Aléssia

Capítulo XLI

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XLI <<<

Com a ausência de Alexandra o trabalho pesava nas costas de Breno, Mestre Renan e nas minhas. Eu não dizia nada, mas achava que Alex estava ultrapassando todos os limites. A guerra batia em nossas portas e ela se comportava como uma menininha birrenta, trancada em seu quarto. Talvez tenha sido por notar minha insatisfação e meu temperamento alterado que Breno optou por me dar uma missão especial. Perigosa, na verdade.
Quando me explicou o que queria, achei que poderia mandar qualquer pessoa. E, sendo honesta, por um breve momento achei que estivesse armando minha morte. Não era seguro que eu saísse de Líath. Mas Renan se juntou aos apelos de meu cunhado, e eu me resignei.
Dois dias depois parti acompanhada por um único soldado. Viajávamos com roupas de camponeses cuidando de manter as armas bem escondidas. As estradas estavam apinhadas de pessoas fugindo para lugares mais seguros e desaparecemos entre os transeuntes. Assim seguimos viagem rumo a Forte Velho. Saímos antes do amanhecer para que as sombras protegessem nossa origem. Quando o sol surgiu entre nuvens, em um dia gelado, estávamos com quase três horas de viagem, levando os cavalos em um trote macio. Parecíamos sujos e cansados como se estivéssemos viajando há dias e passamos despercebidos por duas tropas de fiscalização. Esperávamos ter a mesma sorte na volta.
O sol caía no oeste quando atravessamos os portões de Forte Velho e trotamos para a praça central. Pouco depois o acesso à cidade foi fechado, e ouvimos o estrondo quando apeamos de nossas montarias. Ninguém veio nos receber. Entreguei as rédeas de Amora a meu companheiro e caminhei para a casa principal, mas minha passagem foi barrada por um sujeito carrancudo.
— Estou aqui para ver Amaryllis –- expliquei. O sujeito me olhou dos pés à cabeça, me avaliando. Observou Brenda presa à minha cintura, mas não viu os brilhantes que forravam seu punho, pois eu os havia coberto com um retalho de couro fervido. Tinha cara de poucos amigos e, definitivamente, não parecia disposto a me deixar passar.
— Pode deixar que eu resolvo isso, Karl.
Era Douglas. Olhei-o com ar cansado, sem disposição para nenhuma de nossas antigas discussões. Mas, para meu eto, ele fez um gesto para que eu passasse e, assim, entrei na casa em que minha amiga de infância vivia.
A sala estava vazia, mas bem iluminada. A porta se fechou atrás de mim e vi que Douglas havia me deixado sozinha. No mesmo instante ouvi passos e Amaryllis surgiu enxugando a mão em um pano que estava amarrado em sua cintura.
— Graças! Você chegou bem.
— Sim, Graças. A viagem foi tranquila e sem nenhum susto.
— Você deve estar exausta e faminta.
— Estamos. Não vim sozinha, um cavaleiro me acompanhou.
— Péricles. Eu sei. Douglas foi ajudá-lo com os cavalos e você pode relaxar, não se preocupe com bobagens.
— Conhece Péricles?
— Claro. Já foi um dos homens de meu pai. E se você não fosse uma Princesa tão distraída, saberia disso. Péricles veio para Líath quando tínhamos aproximadamente dez anos de idade. E desde então serve de intermediário para meu pai.
— Intermediário?
— Um apoio entre as comunicações do Castelo e Líath.
Sentia-me idiota sempre que falavam do esquema de espionagem. A cada dia me surpreendia com um detalhe. Esbocei um sorriso, e pretendia perguntar pela comida, quando a porta se abriu num estalo.
— Iago!
Diana correu para os meus braços, e era nítido que sentira minha falta todo esse tempo. Minha, não. Sentira falta de Iago, o soldado que a salvara das garras de meu pai. Abracei-a, pensando qual seria sua reação ao saber da verdade.
— Você está linda, falei com franqueza. Estava com os cabelos na altura dos ombros e parecia um anjo sorrindo.
— Diana sentiu muito sua falta esse tempo todo — comentou Amaryllis, provavelmente mais para se fazer notar do que para me informar algo que era óbvio.
— Eu sabia que você voltaria — disse a jovem, euforicamente — Veio me buscar não é?
— Sim, eu vim — confirmei.
— Eu não disse, Má? Não disse que ele ia voltar?
Amaryllis e eu nos olhamos em silêncio. Ainda não era hora de Diana saber a verdade. Eu pretendia contar quando já estivéssemos na segurança de Líath: não sabia qual seria sua reação.
A refeição foi farta e regada a risos. Douglas, muito mais simpático do que eu poderia supor, pulava de uma piada a outra e mantinha o silêncio afastado. Diana olhava-me, inebriada, e isso me causava agonia. Péricles observava-nos com seriedade, e era impossível saber o que pensava. Não o conhecia o suficiente para fazer suposições.
