Aléssia

Capítulo XI

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XI <<<

Minhas costas afundaram lentamente no colchão, o cheiro de lavanda subindo dos lençóis muito limpos e macios. Lara olhava-me assustada, como se me visse doente. Ajeitou sobre meu peito as cobertas enquanto eu, inerte, olhava fixamente o teto.

— Bom descanso, Alteza.

Fez a mesura usual e começou a se afastar.

— Fique.

O som de seus passos sumiu.

— Perdão, Alteza…

— Essa cama é grande demais pra mim. Faça-me companhia, por favor.

Ouvi o som arrastado de seus passos, aproximando-se novamente. Um leve ruído me fez perceber que estava próxima, então a busquei com o olhar. Havia sentado na cadeira ao lado de minha cama.

— Pode dormir, Princesa, estarei aqui se precisar de algo.

Com algum esforço me recostei na cama. A viagem me deixara exausta, mais pelo choque emocional do que pelo esforço físico.

— Preciso de sua companhia, Lara, não de sua vigília.

Recolhi as pernas, dando-lhe passagem para o interior, mas ela não se moveu.

— Deite-se a meu lado, não vou lhe fazer mal algum, minha querida. Tenho grande estima por você, quero apenas sentir que tenho uma alma amiga por perto.

Meu pedido era profundamente esquisito, eu sabia. Mas essa era, em suma, a grande vantagem de ser Princesa: podia fazer pedidos estranhos e as pessoas os acatariam, por mais que desconfiassem deles.

Com indisfarçável constrangimento, Lara deitou a meu lado. O corpo tenso foi afundando aos poucos naquele ambiente macio e que ela, provavelmente, desconhecia. A cama da criadagem era simples, o lugar em que viviam dentro do castelo era austero. Lembrei-me de uma ocasião em que eu, ainda bem pequena, entrei, curiosa, em um dos quartos de funcionários e sentei em uma cama. O colchão era tão duro que pensei ter sentado na madeira e perguntei a uma de minhas babás onde estava o colchão da cama. A mulher me retirou apressada do quarto ralhando que “seu pai vai lhe dar uma surra se souber que você veio aqui, já pra fora!”.

Foi assim que recebi Lara pela primeira vez em minha cama. Com um beijo suave em sua testa, desejei-lhe bons sonhos. Minha mão procurou a dela e peguei no sono com nossos dedos entrelaçados.

Na primeira manhã após aquela viagem, eu soube que não era mais a mesma. Acordei com Lara se movendo discretamente, buscando um jeito de sair da cama. Levantei para lhe dar passagem e, com o corpo ainda quente das cobertas, descortinei minhas janelas e olhei o Monte Vermelho. Exatamente como sempre fizera, desde a infância. Mas dessa vez, meu olhar não se sentiu aconchegado naquela paisagem de pedra, montanha e uma fresta de céu. Equilibrei metade de meu corpo para fora da janela e tentei observar o espaço: sentia-me enclausurada. E chocada.

Os olhares duros e famintos das pessoas do vilarejo me perseguiam por onde fosse. De um momento para outro, a vida que eu levava não fazia o menor sentido. Compreendia agora o que Amaryllis me disse em nossa última conversa, e não a culpava por seu comportamento. Nem me sentia orgulhosa de ser quem eu era.

Também minha rotina sofreu mudanças em sua estrutura, meu tempo pessoal ficou mais escasso. As aulas começaram a dar lugar a reuniões. Minha presença no conselho passou a ser cobrada por meu pai. Conselheiros se revezavam em entrevistas políticas, nas quais me explicavam a situação atual do reino, tanto interna quanto externamente. E o Rei Aran, pessoalmente, me instruía naquilo que chamava de “a história secreta da família Amaranto”. Era minha vida de Rainha começando.

Não sei exatamente quando foi que me dei conta de que a leveza juvenil estava definitivamente perdida. Certa manhã, me surpreendi olhando no espelho uma fisionomia tensa, carregada. Depois da visita ao vilarejo, ganhei o hábito de conversar mais com os criados. Inquiria-os sobre sua origem, seu modo de vida, sua família. Quase todos se sentiam constrangidos e respondiam monossilabicamente, por pura obrigação. Aqueles que conviviam mais de perto comigo, no entanto, logo se mostraram acessíveis ao diálogo e, em pouco tempo, compartilhávamos confidências como amigos.

