Aléssia

Capítulo X

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> X <<<

A ansiedade da viagem ressurgiu firme na minha cabeça, tudo o mais despencando para fora da consciência. Lara auxiliou-me com o delicado uniforme militar, tão complicado de vestir. Ganhei o uniforme há aproximadamente dois invernos, mas se o tinha vestido três vezes era muito. E pelo menos uma dessas vezes foi por vontade de me olhar com o traje de gala, e não por necessidade.

Cheguei ao salão de refeições devidamente paramentada, mas fui surpreendida pela notícia de que meu pai desejava me ver antes de nosso desjejum. Encontrei-o em seu escritório, em armadura completa, como se fosse para uma batalha.

— Sente-se, minha filha. Há algumas coisas que você precisa saber antes de sairmos.

Obedeci a seu comando e me acomodei em uma cadeira de espaldar alto. Ele fechou a porta, colocou uma cadeira a minha frente e se sentou antes de continuar:

— Lembra quando você era pequena e passava horas me interrogando como era a vida lá fora? Sempre que eu voltasse de uma viagem, por menor que fosse, você me atacava com perguntas e mais perguntas, curiosa com um mundo que, no seu pensamento de criança, era rico, colorido e aventureiro. Lembra-se disso, Aléssia?

— Como poderia esquecer, meu pai?

— Pois, finalmente, chegou o momento de conhecer aquele mundo com o qual você sonhava, minha filha. Mas devo adverti-la de que ele é muito diferente do mundo que você criou em sua pequena mente infantil.

Parou por alguns momentos, olhando a paisagem lá fora. Julguei que talvez buscasse as palavras corretas para continuar.

— Lembra do que lhe falei sobre nossa família, Aléssia? Lembra-se da Pedra? Nós não somos iguais aos outros.

Rei Aran parou por mais alguns instantes. Parecia que a conversa não era fácil para ele. Como demorasse a continuar, julguei que talvez devesse dizer algo.

— Como assim, não somos iguais aos outros, meu Rei?

Sua expressão séria me encarou.

— Somos destinados ao poder, minha filha. E, para mantê-lo, somos mais fortes e inteligentes do que a maioria. E mais do que isso: somos merecedores do poder que temos.

— Por que diz isso agora, meu pai?

— Porque a vida fora de nossos muros foi destinada, pelos Deuses, a todos aqueles que cometeram terríveis faltas em suas vidas passadas.

Mais uma vez, senti que a conversa com meu pai carecia de sentido. Embora eu conhecesse os Deuses desde pequena e já conhecesse os Mistérios, o suficiente para realizar pequenas cerimônias, pareceu-me um pouco exagerado que viver fora dos muros fosse algum tipo de punição.

Como se adivinhasse minha dúvida, o Rei me segurou ternamente pelos ombros e advertiu-me:

— Acredite no que estou lhe dizendo, minha filha. Você verá com seus próprios olhos. Eu posso distribuir a justiça terrena, mas quem sou eu para comandar a justiça divina? Só o que está a meu alcance é tentar minimizar o sofrimento desses infelizes. Mas, mesmo isso, tem que ser feito com parcimônia, pois, se é vontade dos Deuses que eles sofram, nem mesmo eu tenho poder de alterar esse rumo.

Selou a conversa com um beijo em minha testa e se levantou. Eu queria dizer um monte de coisas, perguntar um monte de coisas, mas as palavras me faltaram.

O desjejum foi em silêncio, como se a conversa no escritório tivesse gerado um pacto entre nós. Do lado de fora a cavalaria estava pronta, aguardando apenas nosso comando para partir.

Encontrei Amora vestida com as cores de nosso reino. Estava linda, como eu nunca a havia visto.

— Ficou linda, não é? Mandei fazer especialmente para esse dia. Achei que você ia gostar. Além do que, a futura Rainha merece uma montaria com indumentária digna.

As palavras de meu pai sorriram através da ternura com que as disse. Montamos nossos animais e tomamos a frente de nosso pequeno exército. Olhei para trás, excitada: os soldados alinhados, as bandeiras e estandartes hasteados, o colorido vivo de nosso reino ondulando sobre o solo, como um só corpo, um organismo pronto para partir. Sentia-me uma criança realizando seu sonho mais caro! E provavelmente essa era minha fisionomia, pois o Rei me sorriu com enorme satisfação e contentamento e, através de seus olhos, eu vi a menina que fui outrora.

— Abram os portões, deem passagem ao Rei!

Ao som dessa ordem, as pesadas folhas de madeira rangeram, tremeram e se afastaram. Então, como se sonhasse um sonho bom, vi o caminho surgindo do lado de lá, e os dois portões seguintes, em movimento sincrônico, abrindo-se também. Meu pai deu um grito e fez um aceno de mão, então esporou levemente seu cavalo e todo o exército começou a se mover, como o único corpo daquele ser vivo que eu chamava Meu Reino.

