Aléssia

Capítulo XIV

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XIV <<<

Andamos apressados entre as árvores, meu pai parecia sentir a mesma urgência de sair dali que eu sentia. Com sua ajuda, montei Amora e, em aflita disparada, rumamos para a casa principal.

As luzes da cozinha estavam acesas e, mesmo de longe, era possível ouvir vozes e risos. Quando entramos, tudo caiu no mais profundo silêncio, com os criados curvando-se em respeito. O cavalariço que nos aguardava saiu imediatamente para cuidar de nossos animais. A cozinha rescendia à vela, nenhuma lembrança de cheiros de comida, e me deu certa tristeza encontra-la assim. Na infância era meu recanto predileto, esse aroma austero me dava uma sensação vazia e meio morta.

Caminhei para a escada principal, ansiosa para me deitar, mas meu pai me chamou em seu escritório.

— Tire sua blusa.

Hesitei no primeiro instante, mas ele me olhava sério, autoritário, então obedeci. A marca da Pedra estava em meu braço direito, um alto-relevo de cor escura e cheiro de carne queimada. Toda a pele envolta ardia, mas a sensação de dor não era tão intensa quanto inicialmente. Meu pai olhou com calma a ferida, o desenho exatamente igual à marca que ele mesmo carregava em seu braço esquerdo. Retirou de uma gaveta uma faixa de pano, de cor próxima à pele, e um pote de unguento. Passou a pasta esverdeada levemente em minha ferida e depois a cobriu com a faixa, prendeu na parte posterior com um delicado broche, e cortou o pano excedente.

A marca de meu pai era, no entanto, diferente da minha. Parecia ter sido desenhada com um traço muito fino, em tinta negra.

— Por que nossas marcas não são iguais, meu pai?

— A Pedra é quem escolhe o método. A minha foi tatuada por um guerreiro. Para receber a marca, você precisa vencer um desafio. Eu falhei em minhas duas primeiras tentativas e, honestamente, não esperava que você conseguisse logo de primeira. A maneira como a marca é gravada tem ligação com a tarefa que você executa no desafio.

— Eu resgatei um…

— Não diga nada. – Ele me interrompeu intempestivo. Isso nunca deve ser dito a ninguém, nem mesmo a mim.

— Por quê?

— Segredos entre a Pedra e você. Com o tempo entenderá.

— Minha marca nem sequer é no mesmo braço que o seu… pensei que isso fosse sempre uniforme.

Rei Aran me olhou com uma expressão que levemente preocupada, ou ao menos assim me pareceu. Depois, se virou para guardar as sobras do curativo:

— É realmente curioso que não seja no mesmo braço. Mas creio que isso signifique que somos complementares um ao outro. Se estivermos lado a lado, estaremos protegidos por ambos os lados. Isso pode ser útil.

— A marca nos fornece proteção também?

— Proteção e poder. As duas coisas andam juntas.

Coloquei minha camisa e fiz uma mesura para sair, mas meu pai me interrompeu novamente, uma expressão no olhar como se pensasse no que iria dizer.

— Há mais uma coisa importante, Aléssia.

— Diga, meu Rei.

Ficou alguns minutos me olhando como se analisasse a situação. Mirou meu corpo dos pés à cabeça e depois continuou.

— Essa faixa que lhe dei deverá ser usada sempre que possível, para proteger a marca dos olhares curiosos. Apenas sua aia deve vê-la e é importante que a instrua para que jamais conte a ninguém.

Fez uma pausa. Estava agora de costas para mim, olhando a noite através das vidraças. julguei que isso colocava fim ao assunto e, estava saindo, quando o Rei continuou:

— Sei que você já tomou a iniciativa de ordenar que Lara lhe preste serviços exclusivos. Foi uma boa providência, pois a partir de agora você necessitará de uma serviçal exclusiva. Espero que tenha certeza da fidelidade dessa moça. Ela deve ser capaz de morrer por você, pois essa é a melhor maneira de proteger seu segredo. Caso contrário, ameace-a com a morte ou punições mágicas. Ela realmente acreditará que você tem poderes sobrenaturais. É a melhor maneira de manter essa gente sob controle.

Então se virou abruptamente e me encarou:

— Parei de usar a minha faixa quando a juventude findou. Apenas meu camareiro vê minha pele, então não há mais necessidade de alguns cuidados…

Abaixei o rosto, contrariada. Foi impossível não me lembrar de Matilde em seus braços. Acaso ele a teria possuído sem nem sequer tirar as roupas? Não me surpreende que ela me considerasse melhor amante…

— … mas quanto a você… – continuou, com a voz aparentando hesitação. Mais uma vez me olhou com ar de análise, depois soltou um longo suspiro:

— Essa é uma conversa que um pai espera ter com um filho, Aléssia, jamais com uma menina. Mas… as coisas são como são e o fundamental é que você aprenda a se cuidar. Tenho feito vistas grossas para suas saídas e aventuras, pois você nunca procurou a companhia de homens. Não tenho nada contra você se divirtir com outras mulheres, se isso lhe agrada. É bastante sábio, aliás, pois preserva seu corpo para o casamento…

— Casamento?!