Com Lara passei a compartilhar mais do que confidências. Com uma frequência cada vez maior, eu lhe pedia que dormisse comigo. Sua companhia me acalmava, me aquecia. Em poucas semanas não era mais preciso dizer nada, Lara dormia em minha cama como se nunca houvesse dormido em outro lugar. Cochichos e murmúrios começaram a surgir entre os criados e meu pai deixava escapar certos gracejos no café da manhã, mas eu ignorava tudo aquilo. E, até onde percebesse, Lara também.

Não havia nada além de amizade me ligando a Lara, no entanto. Sua companhia noturna era apenas um refúgio para minha solidão. Ainda era nos braços de Matilde que meu corpo buscava aconchego e reencontrava disposição para seguir o dia-a-dia. E era também nos sábios conselhos da cortesã, que eu tentava acalmar minhas preocupações e ponderar minhas ações. Foi para ela, aliás, que confessei aquilo que não ousava dizer, nem para meu espelho: a atitude de meu pai no vilarejo me horrorizara. Seu olhar duro, sua atitude fria diante de um povo que, evidentemente, sofria. E seu discurso de castigo dos Deuses, incessantemente repetido após aquele dia, começava a me dar náuseas. Meu mundo estava tão incerto, que nem meu pai eu reconhecia.

Crescer é um processo longo e, no meu caso, era um lento desdobrar de dentro para fora, uma passagem física para além das fronteiras do castelo e uma passagem interna para fora de minhas ilusões seguras. Não sei se determinamos a vida à medida que pensamos nela ou se é a vida, com seus acontecimentos fortuitos, que direciona nosso pensar. Mas naquele momento, em que eu analisava criteriosamente cada palavra, gesto, atitude de meu pai, um incidente noturno aumentou minhas dúvidas e sofrimento.

Naquela noite, a lua estava clara e o vento fresco aliviava o período de calor. O outono começava a anunciar sua presença e, quase sem querer, eu me preocupava com o inverno daquela gente que eu vira de relance, entre os ombros dos soldados de nossa cavalaria. Protegi meu corpo com uma capa de couro gasta pelo tempo, seu tom escuro me escondendo de olhares curiosos.

Deixei Lorde na pequena estrebaria, que funcionava nas proximidades do portão Leste, e caminhei confiante para os braços de Matilde. Quase na esquina da casa vermelha meu humor mudou. Soldados vigiavam a casa, sinal inequívoco de que minha amiga passaria a noite ocupada. O desgosto veio amargo, a partir do estômago. Essas nobres visitas eram, felizmente, tão raras, que me davam a sensação de que Matilde era só minha. Constatar o contrário, resultava nesse sabor amargo. A frustração de não ter meus anseios atendidos, só piorava a situação.

Resignada, comecei a me afastar quando um detalhe chamou minha atenção: a pequena rua transversal, que desembocava praticamente na porta da casa de Matilde, estava vazia.

Além disso, havia menos soldados do que de costume. Provavelmente a visita dessa noite tinha menos posses do que aquele outro, visivelmente poderoso, que isolava toda a região com guardas muito bem armados.

Favorecida pela roupa escura e pela péssima iluminação local, entrei na ruazinha imunda, lotada de excrementos e comida podre. Estava quase arrependida, decidindo voltar ao invés de enfrentar aquele lugar desagradável, quando ouvi vozes. O som não era nítido, mas o tom prenunciava despedida. Era bom demais para ser verdade. Do jeito mais soturno que pude, espiei pelo fim da rua, a casa de Matilde bem à minha frente.

Por uma infeliz combinação de largura da rua e posição da casa, o luar iluminava exatamente a porta. Percebi um vulto alto e elegante e precisei controlar meu ciúme ao vê-lo tomar Matilde em seus braços para um longo beijo. Então o homem fez uma saudação de despedida e se virou para montar o cavalo. Sua voz soou nítida, no mesmo instante em que seu rosto foi banhado pelo luar e, com um tremor de aflição, reconheci meu pai.

Precisei morder meus dedos para não urrar de dor. Meus tímpanos zuniram com um ódio profundo. A frente da casa parecia ainda mais vermelha que de costume e pensei em sacar minha faca, fazer justiça com minhas mãos.

Matilde entrou e apagou as luzes, tão logo o cavalo ganhou distância, os soldados acompanhando o infeliz que acabara de abandonar o corpo da cortesã mais conhecida do Círculo Interno. Quando a noite ficou completamente silenciosa bati três vezes em sua porta, conforme nossa senha.

