Aléssia

Capítulo XLVIII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XLVIII <<<

E então eu pertencia à Pedra.
Sei que meu pai cortou meu pulso com a ponta de Serbal. Sei disso porque conheço o ritual. Mas não senti nada. Ao fechar os olhos, a consciência do local desapareceu. Não havia mais Lara, nem remorso, nem meu pai, nem espada, nem Bosque, nem Pedra.
Havia apenas luz e uma coruja. Mas quando pensei a respeito, a luz se condensou em um campo extenso num ensolarado dia de verão. A coruja estava à minha frente, no único galho da única árvore de toda a paisagem. E levantou voo quando me aproximei.
Voou para o Norte e, sem nada melhor para fazer, eu a segui. No início era apenas uma caminhada, mas quando me dei conta corria por um gramado que se tornava mais espesso. Algum tempo depois meus pés lutavam contra ramos que dificultavam a passagem e, sem saber como, embrenhei-me em uma pequena floresta que antes simplesmente não estava ali.
A coruja mantinha seu voo para o Norte. Para o Norte, sempre para o Norte. E quando a vegetação se tornou tão espessa que eu já não podia mais saber se era dia ou noite, pousou em um gigantesco freixo.
As raízes da árvore eram esplendidas. Seu tronco tinha bem mais de um metro de diâmetro. A copa perdia-se em alturas invisíveis e sua casca era espessa como uma muralha de escudos.
A ave olhava para baixo, para as raízes. Olhei-as com atenção e percebi uma abertura grande o bastante para uma criança entrar. Ajoelhei por instinto e, enquanto analisava o buraco, senti um empurrão. Deslizei por um pequeno túnel de barro e me vi na antessala de uma caverna.
Parecia iluminada por velas, embora não pudesse vê-las. Ouvi o pio da coruja muito alto, atrás de mim, mas quando me voltei para o som, vi minha mãe.
Usava um lindo vestido branco, assim como brancas eram as flores que ornamentavam seus cabelos cor de fogo. Sorriu ao me ver, mas havia lágrimas em seus olhos. Chamou-me com um gesto e me acolheu em um abraço que trouxe para fora toda a dor que eu sentia. Chorei em seus ombros por sua morte quando eu tinha apenas três anos. Chorei pela morte do pai amoroso que eu conhecera em minha infância. Chorei pela morte de Lara, que perdeu a vida apenas por me proteger. Chorei pela morte de quem eu era porque, sabia, a partir daquele instante não teria mais a liberdade de minha alma.
Maura secou minhas lágrimas com beijos nos meus olhos. E então eu vi.
Vi o Bosque e vi a Pedra. E com os braços estendidos sobre Ela, um homem e uma mulher. Ruivos como eu. Altos como eu. Nobres como eu. O homem usava minhas cotas de malha e tinha Brenda em sua cintura. A mulher usava minha túnica cerimonial e, de seu cinto de corda, pendia meu punhal. A espada de meu pai, Serbal, colhia-lhes o sangue como oferenda. Um filete de sangue escorreu do braço de cada um e gotejou sobre a Pedra. E assim começou o rito.
Da Pedra ergueu-se um homem e dirigiu-se à mulher. Tomou-a pelo braço e levou-a para dançar. Sussurrava palavras doces a ela e, mesmo distante, eu podia ouvi-las: você terá todo o ouro que quiser. Será eternamente bela e desejada. Nada a aborrecerá. Seus problemas serão por mim solucionados.
Suas palavras soavam em meus ouvidos como uma música angelical. A mulher deitou o rosto sobre os ombros do homem, que era branco como cal e calvo como uma rocha. Mas quando a dança se tornava mais sensual, o outro homem retirou Brenda da cintura e atacou o casal.
O par se afastou da lâmina, a mulher recuando assustada. Mas não houve briga. Os dois homens olharam-se em desafio e o calvo sussurrou uma proposta tentadora. Você terá poder. Todos se curvarão a seus pés. Terá em sua cama a mulher que desejar. Será temido e respeitado, conquanto que siga meus conselhos. Eu lhe guiarei. Eu lhe mostrarei como ser Rei dos Reis. Seja meu servo e todos os homens serão seus escravos.
E ouvi essas palavras como se contivessem mel. Senti-me tentada a oferecer-lhe minha espada e meu juramento. O homem ruivo ajoelhou-se e esticou o punho de Brenda ao homem-pedra. Mas a mulher saltou sobre os dois com um grito de fúria, o punhal em uma das mãos ameaçadoramente apontado ao homem calvo. O outro recolheu a espada e afastou-se, fraco e atordoado.