Sons de Viva o Rei vieram do alto da murada quando começamos a trilhar o caminho que nos conduzia à área livre. Pela fresta dos portões alinhados eu via uma faixa verde que crescia, se alargava, até que era tudo o que eu tinha à minha frente: uma enorme amplitude verde que, daquele dia em diante, eu chamaria de Liberdade.

Nosso tropel passou veloz pelos portões, atravessou um pontilhão, cuja existência eu desconhecia, e mergulhou veloz na estrada principal. O Rei esporou com força seu animal e colocou um ritmo ainda mais acelerado, tão logo deixamos completamente o castelo. Minha primeira sensação foi de que havia mais luz ali do que dentro dos muros. Meus olhos ardiam e senti leve tontura. Abaixei a cabeça e evitei olhar para os lados, embora a curiosidade fosse absurda. Mas da maneira como me sentia, se erguesse um pouco que fosse a cabeça, provavelmente perderia o equilíbrio e cairia de Amora.

Foram quinze minutos de galope, até que meu pai segurasse as rédeas e trouxesse toda a tropa para um ritmo de passeio. Olhou sorridente para mim e fez um gesto largo em todas as direções, como se quisesse me presentear com o prazer de olhar.

Sem barreiras, sem entraves, sem frestas: olhar.

Sentia minha alma perdida em tanto espaço, tinha medo de perder o controle das rédeas de Amora. Habituada a cavalgar desde criança, estranhamente me sentia inapta para erguer a cabeça e apreciar a paisagem. Por mais que eu tivesse passado minha vida imaginando como seria estar lá fora, por mais que imaginasse o que poderia ser, enxergar além das muralhas, em momento algum, minha imaginação havia se aproximado da experiência real.

Por todos os lados havia um tormento verde, e bem à nossa frente, imponente em sua distância, o Monte Vermelho era o único limite para os olhos de quem quisesse ver. Um senso de profunda insegurança se apoderou de mim e, naquele momento, senti-me grata a meu pai, por não ter me permitido sair sozinha. Eu fora uma criança tola que teimara com aquele que sabia o que era melhor para si.

A luz ainda feria meus olhos e eu tinha certa dificuldade de mantê-los abertos. Carinhosamente o Rei observava minhas reações. Parecia aguardar que eu dissesse algo, depois de toda uma vida contida entre muros. Deixei que o assombro aflorasse no rosto, ao lado de um longo e emocionado sorriso.

— Obrigada, meu pai. Obrigada por tudo, absolutamente tudo!

Queria poder abraçá-lo, apertar meu rosto contra seu peito e deixar que ele sentisse, no bater de meu coração, o quanto minha gratidão era pulsante, viva.

­As primeiras horas daquela jornada foram de descobertas maravilhosas. Flores, tons de verde, pássaros, pequenos animais, todos completamente desconhecidos para mim. E o sentimento de gratidão, por ter crescido protegida, se transformou em uma leve melancolia, por todas as belezas das quais eu havia sido privada. Meu pensamento ia se perdendo em hipóteses, tentando imaginar como teria sido minha vida, se me fosse permitido sair do castelo desde a infância. Mais do que isso: tentei imaginar como seria a vida de uma criança nascida e criada fora daquelas muralhas.

Meu pai aumentou o ritmo do trote tão logo meu assombro diminuiu. Olhei para trás e vi novamente os cavalos enfileirados, soldados paramentados, bandeiras hasteadas, estandartes erguidos, um festival de luz e cores que eu jamais esqueceria.

Galopamos aproximadamente três horas e então meu pai freou seu animal, ergueu o braço direito e deu ordem de desmontar. A cavalaria começou a formar um círculo a nossa volta e os soldados se colocaram em preparativos apressados. Em poucos minutos, meu pai e eu estávamos confortavelmente sentados em uma tenda, protegidos do sol. Duas pequenas mesas haviam sido montadas, a maior delas servindo de aparador para as comidas e bebidas que nos traziam. Meu corpo, cansado pelas horas de cavalgada ininterrupta, agradeceu quando sentei em uma das cadeiras de campanha que estavam armadas na tenda. Era mais confortável do que eu jamais poderia supor e, naquela primeira demonstração, não achei a vida em campanha desagradável. Ao contrário, sendo ainda fresco o sabor da novidade, achei que eu seria capaz de passar longas temporadas fora do castelo.

Tão logo o corpo se recuperou da montaria, saí da tenda. Tendo, finalmente, descoberto o sabor da visão ampla, as paredes me afligiam. Eu queria ver. Queria enxergar até onde a vista alcançasse. Meu olhar passou incerto pelo acampamento, sem se importar nem registrar as cenas próximas. Interessava-me a distância. O Monte Vermelho, mais próximo e nítido. O castelo ao longe, apenas uma silhueta fina sumindo da paisagem. Todo o mais era campo, era verde, nenhum sinal humano.

Foram apenas sessenta minutos de descanso. Logo em seguida, os homens corriam desarmando o pequeno acampamento. Olhei em volta admirada com aquele balé. Os objetos passando de mão em mão, os cavalos sendo reabastecidos com suas cargas. Então notei que, ao fundo, um pequeno grupo de soldados ainda comia, mas foram interrompidos por um capitão, que chutou o prato de suas mãos. A cena me horrorizou e apontei para que meu pai também visse. Aquilo não teria acontecido se ele estivesse olhando, eu sabia.