Era a primeira vez que ele citava isso com seriedade.

— Casamento. Por que o eto?

Seu olhar direto e incisivo me fez perder o ar. Comecei a balbuciar como uma criança pega em falta.

— Mas pai…e-eu… pensei que…

Seus olhos se apequenaram numa expressão aguda, a sobrancelha esquerda erguida como quando pretendia me mandar para algum castigo. Por instantes me senti a menina de três ou quatro anos perdida entre medo e amor por seu pai.

— O que você pensou, Aléssia? Está prometida ao filho do conde Hermes desde seu nascimento.

— Isso não é possível!

— Como não é possível? Você sempre soube, desde pequena!

— Nunca achei que você falasse sério.

Seu olhar se tornou ainda mais severo.

— Você, assim como todos os reis e rainhas, tem obrigação de dar um herdeiro ao trono de Âmina.

— Isso não é possível… d-desculpa, não posso aceitar isso!

A simples ideia de um casamento me horrorizava, e estava resolvida a escapar desse suplício, ainda que tivesse que enfrentar meu pai. Não era justo ter que dispor de minha vida e meu corpo desse modo.

— NÃO OUSE ME ENFRENTAR, MENINA!

Sua voz fez as vidraças estremecerem, mas não abaixei a cabeça nem desviei meu olhar. Ficamos em silêncio por minutos, seus olhos espumando raiva. Então, serenou a feição e falou com certa complacência.

— Sei como se sente, mas não pode fugir às suas obrigações. Você se casará e terá filhos. Não fará como sua mãe, que me deu apenas você. Um reino precisa da segurança de ter herdeiros, e a morte não poupa ninguém, nem mesmo os nobres. Você terá quantos filhos possa parir nos primeiros anos de casamento, e então poderá se livrar de seu marido. Fora isso, não exigirei de você nenhuma outra obrigação. Não precisará nem mesmo partilhar o quarto com o infeliz, a não ser nos momentos em que forem cumprir suas obrigações matrimoniais. Pode se deitar com quantas mulheres quiser, desde que seja discreta. Ou pode ser fiel à essa aia que agora compartilha de sua cama, caso isso lhe faça feliz. Mas não pode se recusar a dar herdeiros à nossa Casa.

— F-Filhos? Mais de um? Você está dizendo que não tenho a liberdade de escolher com quem me deito e o que é feito de meu corpo?

— Filhos! Sim, filhos! O que diabos se passa na sua cabeça para achar que está livre disso? Ninguém está livre da ordem natural das coisas, nem mesmo você!

— É um absurdo isso! Eu não aceit…

— CALE-SE!

Seu grito me fez estremecer. Meu pai nunca me tratara assim.

— Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre isso! Vá para seu quarto e só saia de lá quando eu ordenar!

Continuei exatamente onde estava, ele não se livraria de mim com tanta facilidade. Percebendo meu espírito resoluto, Rei Aran se aproximou a ponto de nossos corpos quase encostarem, o olhar raivoso grudado no meu.

— Suba imediatamente e fique em seu quarto até que eu lhe chame. Se não cumprir minha ordem é sua querida aia quem irá pagar pela desobediência. Você não quer ver aquele lindo rostinho marcado por uma surra, não é?

Desconheci meu pai. Nunca o ouvira falar assim. Nunca o vira fazer ameaças tão desumanas. Mas o ódio em sua expressão me fez compreender que era melhor não testar até onde ele estava disposto a ir. Talvez não tivesse coragem de me bater, mas Lara era apenas uma criada, e eu sabia bem o que os nobres pensavam a respeito disso.

Naquela noite encontrei a Rainha Maura, sua vasta cabeleira negra solta, os olhos claros que tinham um misterioso tom de cinza como nuvem em dia de chuva. Vinha majestosa, em um cavalo negro, o longo vestido rubro criando contraste. Segurava pelo fio uma espada de cabo dourado, que atirou em minhas mãos tão logo me aproximei. Apanhei-a ainda no ar, pelo cabo. Na lâmina escorria uma única gota de sangue. Minha mãe espalmou sua mão mostrando o corte feito ao carregar a arma.

— A vida é perigosa como segurar a espada pelo fio. Obedeça seu pai, desista de sua obstinação. É o melhor a fazer agora. Ganhe tempo, e então poderá evitar seu desgosto.

Antes que eu pudesse responder, acenou despedida e sumiu num galope veloz.