Nenhum ruído por longos minutos. Pensamentos desconexos torturavam-me. Imaginava os dois juntos e toda a sorte de coisas que deveriam ter feito naquela cama. A cama que, tantas vezes, fora palco do meu afeto por Matilde… Por Matilde, a mulher que servia de cortesã a meu pai, sem jamais ter me dito nada!

Mas eu não sairia dali sem vê-la, sem cuspir em sua cara minha indignação. Não sairia dali sem uma vingança, uma justiça merecida que fosse.

Cogitava arrombar a porta quando o trinco cedeu por dentro e a porta abriu alguns milímetros. Empurrei a madeira e entrei rispidamente, empurrando-a para longe. Assustada e, aparentemente sem perceber o que acontecia, Matilde me abriu seus braços, um sorriso de afeto e saudade estampado no rosto:

— Minha Princesa amada, o que lhe aconteceu? Venha cá, querida, me conta o que lhe atormenta.

Minha resposta foi um violento tapa em seu rosto. Cuspi no chão o fel que corroia minha alma, enquanto berrava toda sorte de palavrões.

Caída, acuada, assustada, Matilde assistia meu tormento. Tentou acalmar-me com palavras suaves. Mas, à medida que meu destempero continuava, com toda sorte de ofensas àquela que, um dia, me havia sido tão especial, ela, cortesã habituada aos maus tratos da cidade, colocou-se defensivamente de pé, queixo erguido, língua afiada. E como eu não ouvisse suas palavras de carinho, acabei por me calar com suas palavras cínicas:

— O que há, Aléssia, nunca lhe ocorreu que seu pai precisasse de uma cortesã? E quem mais nesse vilarejo poderia servir ao Rei, em pessoa? O que lhe atormenta, menina? Você sempre soube quem eu sou! Sempre!

— Com que naturalidade você fala que dorme com meu pai!

— Mas é você que eu desejo. Isso não lhe agrada?

— Não! Pelos Deuses, deixe de ser cínica!

— E se eu lhe disser que você é melhor amante do que ele? Ficará feliz?

O segundo tapa foi mais forte do que o primeiro, totalmente impulsivo e inesperado até pra mim. Abri a porta e corri, desesperadamente, pela noite. Nunca mais voltaria ao lado boêmio do Círculo Intermediário.

Lara dormia quando cheguei, transtornada, a meus aposentos. Tranquei a porta para que ninguém pudesse me interromper e deixei o corpo escorrer, impreciso e cansado, até sentar no chão, as costas contra a porta de entrada de meus aposentos.

Queria estar só e a presença de Lara me pareceu um estorvo. Fiz um esforço profundo para não acordá-la, mas meus gemidos, ainda que abafados pelos braços, chegaram a seus ouvidos. Assustada e sonolenta a criada recolheu-me em seus braços. A custo, colocou-me em roupas de dormir, e me deixou segura em minha cama. Então deitou a meu lado e me abraçou ternamente:

— Ah, pelos céus… o que ela lhe fez, Princesa? O que aquela mulher lhe fez para deixá-la nesse estado?

Não respondi. Escondi meu rosto em seu colo e deixei que o choro viesse, tão profundo quanto necessário. Adormeci naquele abraço.

Na manhã seguinte ordenei a Lara que avisasse ao Rei que a Princesa de Âmina não se sentia bem e pedia autorização para permanecer em seus aposentos. Minutos depois, meu pai solicitou permissão para entrar nos aposentos, preocupado com minha saúde. Como meu abatimento era mesmo visível, não tive dificuldade para convencê-lo de que necessitava de repouso. Saiu do quarto ordenando que chamassem Malvina.

Creio que aquela tenha sido a primeira vez que a presença de meu pai realmente não me foi agradável. Apesar de os acontecimentos no vilarejo começarem a semear dúvidas sobre o caráter de meu pai, meu amor por ele sobrepujava tudo aquilo. Mas, ver Matilde em seus braços, doeu de maneira tão grotesca, que tive dificuldade para encará-lo. Sentia raiva pela falta de respeito com a memória de minha mãe. Sentia nojo por tê-lo visto beijando mulher com quem eu me deitava.

Meu desjejum foi servido na cama. Torradas com queijo de cabra, chá de melissa e panqueca com mel. Enquanto Malvina não chegava, aproveitei a companhia de Lara para entender melhor as suas últimas palavras na véspera.

— Lara, ontem você me perguntou o que foi que ela me fez. Gostaria que me explicasse como sabia que eu me encontrava com uma mulher.