Para minha surpresa, entretanto, Rei Aran se limitou a erguer os ombros, num gesto de descaso.

— O exército não é lugar para lerdos. É bom que eles aprendam logo isso. Agora monte, temos que dar o exemplo. — E montou em Azulão.

Obedeci a sua ordem. Do alto de Amora, continuei olhando aqueles soldados. Tinham certo ar cansado e faminto. Talvez não fossem talhados para a vida no exército.

Corremos estrada por cerca de quarenta minutos, até que o primeiro povoado pudesse ser avistado. Uma sombra imprecisa na distância com alguns novelos de fumaça. Imaginei as mulheres cuidando de suas cozinhas, as crianças brincando, os homens ocupados cuidando dos animais e da plantação. Construía, em minha imaginação, casas parecidas com as do Círculo Intermediário, embora tivesse dificuldade em criar uma imagem das casas sem as muralhas confinando a paisagem. Em contrapartida, meu sentimento de amplitude e imensidão só fazia crescer, um desejo quase incontrolável de esporear meu cavalo e me perder por aí, correr sem destino, desbravar um mundo desconhecido.

A realidade foi tomando forma, à medida que nos aproximávamos do pequeno vilarejo. Casas, com uma suave cor de terra, apareciam ordenadas em quatro fileiras principais. Fora desse núcleo existiam algumas construções maiores e ao lado destas ficavam as plantações. À distância, a paisagem ainda me parecia prosaica e agradável. Pouco depois consegui enxergar as pessoas, inicialmente pequenas como se vivessem num formigueiro, mas rapidamente ganharam cores e traços humanos. E então, a ilusão começou a me abandonar, com um leve chocalhar de ossos, um estremecimento no estômago. As casas pareciam feitas de lama socada ou qualquer outra coisa muito próxima disso. Os telhados, precariamente cobertos de palha, não seriam capazes de resistir a uma chuva mais forte, era fácil perceber. Lembrei da conversa com meu pai pela manhã e me perguntei se ele era capaz de aceitar aquilo com naturalidade.

— Pai, você já esteve aqui antes?

— Várias vezes, respondeu com a voz sem emoção, de quem não estava vendo nada demais.

A essa altura alguns soldados nos ultrapassaram e ganharam distância. Foram seguidos por outros e outros. Rapidamente a cavalaria se reorganizava, meu pai e eu ao centro, cercados pelos soldados.

Assim, nessa formação, entramos no pequeno povoado. Os soldados que ganharam a dianteira fizeram o papel de arautos, anunciando a chegada do Rei. Entramos no vilarejo e encontramos os moradores reunidos em uma espécie de pátio, que provavelmente servia para festas e eventos sociais. Ouvi o barulho de cascos se afastando, gritos de protesto e um brado forte, assustador, exigindo silêncio. Passamos num trote lento, meu pai e eu, lado a lado, os soldados qual muro nos cercando, meus olhos buscando frestas, espaços vagos para enxergar aquela gente enfileirada, cara de famintos, rostos sujos de terra ou carvão, roupas sujas e rasgadas, que nos fitavam com olhos caídos. Homens, mulheres, crianças. Cabisbaixos, pobres bichos acuados. Passavam como triste procissão de horrores, um espetáculo de feiura e miséria. Peles cheias de marcas, feridas, de tal forma maltratadas que era quase impossível distinguir jovens de velhos. Ergui um pouco meu corpo na sela, tentando olhar por cima dos soldados. Percebia cabeças se misturando com as casas, uma pequena multidão silenciosa que nos observava. E, embora ninguém dissesse nada, algo naquela quietude me dava medo.

Em meus sonhos infantis, imaginava sempre que os povoados ficassem em festa a cada visita de meu pai. Imaginava as pessoas felizes, risonhas, comendo e bebendo com orgulho da presença real. O que eu lia naquelas feições agora, no entanto, era mais próximo da raiva do que da alegria, mais próximo do medo do que do respeito.

A meu lado, Rei Aran mantinha a postura ereta, seu olhar mais severo, observando aquela gente estranha. Então, um tropel de cavalos apareceu entre as construções, um soldado acenou para meu pai que fez meia volta em seu cavalo. Fiz exatamente o mesmo, os olhos fixos naquelas pessoas, a vontade de sair dali o quanto antes crescendo rapidamente. No mesmo trote lento, coordenado, em que entramos, saímos. Sem que meu pai dissesse uma única palavra, sem que dirigisse àquelas pessoas nada além de um olhar autoritário e rígido.

Imediatamente lembrei as palavras de Amaryllis: “nunca viu as pessoas famintas que vivem fora daqui. Não faz ideia de como seja a vida dos velhos, sem o conforto de um lar. Já está na hora de sua família perder os privilégios, que mantém às custas do povo!”



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