Aléssia

Capítulo VIII

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> VIII <<<

Como de hábito, meu pai estava em seu gabinete, ladeado por Don Otto e Sir Alencar, seus principais conselheiros. Entrei sem pedir licença e nem esbocei nenhuma mesura cortês, como mandava a etiqueta. Apenas parei poucos passos depois da porta, a postura tensa, o olhar furioso. Meu pai largou seus livros de contabilidade e me olhou com certo assombro.

— Esqueceu os bons modos, Aléssia?

Rei Aran sempre fora exigente com minha educação. Embora carinhoso, não admitia faltas e sabia castigar com precisão. Ainda assim eu não o temia.

— Preciso lhe falar, meu pai.

— Isso não é motivo para entrar em meu gabinete sem autorização e, muito menos, para faltar com cortesia a nossos conselheiros.

— Talvez seja. Não conheço ainda todos os envolvidos no caso, embora saiba, com certeza, que o senhor endossa esse absurdo. Francamente, não sei de que cabeça partiu tal ideia, e sendo esses seus conselheiros, posso pressupor que tenham urdido coisas nefastas em vossa cabeça, meu Rei.

Meu pai se levantou e caminhou lentamente em minha direção, com um olhar grave e severo.

— Do que você está falando, Aléssia? Que acusações graves são essas?

— Por que não posso deixar o castelo? A Tradição já foi seguida, passei os anos de formação resguardada nesses muros, mas agora exijo liberdade de ir e vir! Ou, por um acaso, sou prisioneira em minha própria casa?

Sua expressão tornou-se mais calma e, com um sorriso carinhoso, tentou me convencer do contrário.

— Mas que absurdo é esse, minha filha? Você não é prisioneira em lugar algum, pode ir para onde quiser!

— Acabo de tentar sair e minha passagem foi impedida. E pela forma como os soldados agiram, a ordem só pode ter partido de uma pessoa.

Por alguns instantes o silêncio pesou entre nós. Rei Aran olhou-me com expressão grave e, depois, encarou seus conselheiros. Don Otto fez menção de dizer algo, mas calou-se a um gesto de meu pai.

— Você não está proibida de sair do castelo, minha filha, apenas não quero que saia sozinha e sem escolta. Por isso dei ordens de que não lhe deixassem passar. Dessa forma, caso desejasse sair, você teria que me pedir autorização, como faz agora.

— Preciso de autorização para sair dos muros do castelo e você diz que não sou prisioneira? Ora, meu pai, até os gatos do mato têm mais liberdade do que eu!

— Gatos do mato são seres desprovidos de importância no mundo. Já você, Aléssia, é a futura Rainha de Âmina. Fora desses muros, existem muitas pessoas interessadas em usurpar o poder. Não quero perder você como perdi sua mãe.

Minha mãe. Uma coisa que eu sabia desde a infância, é que meu pai não gostava de falar sobre ela. Mencioná-la em nossa conversa, revestia toda a situação com um caráter de grave seriedade. A morte de minha mãe, esse mistério que por vezes enchia minhas noites com pesadelos, tocou-me com um medo profundo. Novamente a ideia de deixar aqueles muros me assombrou e, por um segundo, pensei em me curvar e sair, dando a discussão por encerrada. Mas até quando eu poderia fugir da realidade? E como poderia governar meu reino sem conhecê-lo? Foi essa última pergunta que fiz a meu pai, muito embora meus lábios esboçassem outras palavras.

O Rei não me respondeu de imediato. Olhou, sequioso, para seus conselheiros, como se precisasse de ajuda para lidar com a própria filha. A cena não era nada usual e me causou angústia. Então, Don Otto pigarreou e pediu permissão para falar.

— A jovem Aléssia possui vossa inteligência superior, meu Rei, e está correta em seu raciocínio. Para governar, precisará de experiência e não apenas conhecimento teórico. O ponto vulnerável de Âmina é, exatamente, não haver um sucessor à vossa altura, Majestade. A Princesa já ocupa uma cadeira no Conselho há quase três anos e Sir Renan não cansa de elogiá-la. Creio que seja chegado o momento de Vossa Majestade treinar pessoalmente sua filha, assumi-la como seu braço direito no governo. Com vocês lado a lado Âmina será indestrutível. E Aléssia estará preparada para assumir o reinado com sapiência, quando chegar o momento. E dessa forma, meu Senhor, vossas conquistas serão perpetuadas através de gerações e não serás jamais esquecido por seu povo.

