunta embutida em minhas últimas palavras. O silêncio de meu pai indicava que o assunto estava encerrado, mas eu me sentia no direito de saber. Venci uma pequena batalha interna e, com a coragem acesa, finalmente falei:

— Por que não temos retratos dela pela casa, pai? As paredes são forradas de retratos de pessoas que não me dizem nada. Por que nenhum dela?

Para meu alívio sua resposta foi rápida e calma:

— Essas pessoas, que não lhe dizem nada, são seus antepassados. Tenho certeza que Renan já lhe falou, diversas vezes, a respeito de cada um deles. Quanto à sua mãe… o que os olhos não veem, o coração não sente.

Suas últimas palavras saíram turvas e me comoveram pela sinceridade. Eu conseguia entendê-lo de certa forma mas, ainda assim, desejava a oportunidade de ver o rosto de minha mãe, ter uma feição na qual pudesse pensar nas minhas noites de angústia. É realmente estranho que um reino não guarde no castelo nem uma única lembrança de sua Rainha morta.

O dia mais fúnebre do ano amanheceu chuvoso, exatamente como eu esperava. Desde pequena eu observava aquela estranha coincidência, como sempre chovia no aniversário de morte de minha mãe. De certo modo isso era uma benção, pois durante a cerimônia minhas lágrimas se misturavam às gotas e eu podia derramá-las sem culpa.

O café da manhã foi servido no salão de festas. Presentes meu pai, eu, conselheiros do reino e alguns nobres convidados. Agripina havia se esmerado no preparo de pães, bolos, tortas e outras guloseimas. Tomara ainda o cuidado de deixar a meu lado uma bandeja de pastel estrelado. Mas naquela manhã cinzenta, nem mesmo minha iguaria predileta parecia ter sabor. Empurrei uma xícara de leite morno e engoli alguns bocados de bolo de milho, nada mais. Meu único contentamento era pensar que, talvez, pudesse ver Matilde entre a população durante o cortejo.

A conversa na mesa girava em torno de política. Nenhum comentário a respeito de minha mãe, como se não estivéssemos reunidos ali por causa dela. Esse silêncio seletivo me deixou com o humor turvo. Minha impaciência tornou-se tão notória que meu pai dispensou minha presença e eu me ausentei do salão.

Permaneci em meu quarto até o momento do ritual. A chuva contínua deixava entrever apenas uma leve silhueta do Monte Vermelho. O barulho da água sobre as folhas e o cheiro de terra molhada deixavam meu quarto ainda mais tristonho. Apurando os ouvidos, era possível perceber o distante som da água em telhados. Lembrei-me do Povoado. O que aquela gente estaria fazendo agora? O que Matilde estaria fazendo naquele exato momento?

De Matilde para Amaryllis foi apenas um escorregão de pensamento. Em anos anteriores, naquela data, minha amiga tinha o cuidado de não me deixar sozinha um só instante. Ela sabia, melhor do que ninguém, o quanto aquele dia significava para mim. Sabia da dor ácida que subia forte, ainda que, inexplicavelmente, não aparecesse de forma tão nítida em todo o resto do ano.

Às doze horas em ponto os sinos começaram a soar. Vesti minha capa cerimonial e desci em passos moderados. Tomei meu lugar ao lado de meu pai e o cortejo desfilou do prédio principal ao cemitério. Abaixei meu capuz e deixei que as águas lavassem meu rosto durante o trajeto, os cabelos escorridos lambendo suavemente meus ombros. Com a cabeça baixa me distraí, observando o barro subir a cada uma de minhas passadas. Meus sapatos negros ganharam nódulos amarronzados e a barra da calça logo estava tingida no mesmo tom. Em dias normais, aquele trajeto seria feito em cerca de quinze minutos. Mas no passo lento do cortejo, e com a dificuldade da terra molhada, levamos cerca de quarenta. Meu pai foi o primeiro a se aproximar do mausoléu. Parei em frente a ele, no lado oposto do túmulo, com meu capuz erguido, como exigia o cerimonial.

Vestido em suas roupas sacerdotais, Rei Aran desembainhou a espada e deu início ao culto. As palavras sagradas foram ditas e repetidas em coro. Então, a espada do Rei foi colocada sobre o túmulo da Rainha e os conselheiros do reino entraram. Traziam bandejas com as comidas prediletas de minha mãe. Travessas e travessas de comida foram descobertas e colocadas sobre o mausoléu. Tão logo as tampas foram retiradas pelos serviçais, os pratos, elaboradamente decorados, foram destruídos pela chuva forte, a pasta de comida escorrendo pelo mármore, misturando-se à terra, alimentando a terra. Em seguida, vieram os representantes das Casas Nobres com seus ricos presentes. Joias e roupas finas eram cuidadosamente colocadas aos pés do túmulo, formando uma montanha de rica ostentação. O brilho das joias ficava intenso com a água e depois começava a se apagar, lentamente, com os respingos de terra molhada. O espetáculo sempre me pareceu bonito, mas hoje sei o quanto era ofensivo a nosso povo. Aquele mesmo povo proibido de entrar no castelo e chorar por sua amada Rainha.

