Aléssia

Capítulo XIX

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XIX <<<

A desconhecida agarrava com fúria minha cintura. O calor de seu corpo em minhas costas livrava-me da preocupação com a fúria de meu pai. No lugar disso, assustava-me saber que a vida da pequena dependia de minha perícia em me manter viva.

Cavalguei rumo ao sul, fazendo um leve desvio para o oeste. Dessa maneira, esperava estar longe o bastante para não ser avistada por soldados na muralha do castelo. Vi a silhueta de minha casa surgindo com os primeiros raios de sol. À medida que clareava, tentava perceber sinais de cavalos nos perseguindo, mas não percebi nada.

Na primeira hora após o nascer do sol, tendo certeza de que não havia cavalos próximos, parei em uma rara sombra perto do Rio Raso. Amora precisava beber e descansar, estava em seu limite.

Enchi meu cantil com água do rio e ofereci à jovem. Agora, com a luz do dia, podia notar como era bonita e graciosa. Sem que eu tivesse intenção, minha cabeça começou a formar imagens do que teria acontecido se a garota passasse a noite na barraca de meu pai. Despejei o resto da água do cantil na cabeça, para me acalmar. Quantas vezes isso teria acontecido no passado? Quantas jovens teriam sofrido abuso em suas mãos?

— Obrigada, soldado.

Seu olhar era duro e seco e pronunciou “soldado” com certa malícia, como se fosse uma sutil acusação. Enchi novamente o cantil e tornei a lhe oferecer, mas recusou num gesto. Tomei a água com sofreguidão, nunca tinha sentido tanta sede na vida.

Amora deitou na sombra, a respiração exausta. Havia sido brava correndo por caminhos difíceis a noite toda. Meu corpo também estava moído, mas não conseguiria descansar sabendo que, em algum lugar, um grupo de soldados me caçava.

— Como é o seu nome? – Perguntei mais para escapar de meus pensamentos do que por curiosidade.

— Por que quer saber?

– Acho que vamos ficar juntos por um tempo, não é?

— Como é o seu?

— Iago.

A garota mediu meu corpo com seus olhos profundos e chegou a abrir os lábios, como se fosse dizer algo. Mas aparentemente mudou de ideia. Olhou a toda volta, como se quisesse descobrir onde estávamos.

Amora ergueu a cabeça e começou a mastigar a grama próxima de onde estava. Felizes os cavalos que se alimentam de forma tão simples, pensei.

— Estou com fome.

— Eu também — concordei com o estômago dolorido. — Mas infelizmente não temos provisões. Tive que fazer tudo muito rápido.

A garota tentava formar um juízo sobre seu salvador. Tinha um olhar peculiar, provavelmente em virtude de suas sobrancelhas grossas, que afinavam a caminho do canto externo dos olhos e chegavam à têmpora formando um ângulo agudo, dando-lhe expressão intensa. Seu rosto quadrado, mas de traços suaves, era dominado pela boca pequena com lábios carnudos. Minha curiosidade começou a aumentar.

— Se não quer me dizer seu nome, tudo bem. Não vou lhe obrigar. Mas é melhor deitar e tentar descansar um pouco. Não podemos ficar parados muito tempo.

Recostou no tronco da árvore que nos garantia abrigo e fechou os olhos. Eu sentei ao lado de Amora e permaneci atenta.

— Você não vai descansar?

— Alguém precisa vigiar.

— Mas você precisa ter força para nos levar a algum lugar seguro.

— Não se preocupe, estou habituada.

Percebi meu deslize tão logo as palavras escaparam. Mas já era tarde.

— Habituada?

Levantei sem encará-la e me agachei nas margens do rio.

— Habituado, oras bolas!

Mergulhei o rosto no rio para disfarçar meu constrangimento. Aguardei uns instantes até que o embaraço me sumisse do rosto. Quando olhei, minha interlocutora me analisava com o ar ainda mais intrigado do que anteriormente. Sentei de costas para ela.

O Castelo dos Três Círculos dominava a paisagem, mesmo estando muitas milhas de distância. Nenhuma outra construção era visível, e eu não fazia a menor ideia de para onde correr. Vasculhei toda a paisagem de norte a sul, leste a oeste. Nenhum sinal de vida. Até as árvores eram raras, não obstante a paisagem fosse praticamente toda verde. Mas uma sombra disforme, a sudeste do Castelo, chamou minha atenção. Cresci ouvindo histórias assombrosas daquele lugar. Os criados do castelo falavam de fantasmas, de bruxos, de feras medonhas. Mas analisando toda a região, não percebi nenhum lugar melhor para me esconder do que aquele: A Floresta Escura.

Depois meus olhos foram novamente atraídos pelo Castelo. A vida confortável de todos esses anos voltou à lembrança de cada um dos meus ossos. Como num sonho, revi as pessoas, uma a uma. Era capaz de dizer o que cada um fazia naquele momento, tão bem conhecia a rotina do Círculo Interno. Então meu pensamento resvalou para a preocupação que eu vinha lutando para manter afastada: Lara.