Aran ouviu atentamente cada palavra e então assentiu com um leve movimento de cabeça.

— Está bem. Dentro de um mês farei uma inspeção ao povoado principal e você irá comigo —disse-me com seriedade. — A partir de agora, me acompanhará em algumas expedições. Inicialmente as mais simples e, à medida que esteja preparada, começará a me acompanhar em todos os meus compromissos externos. É bom, também, que se familiarize com as visitas aos reinos vizinhos. Mas de qualquer maneira, Aléssia, quero que me prometa que não tentará sair do castelo sem minha companhia. Pelo menos, não até conhecer bem as regiões próximas do castelo. Eu mesmo me encarregarei de levá-la a alguns passeios, vez por outra. E garanto que será bem divertido.

Completou as últimas palavras com uma leve piscada de olhos e depois se aproximou para um gesto de carinho. Fiz-lhe uma mesura e prometi cumprir suas exigências. Depois agradeci por ter atendido meu pleito e me retirei.

Não me afastei completamente, no entanto. Por algum motivo mórbido, senti curiosidade sobre o que falariam em minha ausência e colei o corpo rente ao batente da porta. Ouvi com clareza a voz de Sir Alencar:

— O mesmo temperamento atrevido da mãe…

— Vou dar um jeito nisso. Meu sangue falará mais alto. Vou ensiná-la a ver o mundo através de meus olhos.

A porta fechou ruidosamente. Se fechada pelo vento ou por mão humana, jamais saberei. Mas achei por bem correr, antes de ser flagrada ali pela criadagem.

Duas semanas se passaram, até que meu pai cumprisse a promessa que me fez. Durante esse período fizemos reuniões diárias em seu gabinete. Tendo à sua frente o mapa do reino, explicava-me, detalhadamente, a situação política de cada povoado, cada vilarejo. Só quando fui capaz de repetir de memória a localização e o nome de cada localidade, bem como sua situação econômica e o nome de seu líder, só então começamos a preparar nossa expedição.

Nos dias que antecederam nossa saída, os cuidados de meu pai comigo foram redobrados. Convocava-me para longas caminhadas com ele. Íamos para o bosque e, depois de ter certeza de que não havia ninguém por perto para nos ouvir, começava a me instruir naquilo que ele chamava “nosso legado familiar”.

— Esperei ansiosamente por esse momento, Aléssia.

Foi assim que começou a conversa em nossa primeira “audiência secreta”, criando um ar solene para tudo o que dissesse depois.

— Você cresceu tão rápido e eu tão envolto com a política, não tive tempo de perceber isso, minha filha. Perdoe-me por essa falta. Na verdade, eu já deveria ter lhe iniciado nesses assuntos há um tempo. Mas até hoje olho pra você e enxergo a menina que corria para o meu colo, quando eu voltava de minhas expedições externas. Só quando invadiu meu gabinete, naquele dia, foi que me dei conta de que você é uma mulher. E que está preparada para assumir seu lugar em nossa família.

— Cresci consciente de que tenho um papel a cumprir, meu pai. Desde pequena, o senhor sempre deixou claro o que me esperava. E meu tutor tem sido muito hábil em me preparar para o futuro.

— Fico feliz em ouvir isso, minha filha, porque o que tenho para lhe dizer é extremamente importante. A partir de hoje vou cuidar, pessoalmente, de sua iniciação. Para que você possa, de fato, exercer o Poder quando ele chegar às suas mãos.

Estanquei os passos e olhei etada:

— Iniciação? De que você está falando, meu pai?

— Estou falando do cerne de nossa família, minha filha. Daquilo que faz com que eu seja o Rei e você a Princesa. Nunca se perguntou por que somos nós que temos o Poder e não outra família qualquer?

