Aléssia

Capítulo XIII

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XIII <<<

Na manhã seguinte, ordenei à Ada que Lara fosse retirada de suas demais funções e cuidasse exclusivamente de minhas coisas. Proibi a entrada de qualquer outra pessoa em meus aposentos, e dei à camareira a responsabilidade de cuidar e preservar minha intimidade.

Aquele outono transcorreu com rapidez e calmaria. Os cuidados ternos de Lara e nossas carícias noturnas criaram uma falsa sensação de bem-estar e felicidade. As preocupações com o reino ocupavam minha cabeça menos do que deveriam e a inconsequência juvenil me dominava. Perdi o hábito de frequentar o Círculo Interno e as notícias de fora me chegavam apenas através de minha amante. Lara, aliás, não tinha mais nenhum pudor em falar de sua vida, sua infância, os problemas de sua família, a rotina de quem nascera no povoado. Essas conversas, no entanto, eram raras. Hipocritamente me deixei levar por um desejo de felicidade a qualquer preço, como se houvesse mesmo nascido com um sinal divino, que determinava meu privilégio diante dos demais. Como se fosse justo que um reino inteiro sofresse abusos para que alguns afortunados desfrutassem o prazer de uma vida plena.

Na manhã do solstício de inverno, meu pai me ordenou que o esperasse à noite, no salão principal, vestindo meu traje cerimonial.

No primeiro minuto após o pôr do sol, saímos em cavalgada rumo ao bosque. Caminhamos entre as árvores por um tempo que me pareceu demasiado longo e, como da outra vez, não percebi o caminho até o local em que a Pedra estava. Repetindo a situação anterior, meu pai tirou sua cota de malha e expôs o braço tatuado e, através dele, fez a Pedra surgir. Dessa vez, no entanto, notei como ele circundava o desenho com o dedo, enquanto murmurava algumas palavras, e vi a Pedra surgindo paulatinamente durante esse comando, como se uma espécie de véu se descortinasse entre nós e a Pedra.

— Você já conhece a energia que vem da Pedra, Aléssia. Agora é o momento de começar a entender a relação do monólito com nossa família e porque isso é tão importante para nós e para o reino.

Sua voz era séria e misteriosa. Apontou para o sinal em seu braço e, em seguida, para o da Pedra, e completou o gesto dizendo o que me parecia óbvio: as marcas são iguais.

— Você sabe por quê? — ele me perguntou.

— Não… mas… suponho que a marca indique quem tenha algum tipo de relacionamento com a Pedra.

— Um pouco mais do que isso: indica quem tem poder sobre a Pedra. Apenas uma pessoa no mundo pode possuir essa marca completa. Se, por acaso, existirem duas pessoas marcadas pela Pedra, então uma deverá matar a outra, pois é impossível que coexistam nesse mundo.

Senti um arrepio na nuca e toda sorte de maus presságios passaram por minha cabeça. Imaginei nossa linhagem destroçada, uns matando os outros, em nome de um símbolo mágico.

— Mas… a marca passa de pai para filho, assim como o comando da Pedra, não é?

— Sim, mas nem sempre foi assim. No início dos tempos, antes de nossa família conquistar o comando, a Pedra era conhecida por muitos e todos ambicionavam seu poder.

Fez uma pausa, como se esperasse por algum comentário, depois prosseguiu:

— Pode imaginar o que isso significa? Pode calcular quantas guerras aconteceram por causa dessa Pedra? Pode ver quantas pessoas foram mortas simplesmente por que eram capazes de comandá-la?

— Sim, posso perfeitamente, e a pergunta óbvia é: por que ninguém a destruiu?

— Destruir a Pedra?

— Claro! Pois se é fonte de tanta discórdia, por que ninguém a destruiu?

— Ela não é fonte de discórdia! É fonte de Poder! O Poder, esse sim, tem o dom de gerar disputas e discórdias, se as pessoas que o possuem não são dotadas da sabedoria necessária para controlá-lo. Por que acha que sua educação foi sempre tão rígida? Porque é seu destino possuir o Poder e deve estar preparada quando a hora chegar.