Minha aia empalideceu de tal maneira que pensei que, se não estivesse sentada, provavelmente cairia. Repeti a pergunta.

— Desculpe, Alteza, mas… a criadagem sempre sabe das coisas que acontecem no castelo.

— A criadagem? Então os outros também sabem algo a respeito das minhas saídas do castelo?

Lara apenas abaixou seus olhos, o que foi uma afirmação muito mais contundente do que qualquer palavra.

— Vamos, Lara, me diga o que vocês sabem. Não vou prejudicar ninguém, apenas preciso saber a real extensão dos meus gestos. Sou a futura Rainha de Âmina, não posso ser inconsequente. Ajude-me, por favor.

— Não quero que julgue mal nenhum de nós, Alteza. Não quero que pense que passamos nosso tempo tomando conta da vida de vocês, nobres, mas…

Lara me olhou nos olhos por uma fração de segundo, depois mordeu os próprios lábios e moveu o queixo como se mastigasse as palavras que iria dizer:

— Mas…?

— Minha avó costumava dizer que nós, os criados, somos invisíveis.

A frase não me fez um sentido imediato, e minha aia percebeu isso na maneira como eu a olhava.

— Nós andamos por toda parte, estamos em todo o castelo, e vocês nem percebem. Fazemos parte da paisagem, nenhum nobre se importa com nossa presença. Conversam na nossa frente, como se conversassem na presença de uma cadeira ou mesa. É claro que somos discretos e não comentamos os assuntos com outras pessoas. Mas também é claro que somos humanos e que conversamos entre nós as coisas que acontecem dentro dessas muralhas.

Fez uma longa pausa, ou por achar que a explicação era suficiente, ou para encontrar um meio de continuar. Como continuei à espera, completou seu raciocínio.

— Vossa Alteza procurava ser cuidadosa ao sair do castelo mas, como os demais nobres, nunca se preocupou com a presença de soldados ou serviçais. Tenho uma prima que trabalha na estrebaria do portão leste. Foi ela que me contou que Vossa Excelência…

— Esqueça esse tratamento formal, Lara. Converse comigo naturalmente, como faz todos os dias, enquanto me ajuda com as roupas. Não há porque agir de outro jeito comigo, a menos que estejamos em uma cerimônia oficial ou na presença de outros nobres, entendeu?

Lara pareceu um pouco desconfortável com meu comentário, mas por fim prosseguiu.

— Bem, foi essa minha prima que me contou quando você — a palavra saiu desconfortável de seus lábios — foi ao Círculo Intermediário pela primeira vez. Délia é o nome dela, e lhe seguiu ao cruzar o portão. Ela viu quando… aquela mulher lhe abordou e a tirou da rua dos bares.

Aquela mulher?

— Você sabe de quem estou falando…

— Não, Lara. Diga-me, de quem você está falando?

Mordeu os lábios e voltou a pensar. Depois deu de ombros e continuou:

— Matilde Casares, a cortesã. Era com ela que você se encontrava praticamente todas as noites, não era?

— Sim, era. O que sabe a respeito dela?

— Creio que você saiba muito mais do que eu. Nunca a vi, sei apenas o que as pessoas comentam.

— E o que comentam?

A postura de Lara oscilava o tempo inteiro. A cadeira rangia com seus movimentos. Não havia dúvida de que a conversa não lhe era agradável. Mas ela continuou, embora parecesse agora preocupar-se um pouco mais com as palavras.

— Não sei se isso vai lhe agradar, mas ela é tida como uma mulher interesseira, que faz qualquer coisa para manter seus contatos com a nobreza e com qualquer pessoa com dinheiro ou poder em Âmina.

— Você acha que Matilde aceitou me receber, todas as noites, em sua cama, apenas porque sou a Princesa?

— Acho que ela foi lhe encontrar naquele dia apenas porque você é a Princesa, Aléssia.

— Como assim foi me encontrar? Nós nos encontramos por acaso, enquanto eu andava pelas ruas…

— Acha mesmo que foi por acaso? Sua presença do lado de lá da muralha causou enorme alvoroço. A notícia de que a Princesa de Âmina estava no povoado correu mais rápido do que fogo em rastilho de pólvora. Matilde foi até lá com a intenção de se aproximar de você! Ela é uma mulher ardilosa, sabe como envolver as pessoas. E não perdeu a oportunidade de se aproximar… mais do que isso: de se tornar íntima de você.

 



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