Não consegui inibir o suspiro que veio do fundo do peito. A saudade doeu como eu jamais poderia supor. Seu cheiro, a textura de sua pele, o sabor de sua língua. E a preocupação com seu futuro. Ergui os olhos para o Sol e, munida de uma fé que desconhecia, fiz uma oração pela segurança de minha amante. Que ela tivesse juízo suficiente para fugir, e sorte para sair do Castelo antes de meu pai encontrá-la.

Quando o sol subiu ao céu numa posição próxima às nove da manhã, comecei a selar Amora. A garota acordou com minha movimentação.

— Hora de partir?

— Hora de partir, antes que o sol fique alto demais. Agora que o caminho é visível, espero que nossa montaria consiga ser ainda mais rápida.

Enchi completamente o cantil, lamentando que só tivéssemos um. Não sabia onde encontraríamos água novamente.

— Muito bem, senhorita sem nome, poderia por gentileza montar em minha garupa?

Tentei dar um tom leve à pequena tragédia que vivíamos. Não queria que minha acompanhante se sentisse mais desamparada do que já estava. Se em minha cabeça as coisas estavam ruins, na dela só podiam estar piores. As imagens do vilarejo ardendo em chamas e dos civis sendo massacrados voltaram com tanta força que pensei que fosse vomitar. A jovem me encarava, curiosa.

— Posso saber por que você fez isso? — ela indagou com a voz muito segura.

— Isso o que?

— Arriscar sua vida para me salvar.

— Teria vergonha de mim mesmo, pelo resto da vida, se não o fizesse.

— Mas você já não devia estar habituado a isso também?

— Habituado?

— Ora, é hábito do exército arrebanhar jovens virgens para o grande Rei Aran, não é?

O nome de meu pai, dito de forma tão sórdida, partiu meu coração de forma profundamente dolorosa. Diante de tudo o que eu presenciara recentemente, sabia que ela estava certa em sua observação.

— Essa foi minha primeira expedição com o exército real – disse sinceramente. Ela me olhou por um tempo longo o suficiente para me dar constrangimento, então se aproximou e me deu um beijo na bochecha.

— Obrigada, Iago. Que os Céus te protejam e o conservem assim, tão corajoso e valoroso quanto agora.

Montou Amora com agilidade, enquanto se apresentava formalmente:

— Sou Diana Stefanini. Você tem razão, vamos ficar juntos por um tempo e não há motivos para que não saiba meu nome.

Saímos no galope mais veloz possível. Amora parecia revigorada após o descanso.

Lentamente o sol descrevia seu arco no horizonte, nossas sobras diminuindo à medida que o meio do dia se aproximava. Corríamos fora da estrada por um terreno que, para minha felicidade, era plano e pouco acidentado. Depois de algumas poucas milhas, como se estivesse mais habituada àquela intimidade, Diana relaxou os braços em minha cintura e acomodou seu rosto em minhas costas. Seus anelados cabelos escuros roçavam minha nuca e um aroma campestre enfeitou minha cavalgada. Deixei minha mão direita manejar sozinha a rédea de Amora, enquanto a outra apertava com carinho as mãos de Diana em minha cintura. Estávamos presas no mesmo estranho destino e senti enorme compaixão por aquela jovem, que agora ressonava em meu ombro.

Forcei minha atenção no caminho e vasculhei todos os pontos onde minha vista alcançava. Não percebi nenhum sinal cavaleiros na estrada, o que era estranho. Nossa jornada se aproximava de seu ponto crucial. O Castelo de Três Círculos aproximava-se de forma assustadora, e seríamos forçadas a nos aproximar da estrada para chegar à Floresta. Tudo o que eu podia fazer era obrigar Amora a correr nos limites de suas forças. E rezar.

Assistir à contínua aproximação de minha casa obrigava-me a encarar a realidade dos fatos. A vida inteira passada lá dentro tornara-se um fardo. Não fazia ideia do que seria de mim a partir de agora. Pior do que isso: despida do título de Princesa, não sabia quem eu era.

De repente, Diana apertou com força minha cintura:

— O que você está fazendo? Para onde está me levando?

Agitou-se e socou minhas costas, e precisei gritar para que se contivesse.

— Não estamos indo para o Castelo! Pare com isso, não sou louco, sei o que estou fazendo!

— Estamos perto demais, seu idiota!

Segurei o trote de Amora para poder me virar e olhá-la nos olhos.

— Infelizmente não há outro jeito, temos que passar pelo Castelo para alcançar um lugar seguro. Mas não chegaremos perto o bastante para que nos vejam.

Olhei a enorme e imponente construção exatamente à nossa frente. Parecia perto, muito perto. Mas eu, que o conhecia por dentro, sabia como essa imagem era ainda pequena.

— Sei que parece muito próximo, mas acredite em mim, estamos longe demais para que nos vejam. Não vou colocar nossas vidas em risco.