Aquele solstício aconteceu em uma noite sem lua. O bosque estava mergulhado em trevas profundas e, no entanto, a Pedra cintilava como se uma luz, vinda de cima, incidisse diretamente sobre ela. Quanto mais a olhava, mais a temia. E apesar de ter sido criada para comandar nosso reino, não me sentia preparada para assumir aquilo que meu pai chamava de O Poder.

— Isso não faz sentido, pai. Se é através da marca que a Pedra é comandada, então qualquer um pode tatuá-la… e passa a comandar a Pedra? Ou quem tatua o sinal é, de alguma maneira, impelido ao assassinato de quem já possui a marca?

— Um desenho tatuado na pele é apenas um desenho tatuado na pele. Não é isso o que comanda a Pedra.

— O que é, então?

— Você não é capaz de adivinhar?

O assunto me parecia tão absurdo que realmente não era capaz de adivinhar nada relacionado a ele. Meu silêncio foi a melhor resposta que encontrei.

— O Poder que a Pedra transfere à marca, é isso que pode controlá-la. É a própria Pedra que ativa a marca de quem está destinado a comandá-la. É a Pedra quem escolhe quem terá comando sobre ela. Em outras palavras, quem usa essa marca compartilha o Poder com a Pedra. Eu, sozinho, não governo o reino. Sou eu e a Pedra que fazemos isso.

Como se quisesse ilustrar o que dizia, meu pai aproximou seu braço da Pedra e a marca que compartilhavam começou a pulsar em ambos, assumindo paulatinamente uma coloração avermelhada. A expressão de meu pai oscilou entre a dor e o êxtase, e então ele continuou falando:

— Entenda, minha filha, que é da união de nossa família com a Pedra que nasce o nosso reino. De certa maneira, Âmina pertence à Pedra, que nos cede o direito de uso da terra, seu território. Nós oferecemos à Pedra as pessoas, pois são elas que trabalham a terra para que gere frutos. Esse é o nosso pacto com a Pedra: ela nos cede o território, nós lhe oferecemos o povo, seu sangue, seu suor, seu sacrifício.

— Sangue?

Rei Aran deu um riso leve, como se esperasse minha objeção.

— Isso é modo de dizer. Sangue porque vivemos e morremos aqui. Suor porque é com ele que trabalhamos a terra. A Pedra se beneficia das duas coisas. Nosso sangue e nossas colheitas a fortalecem. Em troca, ela distribui seu poder com aquele que é capaz de provê-la.

— Por que o pacto da Pedra é com um único homem e não com todos os que vivem aqui?

— Onde muitos mandam ninguém obedece. O ser humano é indolente por natureza própria. Para que tenhamos as riquezas que a terra pode nos dar, é preciso trabalho. Suor. E são poucos, muito poucos, os que estariam dispostos a trabalhar sem a ameaça do chicote.

— Se não é possível que duas pessoas possuam a marca na pele, isso significa que só poderei receber a minha depois de sua morte, não é?

— Não. Como eu disse antes, um desenho na pele é apenas um desenho na pele. E é importante que você receba a marca o quanto antes, pois assim estará pronta para receber o Poder, caso me aconteça algo inesperado.

Definitivamente, eu não estava gostando daquela história. Não gostava daquele lugar, não me agradava a ideia de carregar na pele aquela marca. Entretanto, sabia que não tinha escolha: era meu destino.

— E quando vou receber a marca, meu pai?

— Quando a Pedra decidir que você está preparada.

— Pelo visto é sempre ela que decide tudo, não é?

— De certa forma, sim. A Pedra tem poder sobre nós, e nós temos poder sobre o povo. De cima para baixo o Poder é transmitido. De baixo para cima o Poder retorna à origem.

— Como?

— Do Céu para a Terra através da Pedra. Da Pedra ao Céu através de nós. Assim o Circulo se mantém contínuo e envolve todos os que estão em sua esfera.