Sei o quanto isso parece estúpido, mas eu nunca me perguntara. O mundo a minha volta parecia preciso e seguro, por que deveria questioná-lo? Cresci sendo chamada de Princesa e ciente de que meu pai era o Rei. Era dele o comando sobre todas as coisas e me parecia natural que assim fosse. Quem, se não meu pai, em todo seu esplendor e força, poderia comandar o mundo? Mesmo entrando na vida adulta, ainda enxergava o mundo através de meus olhos de menina. E hoje eu sei o quanto isso pintava de cor-de-rosa um mundo que, na verdade, era tristemente sombrio.

Além do mais, cresci com mestre Renan contando como minha família havia conseguido a posse e o governo daquelas terras. Meu pai, no entanto, não aguardou minha resposta:

— Quando nossa família chegou aqui, essa terra não tinha dono. Era apenas um amontoado de fazendas e todos brigavam pela posse da terra. Nossos antepassados conquistaram seu quinhão, mas viviam ameaçados por outros proprietários. Não havia lei além da força bruta. Hoje você tinha terras e alimento, amanhã não tinha nada. No outro dia, poderia ter tudo de volta, se conseguisse força o bastante para derrotar algum proprietário. Muito sangue foi derramado aqui, muitos de nossos entes queridos deram a vida por um pedaço dessa terra, que hoje é completamente nossa.

— Nossa família estabeleceu a ordem e criou os limites do reino, não é isso? Mestre Renan já me contou essa história mais de mil vezes.

— Mas ele não contou tudo. Há um segredo do qual apenas os reis podem ter conhecimento. Um segredo passado de pai para filho no momento da transição de poder. É nesse segredo que vou iniciá-la, minha filha, para que quando chegue o momento, você assuma o Poder que lhe pertence por direito.

— Se sua intenção era despertar minha curiosidade, saiba que fez isso muito bem, meu pai.

Rei Aran abriu um largo sorriso e me abraçou. Caminhamos por quase uma hora, dando imbricadas voltas. Eu pensava conhecer aquele bosque como a palma de minha mão, tantas foram as vezes que o desbravei em minhas aventuras infantis. Mas naquele dia, fiquei desorientada com o caminho de meu pai e, para meu eto, chegamos a um lugar onde eu nunca tinha ido. Era uma região com árvores negras muito altas e próximas umas das outras. Parecia outro bosque, dentro daquele que eu conhecia tão bem. Estavam dispostas como um longo muro, uma divisa entre o conhecido e o desconhecido. Paramos naquele limiar e meu pai me fez colocar minha mão em seu peito e repetir as palavras que ele iria me dizer.

Não sei bem porque, mas titubeei ante esse pedido. Ele me fitou sério e me assegurou que era absolutamente impossível seguirmos adiante, sem que eu fizesse um juramento. E que sem conhecer o segredo, seria impossível eu receber o trono, mesmo sendo filha do Rei. Fiquei constrangida com minha tolice. Era meu pai quem me pedia isso. Por que essa sensação de que não devia aceitar? Por que esse medo de me meter em uma enrascada, da qual seria impossível sair? Coloquei minha mão em seu peito e repeti as palavras:

— Juro, pelo coração de meu pai, nunca revelar a localização do Bosque Sagrado. Juro, pelo coração de meu pai, proteger a Pedra Fundamental de nosso reino. Juro, pelo coração de meu pai, entregar minha vida ao Poder que agora recebo.

Rei Aran proferiu as palavras sagradas e beijou minha testa. Depois segurou minha mão e, juntos, cruzamos a fronteira entre os dois bosques.

O Bosque Sagrado era sombrio, como se o sol nunca brilhasse por ali. Não havia nenhum som. Nenhuma folha se movia, nenhum pássaro cantava. Nossos passos pareciam abafados e morriam no ar, tão logo surgiam. Senti um arrepio na espinha e fiz menção de voltar. As mãos firmes de meu pai, no entanto, deram-me segurança e eu avancei. A cada passo, o ar se tornava mais frio e a atmosfera mais soturna. Não sei quanto tempo caminhamos, perdi completamente minhas referências. Na verdade, a paisagem me parecia aflitivamente igual, como se não saíssemos do lugar em momento algum. Mas, de repente, meu pai parou.