Não tive ânimo para prolongar a conversa. Amaryllis me acompanhou ao quarto de hóspedes, um ambiente limpo, mobiliado apenas com uma cama, um pequeno armário e a tina de banho a um canto. Minha amiga retornou depois, trazendo água quente e se ofereceu para me ajudar durante o banho, mas eu recusei — era capaz de fazer isso sozinha. Tive o cuidado, no entanto, de pedir a ela que afastasse Diana da casa. Temia que a menina invadisse meu quarto. Amaryllis acenou com a cabeça, e vi que ela concordava com meus temores.
O cansaço fez o sono chegar rápido. Não sei quanto tempo se passou, mas o corpo ainda doía de cansaço quando um toque sutil em minhas costas. Fiquei parada, de bruços, olhos abertos para a escuridão. Então senti novamente. Um toque, seguido de um movimento. Não precisei virar para saber quem era.
Diana.
Tentei me levantar, mas a garota foi mais ágil e se deitou sobre mim. Colou seus lábios nos meus, antes que tivesse tempo de protestar. Empurrei-a pelos ombros mas, louca de amor, forçou seu peso contra meu corpo e mergulhou as mãos dentro de minhas roupas.
Então parou, aterrorizada, e me olhou como se eu fosse o diabo em pessoa.
Senti-me embaraçada, sem ação. Não sabia o que fazer.
— O que está acontecendo?
Sua voz era trêmula, cheia de dúvidas e esperanças. Não concebia ainda a nova realidade: estava perdida em um hiato que ia de Iago para a pessoa que eu realmente era. Em breve saberia. E que sentimento de irrealidade cairia sobre ela? Não era apenas Iago que deixava de existir — era Aléssia que ganhava corpo e carne. E isso mudava tudo.
Não respondi. Não sabia o que dizer. E meu silêncio foi minha condenação.
Com um tapa em meu rosto Diana saiu do marasmo. Depois me encarou por um instante, como se esperasse encontrar Iago milagrosamente de volta. E como tal não aconteceu, atirou-se contra mim, os pulsos martelando freneticamente, os gritos acordando casas no raio de um quarteirão. Em seguida era Amaryllis e Douglas tentando contê-la, um grito que se rompeu em lágrimas e… silêncio. E eu ainda parada sem saber o que dizer.
Tudo aquilo era uma dor com a qual eu não contava. Por todo o caminho entre Líath e Forte Velho havia imaginado como seria o momento em que Diana descobriria a verdade. Imaginava-me contando, com cautela. E, na minha ilusão, Diana entendia sem nenhum esforço.
Agora ela estava ali, odiando-me. E eu não sabia o que fazer.
— Você me enganou! — ela disse por fim, e havia uma dor pesada naquelas palavras. — Você me enganou! Pensei que você fosse um homem! Por que você me fez pensar isso?
— Porque era isso o que você via. E era isso que você ia entender.
Surpreendi-me com minha própria voz. E Diana também. Então ela parou, e meus amigos a soltaram. Continuei falando, pausadamente, com uma calma fria que era muito divergente do que eu realmente sentia.
— Já era suficientemente perigoso sermos uma menina inexperiente e um jovem soldado desertor. Seria muito pior se fossemos duas meninas inexperientes. Por que, ao contrário do que você imagina, Diana, eu estava tão assustada e perdida quanto você. E, no entanto, sabia que se não me controlasse, nós duas morreríamos. Nós não deveríamos ter nos encontrado. Nunca. Jamais! Foi um acidente. Te salvar, foi um acidente que mudou a minha vida para sempre. E a sua. Eu não deveria ser Iago por mais do que algumas horas. E você, agora, não devia estar viva. Entretanto, quis o destino que as coisas se complicassem. Eu não deveria estar na sua aldeia durante o massacre, mas minha rebeldia me levou até lá. Ainda assim não, deveria ter tomado conhecimento de sua existência, mas o destino me fez vê-la. Me fez ouvir o que meu pai pretendia. E, então, eu não tive mais nenhuma escolha. Agora aqui estamos, nós duas, com as vidas entortadas.
Acho que ela tentava organizar as coisas na cabeça, por isso ficou um longo tempo em silêncio. Estava de volta aos horrores daquela noite. Com certeza estava revendo o povoado queimando, as pessoas mortas, os soldados que a levaram por ordem do Rei, a tenda em que esteve amarrada, e Iago surgindo das sombras para libertá-la. Talvez seus pensamentos tenham ido além, ao período em que vivemos na Floresta Escura, aos dias em que, desconfiada e relutante, apaixonou-se por Iago.
— Seu pai? Você é filha de algum soldado? Por que alguém precisa se passar por um homem…
Não lhe dei tempo de terminar a pergunta, já sabia onde queria chegar.