A Pedra aproximou-se novamente da mulher. Seduziu-a outra vez com palavras ardilosas. E quando essa estava a ponto de fraquejar, novamente o ruivo atacou com a espada. E foi por seu turno adoçado com as propostas sedutoras da Pedra enquanto a mulher, ofegante, recuperava-se do discurso medonho. E quando o homem ruivo encontrava-se pronto a entregar sua devoção à Pedra, a mulher o salvou.
O homem-pedra afastou-se dos dois, aterrorizado. Depois se aproximou, como se munido de uma ideia. Abraçou homem e mulher e sussurrou-lhes palavras agradáveis aos ouvidos. Mas quando as palavras cegavam a mulher, o homem agredia a Pedra, e quando as palavras seduziam o homem, a mulher atacava o homem calvo.
Desconcertada, a Pedra abraçou-os com mais força. Queria controlá-los. Precisava controlá-los. Mas, como se percebessem que juntos eram mais fortes, o casal empurrou o homem que caiu em um abismo.
Não soube o que houve com o homem-pedra. O casal correu abraçado, fugindo do cativeiro em que estiveram retidos. E eu fui com eles.
Um aroma campestre me trouxe de volta à caverna. Senti o abraço de minha mãe como jamais seria possível nessa vida. As flores de sua guirlanda brilhavam, levemente avermelhadas.
— Essa é sua benção, minha filha, o que lhe salva da maldição.
Não houve tempo para entendimento nem para perguntas. A voz de meu pai sussurrava palavras de carinho. Senti-me febril e percebi que era carregada em uma liteira. Depois não vi mais nada.
Lembro-me de Malvina ter estado aos pés de minha cama por várias horas. Obrigou-me a tomar ervas e me fez mastigar folhas que, segundo ela, iriam me fortalecer. Por dentro sentia-me gélida, morta.
Passaram-se dois dias dessa forma. No terceiro vieram os sonhos.
Havia uma floresta densa que, em muitos detalhes, lembrou-me a Floresta Escura. Essa, porém, era muito mais extensa e povoada por seres primitivos. Conheciam a terra e seus deuses. Falavam com os animais. Viviam em uma comunidade unida e equilibrada. Não tinham inimigos. Desconheciam a guerra. Mas em uma ocasião conheceram a traição, o assassinato e a tragédia.
Chamavam-se a si mesmos de Os Filhos da Terra e não conheciam a ganância ou a inveja. Todos os bens eram partilhados, cada homem e cada mulher era respeitado por ser aquilo que era. Não havia crimes nem discórdias nem disputas. Mas tudo isso acabou da pior forma possível.
Os Filhos da Terra eram liderados pelos Mais Velhos e, esses, pelo Mais Velho de Todos. A tribo prosperava e espalhava-se por uma vasta extensão da floresta. Organizavam suas casas entre os troncos de árvores, mas partilhavam as refeições em uma área pública, onde toda a comunidade se reunia três vezes ao dia. Foi ali que a neta do Mais Velho de Todos encantou o Grande Guerreiro, chefe do grupo de caçadores.
Eram jovens e importantes em sua tribo. Casariam, teriam filhos. Namoraram por nove luas, conforme a tradição. Mas não completaram o ritual.
Na noite em que consumariam o casamento, a noiva desapareceu. Grupos de caçadores vasculharam a mata. Nove dias de busca, nove dias de aflição. Nove noites de lágrimas do Grande Guerreiro.
Foi Mirim, o mais novo entre os caçadores, quem primeiro os viu. Estavam no alto de uma sequoia, ocultos entre as folhas largas. A noiva queria gritar, mas não ousava. E era o filho do ferreiro que estava com ela.
Acontece que o imprudente apaixonou-se pela moça. Ela, por sua vez, correspondia ao desejo do Grande Guerreiro. Outro homem respeitaria o desejo dos amantes, mas o filho do ferreiro invejou-os, e quis a jovem para si. E roubou-a.
Foi assim que os Filhos da Terra conheceram a inveja e o crime. E assim, pela primeira vez, um deles foi perseguido por seus irmãos. E, uma vez capturado, foi julgado pelos Mais Velhos que decidiram que o filho do ferreiro não era confiável e não poderia mais viver entre eles.
Mas não havia outro lugar em que se pudesse viver. O filho do ferreiro foi, por sua violação, condenado à morte.
Coube ao Grande Guerreiro e seu grupo de caçadores a responsabilidade de executar a pena. Levaram o filho do ferreiro treze luas para dentro da floresta. E quando a última lua chegou, cavaram um buraco com a altura de treze homens e a largura de treze palmos. O filho do ferreiro foi lançado ao buraco e a terra devolvida a seu lugar.