Os primeiros raios de sol se infiltravam pelas vidraças quando abri os olhos, Lara adormecida sobre meu peito. Afaguei de leve seus cabelos e me levantei sorrateiramente, tendo cuidado de não acordá-la. Quando minha aia despertou, eu já estava pronta para o desjejum que, já sabia, seria em meu quarto, conforme as ordens de meu pai. Entretanto, ordenei a Lara que descesse com um pedido de audiência. Desde pequena eu tinha meus sonhos como bons conselheiros, e não pensei duas vezes antes de acatar as sugestões deste.

Para não me dar o gosto de sair de meus aposentos, meu pai subiu para me atender. Recebi-o com uma reverência respeitosa e em seguida beijei sua mão, em sinal de obediência.

— Perdoe meu atrevimento ontem a noite, meu pai. Realmente, não sei o que se passou em minha cabeça. Sempre esteve claro que eu deveria dar uma descendência a você, que os próximos governantes de Âmina serão meus descendentes. Acordei hoje com um gosto amargo na boca causado pelas palavras rudes que fui capaz de lhe dizer. Solicito, sinceramente, sua misericórdia e compreensão. Eu estava fatigada pelos acontecimentos anteriores e não raciocinava com clareza. Agi como uma criança estúpida e me envergonho profundamente.

Pensei, a princípio, que meu pai controlava a vontade de sorrir de satisfação. Ficou em silêncio por alguns momentos, analisando tanto minhas palavras quanto meus gestos e, quando julgou que não havia nenhum engano, abriu seu sorriso terno e me abraçou.

— Ah, graças aos céus, minha filha está de volta. Juro que não a reconheci ontem à noite, Aléssia.

— Nem eu me reconheci, meu pai. Uma boa noite de sono me fez bem. E obrigada por ter sido firme comigo quando eu mais precisava.

Se havia qualquer desconfiança em meu pai essa desapareceu com minhas últimas palavras. Descemos juntos para a reunião do Conselho.

Os dias seguintes foram marcados por muitas reuniões. Tendo agora a marca em meu braço, minha pai fazia questão de me deixar a par de toda a situação do reino. Não havia mais assuntos secretos a serem tratados longe de mim, e lembro perfeitamente do dia em que Rei Aran deixou isso claro a todo o conselho. Foi cerca de dez dias após minha iniciação com a Pedra. Um mensageiro chegou com ares de urgência e, como de costume, ficou aguardando que todos os convidados se retirassem. Ao longo dos anos meu pai sempre precisou requisitar minha saídapois eu, desde pequena, assumia que todo assunto pertencente ao reino me dizia respeito. Dessa vez, no entanto, o Rei aguardou a saída apenas de alguns conselheiros menores e, como o rapaz continuasse em silêncio, instigou-o a falar:

— Aqui está o conselho de Âmina reunido, mensageiro. Não há nada que você vá dizer que não possa ser ouvido por todos aqui. Aproveito para oficializar aquilo que, para a maioria de vocês já é evidente: a entrada definitiva de minha filha, Princesa Aléssia Valentina de Amaranto, para o Conselho de Âmina.

A sala foi preenchida por um burburinho, e todos os presentes fizeram uma mesura em minha direção. Sabiam que aquele pequeno ritual significava que, a partir de agora, eu compartilhava o comando do reino com meu pai.

O mensageiro inclinou-se, primeiramente em minha direção, e depois na de meu pai. Então, abriu sua correspondência e leu em voz alta:

— Perante o Conselho de Âmina, na presença do Rei Aran de Amaranto, relato os seguintes fatos. No dia primeiro de dezembro, na fronteira com as Terras Vazias, o acampamento de defesa avançado foi atacado por uma tropa rebelde, sob o comando de Alexandra dos Olhos Cinzentos. O ataque aconteceu aproximadamente duas horas antes do alvorecer e, embora nossos homens tenham exercido sua função com bravura, os três rebeldes presos na semana anterior foram recapturados pelo bando guerrilheiro…

Meu pai deu um murro na mesa e gritou um palavrão. Logo em seguida, começou a dizer toda sorte de ofensas ao mensageiro, acusando os soldados do posto avançado de incompetência. O pobre rapaz ouviu em silêncio e, quando meu pai se calou, tentou argumentar que os rebeldes estavam em maior número e protegidos pelo fator surpresa. A reação de meu pai me assustou, nunca o tinha visto sendo tão rude. Chegou a ameaçar o soldado com cadeia e tortura, quando tudo o que o infeliz fazia era cumprir com sua obrigação de relatar uma ocorrência. Meu pai encerrou o conselho aos berros, exigindo ficar só para refletir. Na confusão de cadeiras sendo arrastadas e pessoas saindo, o soldado-mensageiro se apressou em deixar o local, provavelmente temendo uma represália por parte de meu pai. Cheguei a sair de meu lugar, e tinha a séria intenção de ir furtivamente atrás do mensageiro. Queria pedir mais detalhes, começar a entender as coisas por mim mesma, mas meu pai me chamou de volta, bem como a Don Otto e Sir Alencar.

 



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