— Porque não existem mulheres no exército, não é? E, para poder me infiltrar, eu precisava ser um soldado. E não, não sou filha de nenhum soldado. Provavelmente seria mais feliz se fosse.
— Você se infiltrou no exército? — e olhou para Amaryllis, como se buscasse uma confirmação — Pelos rebeldes? Para espionar pelos rebeldes?
— Não — respondi secamente — Foi por minha conta e risco mesmo. E foi uma idiotice, admito. Mas uma idiotice que salvou sua vida.
— Salvou a vida de Diana e a sua própria. E provavelmente salvará o reino. Mas foi mesmo uma idiotice, e não quero pensar no que teria acontecido se seu pai lhe descobrisse infiltrada.
— A essa altura eu estaria acastelada — comecei a responder para Amaryllis, mas Diana me interrompeu, aflita. Acho que um esboço da realidade passava por sua cabeça. Mas ela não acreditava. Não queria acreditar.
— Quem é você, afinal de contas?
— Sou a filha do Rei — disse com simplicidade, sem enfatizar nenhuma das palavras. Os olhos de Diana se arregalaram, mas ela não disse nada. Então eu explicitei a informação, para que as coisas se concretizassem na cabeça dela — Sou a filha do Rei Aran.
— Aléssia — balbuciou, incrédula. Depois sorriu sarcasticamente — Acha mesmo que vou acreditar nisso? Essa Princesa que ninguém nunca viu ou….
— Já lhe disse milhares de vezes que Aléssia e eu fomos criadas juntas, Diana. Achei que você já tinha parado com essa bobagem. Vivia me enchendo de perguntas sobre como era a Princesa.
— E você fugia delas. Só falava de Aléssia quando queria.
— Fugia das suas perguntas, porque algumas respostas poderiam ser perigosas.
— Estamos em guerra — disse Douglas — não se esqueça disso. Algumas coisas precisam ser guardadas em segredo.
— Como o paradeiro de Aléssia, por exemplo — complementou Amaryllis.
Na manhã seguinte eu me sentia exausta. Meu café foi servido na casa da praça, mas Amaryllis e Douglas foram ao salão comunitário. Quebrar a rotina levantaria suspeitas. Depois de comer, aproveitei a casa vazia para relaxar na tina de água quente. Partiríamos em duas ou três horas. Ao contrário da viagem anterior, precisávamos chegar em Líath já depois do anoitecer, protegidos pela escuridão. Não vi Diana até o momento de montar nossos cavalos.
A cidade estava movimentada, e alguns curiosos nos observavam, por isso Amaryllis nos desejou bom retorno a Luzerna, e fez isso em voz alta, com a maior naturalidade. Fiz uma meia reverência a ela, deixando claro que minha posição social era inferior, depois montei e girei Amora, enquanto Péricles e Diana faziam o mesmo com seus cavalos. Seguimos em silêncio até o sol passar do centro do céu, então paramos para dar água aos cavalos e comer.
Amaryllis nos dera uma provisão de carne seca, pão e hidromel. Péricles e eu falamos sobre assuntos tolos como o tempo e a população na estrada. Também expressamos nossas preocupações com as patrulhas da estrada, mas fizemos isso em voz baixa, pois pessoas passavam o tempo todo. Coloquei algumas folhas de Losna na boca, mais por hábito que por desejo, e em todo esse tempo Diana permaneceu calada.
Seguimos a meio trote, como se não tivéssemos pressa. Andávamos à esquerda da estrada e quem nos visse pensaria que contornaríamos a Floresta Escura, na direção de Luzerna. Mas ao invés disso, assim que as trevas tomaram conta do mundo e a estrada ficou vazia, galopamos a toda velocidade para Líath.
Os muros da cidade estavam apagados. Era uma tradição desde que Líath se tornara abrigo do exército ilegal. Corremos em direção aos portões, meras sombras no escuro. Percebi as sentinelas preparando seus arcos e continuei cavalgando até estar à distância de um tiro. Então puxei as rédeas e Amora empinou as patas dianteiras. Puxei para trás o capuz e ergui uma Pedra da Luz que brilhou por um instante apenas. Ouvi a sentinela gritar e pouco depois o portão se abriu. Entramos a galope rápido e os gritos percorriam toda a muralha e, ao mesmo tempo, da muralha para o centro da cidade.
— A Princesa retornando sã e salva!
Vivas eram gritados à medida em que passávamos, e a praça estava cheia quando a alcançamos. Olhei Diana por um instante e seu olhar era de assombro. O povo em Líath me amava e assim, pela primeira vez, a menina se viu cavalgando ao lado da Princesa. E eu estava feliz por retornar ao lar.
Olhei os prédios, o povo me saudando, e pela primeira me senti realmente em casa. Empinei Amora em um comprimento exibicionista e os aplausos e risos encheram um pouco mais meu orgulho. Até que alguém segurou as rédeas de Amora, e a sossegou para que eu apeasse.