Os homens dançaram sobre a terra até o sol furar as folhas e iluminar a cova profunda em que o filho do ferreiro foi dado de comer à terra. Dançaram para extravasar sua dor. Dançaram para oferecer a morte aos deuses. Dançaram0 para nivelar a terra. Dançaram para que ninguém nunca mais pudesse encontrar aquele lugar amaldiçoado, para que ali o filho do ferreiro morasse eternamente só.
O Grande Guerreiro voltou para sua casa e para sua noiva.
E todos teriam sido felizes, se a semente que gerou o filho da neta do Mais Velho de Todos fosse de seu marido, e não do filho do ferreiro. O menino veio com a índole invejosa do pai. E, através dele, o crime passou de geração em geração, até que cada família brigasse entre si e já não houvesse mais um povo chamado Filhos da Terra.
Da guerra entre clãs que destruiu o povo antigo, sobreviveu um único grupo que migrou para o sudeste, para as proximidades das Terras Vazias, e ali construíram uma povoação cercada por paliçada, firmando-se como donos da terra. Mantinham os conhecimentos antigos e tornaram-se curandeiros famosos. Usavam o fogo e as cinzas de uma mistura de ervas para realizar tanto os trabalhos de divinação quanto de cura, e foram apelidados de Cinzentos. Depois de doze gerações, o povoado se tornou conhecido como Líath, a terra do povo cinzento.
A floresta desprotegida abriu passagem para povos estrangeiros, que migraram pela foz do Rio Raso e, espalhando-se pelas planícies, formaram pequenas aldeias nas bordas da floresta.
Um grupo, um único, não seguiu essa corrente migratória. Realizando uma façanha considerada impossível, vieram no sentido oposto, enfrentando as rochas pontiagudas do Monte Vermelho. Nove luas de luta contra as pedras e mais de uma centena de mortes depois, um pequeno grupo atingiu as planícies do Rio Raso e fixou-se perto de um curso de água, já no interior da antiga floresta. Chamavam a si mesmos O Povo do Ferro e conheciam a arte da fabricação de pontas de seta. Tal habilidade lhes dava força e poder, e a cidade que construíram tornou-se maior do que qualquer aldeia local. Chamaram-na de Âmina em homenagem à terra de onde haviam migrado.
A floresta desaparecia na mesma medida em que as aldeias necessitavam de casas e paliçadas, mas Âmina e Líath, sendo adoradores dos deuses da terra, conservavam a vida selvagem em suas cercanias.
Tudo isso eu vi em meu sonho e ainda mais. Vi os ferreiros de Âmina tornarem-se conhecidos em terras estrangeiras e atraírem centenas de aventureiros. Vi a cidade crescer e espalhar-se por muitas milhas, abrindo espaço entre as árvores da antiga floresta. Vi o clã formador da cidade se dividir em três e disputar o poder.
Também vi o Forte Velho ser erguido para proteger a região da ganância de povos invasores. Vi o povo de Líath render graças aos deuses antigos e jurar proteger a Floresta Antiga. Vi o exército de Âmina devastar aldeias pelo raio de quinze milhas e aumentar seu território. Vi os clãs brigarem entre si e o poder de Âmina diminuir. E vi Leon Amaranto chegar, vindo pela foz do Rio Raso, e oferecer seus serviços a um dos muitos mestres ferreiros do povoado.
O dia havia amanhecido e o Monte Vermelho parecia gigantesco na paisagem de minha janela. Acordei cansada, sob o peso de meus sonhos. Porque além da chegada de Leon, vi sua expedição pela Floresta Escura.
Antes de Leon aquela floresta era conhecida como Floresta Ancestral. Foi quando o exército do então Rei de Âmina fracassou em atravessá-la, que a floresta ganhou seu nome atual. Em meu sonho eu vi o que Leon fez. Vi o que ninguém nunca soube, porque nunca foi dito nem mesmo de pai para filho. Adquiri um conhecimento que só um Sonhador pode obter. E foi exatamente assim, em um sonho no meio da floresta, que Leon conheceu a Pedra.
Não, não a pedra. O Espírito da Pedra.
Foi esse espírito quem apareceu em sonho a Leon, e convocou-o à sua presença. Leon vagou três dias e três noites sob as instruções daquele espírito. E ao chegar ao local, encontrou a Pedra nascida no centro do que outrora foi uma cova, e a seu lado um jovem que, novecentos anos antes, foi enterrado vivo por ter roubado a noiva de um guerreiro.