A última oferenda era minha. Encoberta pelo capuz cerimonial depositei flores a toda a volta do túmulo, enquanto meu pai entoava uma cantiga de lamento. Quando o círculo de flores estava completo, o Rei pronunciou as últimas palavras, imediatamente repetidas por todos os presentes. Começou então o momento mais difícil: receber os cumprimentos. Um a um, os nobres e serviçais desfilaram a nossa frente, reverenciando nossa dor. Eu temia pelo momento em que veria Amaryllis mas, pela primeira vez, ela não estava presente.

O período de chuvas passou junto com minha dor. A vida segue, e com a ajuda dos braços de Matilde, isso foi mais fácil do que nos anos anteriores. Minhas escapadas noturnas já haviam virado uma rotina diária, a tal ponto que não precisava mais deixar sinais para Lara.

Os dias, porém, ganharam um constante tom tenso. Com a infância, definitivamente, deixada para trás, as questões do reino me preocupavam. E o convívio diário com Mestre Renan, as constantes arguições às quais o submetia, nada conseguia reestabelecer a confiança que eu tinha nele. Além de que, nossos encontros traziam-me à memória a amarga conversa com Amaryllis.

O tempo passava a galope. Ganhei maturidade e conhecimento, andando pelo Círculo Intermediário na companhia de Matilde. Algumas vezes caminhava sozinha por lá, já devidamente adequada à população. O único cuidado era usar vestimentas masculinas simples e surradas. Consegui-las não era difícil, com a devida ajuda das criadas da lavanderia. E quanto mais andava ali, mais me abismava que tantas coisas acontecessem no quintal de minha casa, sem que eu tomasse o menor conhecimento.

Creio que tenha sido essa percepção, esse abismamento, que começou a me dar curiosidade sobre como seria a vida lá fora, naquele mundo sem muralhas que contivessem a visão e a alma. Matilde, no entanto, me desencorajava quando eu tocava no assunto. Dizia que era perigoso sair sem estar preparada. Entendi por esse conselho que eu necessitaria de uma escolta, o que realmente só seria possível com a autorização de meu pai. Não havia como mobilizar um grupo de soldados, por menor que fosse, sem que ele tomasse conhecimento.

Dessa forma, não demorou para perceber que não poderia contar com ajuda para deixar minha casa. O problema é que não me sentia preparada para sair sozinha. Cogitei a hipótese de pedir a Mestre Renan que me acompanhasse, mas a dúvida sobre sua fidelidade me fez desistir. Estar a sós comigo, fora do castelo, seria a ocasião perfeita para qualquer um que planejasse algo contra meu pai.

A solução era sair sozinha. Enfrentei noites de angústias até me convencer que o melhor era arriscar logo. Quanto antes fosse, quanto antes voltaria. Minha intenção não era ir longe, apenas galopar pela área em torno do castelo, conhecer as fazendas que abasteciam nossa cozinha. Um passeio de algumas horas, não mais do que isso.

Em uma manhã, às vésperas do inverno, selei Amora, com quem há muito não cavalgava, e a levei a trote ligeiro na direção do portão principal. Já de longe gritei uma ordem para que os portões fossem abertos e qual não foi minha surpresa, quando nada aconteceu.

Parei diante do portão fechado e berrei impropérios à sentinela mais próxima. Depois de alguns minutos, o rapaz resolveu descer de seu posto para conversar comigo. Veio inseguro, cabeça baixa, aparentemente criando coragem para enfrentar minha raiva clara, translúcida.

Chegou ao lado de meu cavalo, fez uma reverência demorada e depois bateu continência, à qual não me dei ao trabalho de responder. Então, com a voz ligeiramente trêmula, disse que tinha ordens para não me deixar passar.

Achei que se tratasse de alguma piada. Ou de algum mal-entendido, já que a proibição existia apenas até que me fizesse Conselheira, coisa que ocorrera há muito tempo. Tentando encontrar alguma calma em mim mesma, expliquei rapidamente meus argumentos ao rapaz. O soldado, no entanto, não mudou sua postura e continuou firme: não podia me deixar passar.

— Perdão, Princesa Aléssia, mas não posso me insubordinar contra as ordens que recebi.

— Não me importam suas ordens, soldado! Não me importa quem lhe deu uma ordem estúpida como essa, eu estou lhe dando outra. Abra esse portão imediatamente!

O jovem abaixou a cabeça, num gesto submisso, mas não obedeceu.

— O que há com você, seu estúpido? Prefere o castigo? Abra logo esse portão, santo homem!

Sua resolução em não obedecer me etou. E, pela primeira vez, vi-me em um impasse de autoridade. Como poderia governar um reino, se não me obedeciam nem em ordens simples como aquela? Desembainhei minha espada e saltei da montaria. O jovem soltou um suspiro aflito quando encostei a ponta da lâmina em sua garganta. Mas, apesar do desespero visível em seus poros, manteve-se firme na postura de não abrir o portão. Seu medo aparecia espalmado em todo o seu corpo. Por que então não me obedecia? Uma ideia sinistra passou pela minha cabeça. Apenas uma ordem mais forte do que a minha o faria arriscar a própria vida dessa maneira. Recolhi a espada.

— Por que você não pode abrir o portão, soldado? Quem lhe deu uma ordem como essa?

Em resposta, o soldado apenas levantou o rosto e me encarou. Lágrimas brotavam em seus olhos e suas pernas tremiam. Ele era apenas um menino, cerca de dois anos mais novo do que eu. Ordenei que retomasse seu posto e lhe assegurei que nenhum mal lhe aconteceria. Então, montei meu cavalo e parti em disparada para o castelo.

 



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.