Era Alex, a última pessoa que eu esperava encontrar naquele momento.



Notas:



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6 Respostas para Capítulo XLI

  1. Que final apotéotico, Aléssia entrando na cidade de forma triunfal, dando até showzinho, hahahahahah….quero ver domar Alex….é, queria entender porque Diana ressurgir agora…essa vai ser fácil explicar pra Alex, até porque Diana não entrou no harém da nossa querida princesa…quero ver quando Alex descobrir sobre Lara…nossa princesa e sua libido…opa, falando nisso, podia rolar aí um bis entre Aléssia e Alex, hein ? A primeira vez foi memorável….

    • “Que final apotéotico, Aléssia entrando na cidade de forma triunfal” >> é a princesa sendo princesa, Angel ❤️

      Será que vai ser fácil falar para Alex sobre a Diana? Tenho cá minhas dúvidas. Mas… a Alex é uma caixinha de surpresas. Vamos ver o que pode acontecer, não é?

      Quanto a um bis entre Aléssia e Alex, o problema é o clima de guerra: entre elas e no mundo à volta delas.

      Beijos, Angel, obrigada pelo comentário.

  2. Gente, eis que a Diana reapareceu! Doida de amor e ódio, agora! Resta saber porque pediram pra buscar a moça…
    Ai, que ansiedade!
    Hoje comprei o livro Quase Nada, por indicação sua. Muito obrigada! Adorei os contos!
    Parabéns pelo projeto!

    • UAU, você está lendo Quase Nada! ? A Fabiula é uma escritora maravilhosa. Eu adoro os romances dela, mas arrisco dizer que ela é ainda melhor como contista. Quase Nada não tem um único texto banal ou supérfluo, a começar pelo conto-título, que é de doer a alma de tão bonito e perfeito.

      E por aqui temos o retorno de D. Diana. Pois é, temo que minha xará vá causar algumas confusões. Vejamos.

      Beijos, querida, e obrigada pelo comentário ?

  3. Oi Diana

    Deu ruim pra Alê com a Diana,hein?! Rsrrsr

    Quero ver como vai ser com a Alex, será que vão conseguir se entender?

    Abrs ?

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