— É aqui.

— Tem certeza? Parece que não saímos do lugar.

Ele riu carinhosamente:

— Eu disse a mesma coisa a meu pai, quando ele me trouxe aqui pela primeira vez. Você me dá muito orgulho, minha filha. Tenho certeza de que só me dará alegrias. Você é o maior presente que a vida me deu. Nunca se esqueça de que seu pai lhe ama profundamente.

Completou suas palavras com um beijo muito carinhoso em minha testa. Meu pai era sempre muito carinhoso comigo, mas naquele momento, em particular, suas palavras e gestos tiveram tal intensidade que me fizeram chorar. Disfarçadamente sequei minhas lágrimas, enquanto ele tirava sua cota de malha. Descobri que por baixo da roupa de guerreiro, o Rei vestia uma malha fina, mas resistente, que lhe cobria completamente o peito. Os braços ficavam descobertos e foi por esse motivo que ele tirou sua roupa de metal.

— À primeira vista isso parece etoso, eu sei. Mas confie em mim, como confiei em meu pai, que confiou no pai dele e assim sucessivamente. Esse é o grande segredo de nossa família, Aléssia, nosso maior tesouro, a melhor herança que posso lhe dar. O nome disso é Poder. Poder em forma bruta. Poder absoluto que, usado corretamente, lhe dará aquilo que você bem quiser.

Terminou suas palavras, esticando o braço esquerdo em minha direção. Não contive o grito de horror ao ver aquilo que, num primeiro momento, me pareceu a cicatriz de uma grande ferida de guerra. Depois, no entanto, percebi que o padrão era simétrico, perfeito. Era um desenho feito intencionalmente. Um quadrado contendo um círculo em seu interior. Dentro do círculo, um desenho que parecia o esboço de uma vaca com chifres. Enquanto eu observava, a marca no braço de meu pai começou a pulsar. Primeiro de forma imperceptível, depois com uma intensidade maior e ganhando, paulatinamente, uma tonalidade vermelhosangue.

— Veja — disse enquanto apontava algum lugar a nossa frente. Quando virei o rosto, encontrei uma enorme rocha num lugar onde, segundos atrás, não havia nada. A um sinal dele nos aproximamos. Era uma enorme rocha monolítica em cuja superfície estava gravado o mesmo símbolo do braço de meu pai. O Rei esticou seu braço e então as duas marcas começaram a pulsar de forma sincrônica.

— Eis o Poder. Esta é nossa magia, nossa fonte inesgotável de força.

Comecei a naufragar em um mar de dúvidas. Queria perguntar algo, mas não sabia nem por onde começar. E ainda precisava controlar minhas pernas, que tinham toda a intenção de sair correndo dali. Uma força medonha parecia estar próxima. Pior do que isso: parecia querer se apossar de mim.

— Coloque suas mãos sobre a Pedra, Aléssia, sinta a vibração, sinta o Poder que ela emana.

Ele não podia estar falando sério. Tocar… aquilo?

Deixe de ser tola, é apenas uma Pedra, respondi mentalmente a meu medo irracional. Meu pai olhava-me com seriedade, esperando que eu seguisse suas instruções. Hesitante, estiquei minha mão direita e encostei de leve a superfície da rocha. Foi como se me aproximasse de um campo magnético: a Pedra exerceu uma força enorme e começou a me puxar. Tentei afastar a mão e não consegui. Aos poucos, todo o meu corpo começou a ser puxado, enquanto um zumbido agudo surgia em meus ouvidos. Eu não via, nem ouvia mais nada além da Pedra. Não havia mais bosque, nem meu pai. Eu estava sozinha com uma força desconhecida e, aparentemente, descomunal. Quis gritar por socorro e não fui capaz, nem sequer, de separar meus lábios. Minhas pálpebras vibravam alucinadamente e acabaram por se fechar em definitivo. Mergulhei no escuro, no silêncio, na solidão.




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