— Quem me garante? Eu não faço a menor ideia de quem você seja.

— Sou a pessoa que salvou sua vida essa noite – disse com ironia. A cicatriz em meu braço ardeu um pouco. Culpei-me por ter perdido o controle. “Estou exausta e faminta, só isso”.

— Obrigada, soldado. Mas tenho medo de suas verdadeiras intenções. Quem me garante que não quer tirar proveito próprio? Talvez me vender de volta ao Rei, como se tivesse me encontrado perdida por aí?

A simples sugestão me pareceu ofensiva. Mas engoli meu orgulho e tentei me situar na nova realidade.

— Imagino o medo que a visão desse Castelo lhe provoque, Diana. Mas, acredite em mim: o mal que lhe fariam não é nada, se comparado ao que me aconteceria, se colocasse meus pés no Castelo novamente.

Sua sobrancelha se levantou alguns milímetros:

— É mesmo? Posso saber o que você fez de tão grave?

Minha angústia se manifestou em um longo e triste suspiro. Olhei novamente o Castelo, a face oeste virada para nós. O Bosque estava colado à muralha interna, quase na altura de onde olhávamos. A casa principal, os estábulos, as oficinas, o campo de treino… revi cada um dos meus recantos, as lágrimas ameaçando subir do fundo da alma.

— Ofendi Rei Aran das mais diversas formas. Não sei se ele já se deu conta disso, mas tão logo perceba, serei a pessoa mais caçada desse reino. É por isso que temos que chegar rápido a um lugar seguro. E depois pensar em um destino pra você, porque ficar do meu lado só vai desgraçar sua vida. Não te tirei daquele inferno para que você tivesse uma morte ainda mais cruel. Não quero que nada lhe aconteça, e não estarei sossegado enquanto você não estiver segura.

Já estava me habituando com aquele jeito de ser analisada. Diana me olhava intensamente o tempo todo, estudava cada gesto, cada expressão facial.

— É o que espero, Iago – disse por fim. – Não tenho alternativa a não ser confiar em você. Espero que realmente saiba o que está fazendo.

Eu também esperava. Para nosso bem, esperava que todos aqueles anos estudando estratégia, combate e sobrevivência agora valessem alguma coisa.

O sol descreveu seu arco no céu, nossas sombras diminuindo, mudando a direção e posteriormente se alongando. O poente já estava perto quando as primeiras árvores se tornaram visíveis. A essa altura o Castelo podia ser visto de forma tão nítida que Diana soltou um suspiro.

— Nossa! Como é bonito!

– Ainda estamos longe. De perto é ainda mais bonito – falei sem conter minha emoção. O prédio gigantesco estava erguido à nossa frente em todo seu esplendor, quase sendo possível perceber o movimento das sentinelas na muralha externa.

— Duvido. Não há como a casa do Rei Aran ser bonita. É desse lugar monstruoso que ele ordena todos os horrores que nosso povo vive.

A raiva com que ela disse aquilo doeu em mim. As imagens da noite anterior voltaram como um pesadelo. Por que não acontecia de Lara me chamar com sua voz suave e eu descobrir que estava sonhando?

Puxei as rédeas de Amora um pouco mais para o oeste e a esporeei com força. Ganhamos velocidade repentina, e Diana apertou seu corpo contra o meu. Quanto antes eu estivesse longe dali, melhor.

Nunca imaginei que sentiria alívio ao avistar a Floresta Escura, que tantos pesadelos me dera na infância. Mas a roda da vida girou de tal forma, que agora era exatamente esse meu ansiado refúgio.

Quando alcançamos as primeiras árvores e seus grossos troncos, o sol morria no horizonte. Descemos da montaria e passei a guiar Amora pelas rédeas.

— Que lugar é esse?

Eu não sabia se ela conhecia a fama da Floresta Escura, mas pelo sim, pelo não, achei melhor omitir alguns detalhes.

— Uma floresta nas cercanias do castelo. Mas pode ficar tranquila, é um lugar seguro.

— Uma floresta nas cercanias do castelo? Desde o começo me pareceu estranho que estivéssemos correndo nessa direção quando qualquer outra pessoa iria para o lado oposto, mas achei que você tivesse algum lugar, algum esconderijo, alguém que pudesse nos ajudar… sei lá! Mas… quer se esconder debaixo das barbas do Rei, é isso mesmo?

— O lado oposto ao Castelo, é exatamente onde estão nos procurando agora. E sim, eu tenho um esconderijo, um lugar seguro para ir. Mas fica do outro lado dessa mata e não conseguiremos chegar lá durante a noite.

Não caminhei muito mata adentro, não me agradava desbravar a floresta à noite. Encontrei um lugar em que a grama parecia macia e assentei ali nosso acampamento. Juntei pedras e gravetos para uma fogueira, depois colhi ervas enquanto conseguia enxergar alguma coisa. Teríamos que enganar o estômago com aquilo. No dia seguinte, com um pouco de sorte, talvez pudesse caçar um pequeno animal.



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