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Notas:



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6 Respostas para Capítulo XLVIII

  1. O que dizer dessa historia? Nada menos do que maravilhosa.
    Aléssia tomou, mais uma vez, do amargo de constatar o que é seu pai in loco, mas creio que vai para além, o amargo da sina familiar por parte de pai. Ainda bem que em suas veias tambem corre o sangue de Líath.
    Fico querendo sempre mais. ?
    Um beijo grande Rocco??

    • Carol, que honra! Fico toda besta sempre que você comenta um texto meu

      A tradição de sua família está fundada num lastro de dor, crime e vingança. A questão é saber se ela será capaz de quebrar essa corrente maligna

      Gratidão, Carol, um beijo enorme

  2. ?????
    Estou de queixo caido com esse capítulo!! Você é incrível ???

    Essa passagem me fez lembrar da história de Adão e Eva.haha
    Cheguei a imaginar se caso a serpente tivesse seduzido os dois juntos o final não seria parecido com esse ? kkkkk

    Ameiii, ameii??

    PS: não superei a morte da Lara ainda???

    • Ownnnnn Jamile, fiquei tímida agora

      Achei interessantíssima sua associação com Adão e Eva, embora não tenha sido a minha intenção. Mas o paralelo que você traça é perfeito! Adorei essa forma de ver a história.

      Quanto à Lara, é uma morte difícil de superar. Cada vez que leio aquela cena eu choro, mas não há o que fazer. Talvez, quem sabe, escreva um conto ou outra história para homenagear Lara. O que acha?

      Gratidão por seu carinho, Jamile, e pelo delicioso comentário. Muitos beijos (e amanhã temos Aléssia de novo

  3. Essa benção veio em boa hora…
    E também o entendimento de onde tudo veio.
    É… Agora é ver como será o reinado da princesa…
    A pergunta que não quer falar: “Onde estará Alex?”
    Gratidão pelo capítulo, por seu tempo dedicado à Alessia e à nós leitoras!

    • Calma que ainda tem água pra passar por baixo dessa ponte, Naty. Afinal, Aléssia agora está nas mãos do pai.

      “A pergunta que não quer falar: “Onde estará Alex?”” Também to querendo saber! Onde tá Alex que não aparece quando a gente precisa? To pensando seriamente em demitir essa menina! Desse jeito, quando aparecer nem precisa mais! tsc tsc tsc

      “Gratidão pelo capítulo, por seu tempo dedicado à Alessia e à nós leitoras!” Ownnnn Gratidão a você, querida, pelos comentários constantes, pelo carinho, pelo incentivo Um beijo enorme pra você, que sua semana seja maravilhosa

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