Quando terminou de dizer isso meu pai olhou para o céu, fixamente, para um ponto acima de sua cabeça, como se esperasse ver algo naquela escuridão quase total. A única luz vinha da Pedra e, exatamente por isso, me era impossível não olhá-la. Não sei dizer o que meu pai esperava, nem quanto tempo permaneceu analisando o céu. Pois enquanto eu olhava a Pedra, cada vez mais éramos apenas eu e ela. O bosque, meu pai, o castelo, minha vida… tudo saiu de foco.

Não sei se sonhei, delirei ou se realmente saí de onde estava. Quando recobrei minha consciência eu corria entre árvores negras, muito próximas umas das outras, num lugar escuro e tão silencioso quanto a morte. Procurava um punhal que estava cravado aos pés de uma árvore grande e tortuosa. Eu sabia que o punhal estava lá, enquanto corria o via em minha cabeça, e ouvia a Pedra gritando “traga-o para mim antes que seja tarde”.

Eu corria a esmo, no entanto, sem noção de onde estava, e rezando desesperadamente por uma ajuda, um acaso que me levasse exatamente onde o punhal se escondia. A missão me parecia impossível, mas pensar na derrota trazia um gosto de sangue à minha boca, e então eu corria.

Quando o cansaço já era grande o bastante para me deixar em situação difícil, comecei a ouvir o som de cascos. Apurando os ouvidos para perceber o que era, vi três homens em armaduras escuras. Eles me procuravam, eu sabia. Estavam ali para me impedir de cumprir o que eu precisava fazer. E eu não estava disposta a perder.

Suavizei meus passos. Como um animal na floresta, eu espreitava o caminho, farejava meu destino e forçava minha mente a encontrar a rota correta. E antes deles.

Metade de mim vigiava os homens, a outra metade farejava o caminho. E quando minha intuição dizia que meus perseguidores estavam a metros de mim, então eu vi, envolto num raio de luz azul, a lâmina completamente enterrada no chão, o punhal cravejado de diamantes e safiras. Estava aos pés de uma majestosa castanheira, tão frondosa e clara em contraste com as árvores de troncos esquálidos que formavam aquela mata. Entre eu e o punhal havia uma clareira. E, nas proximidades dela, eu sabia, estavam os homens que me perseguiam. Eu só teria uma chance e falhar significava não sair viva dali.

“O punhal, o punhal!”, a Pedra urrava no meu ouvido. E os homens se moviam perigosamente perto. Então, num fôlego, lancei meu corpo na clareira e corri com todas as minhas forças.

— Ali, a maldita! Não a deixem escapar!

Os passos dos homens soaram pesados logo atrás de mim. Perto, cada vez mais perto. Meu fôlego faltava, as pernas tremiam. Eu não ia chegar.

Percebi de soslaio um braço quase em minhas costas e torci o tronco, desviando do toque. Mas já outro estava a centímetros de minha pele e a árvore parecia insistir em estar tão longe! Então, sem me importar com mais nada, sem olhar para a árvore, sem me questionar se era possível, fechei os olhos, me concentrei no punhal e dei um salto. Minha mão tocou o cabo no instante exato em que um dos homens me agarrou. Como numa espécie de mágica, uma corrente de fogo passou do punhal para meu braço, e eu urrei de dor. Quis soltar a faca, mas já não era possível. O fogo subiu pelos meus dedos, enraizou-se na minha mão, escalou meu antebraço, enovelou-se no meu braço. Uma força queimava meu bíceps, devorava minha carne em um trajeto preciso. Um círculo perfeito, um desenho de fogo marcando minha pele.

“Eu sabia que você era capaz”, ouvi a Pedra dizer. Depois foi apenas o escuro, o vazio, até ouvir a voz clara e calma de meu pai.

— Está terminado, levante-se, você vai ficar bem.

O sorriso de Rei Aran foi a primeira coisa que reconheci, depois o bosque à nossa volta. O bosque como era em minha infância, sem nenhum vestígio de pedras ou segredos. Ergui o corpo dolorido e cansado, meu braço esquerdo ardendo como se estivesse em brasa viva. Num gesto instintivo levei a mão ao bíceps e senti a ferida. A marca da Pedra gravada em meu braço.

 



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