Aléssia

Capítulo XVI

POR ƉIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XVI <<<

Segurei a arma ainda no ar e prendi a bainha na cintura. Saboreando antecipadamente a vitória, o jovem oficial se postou no centro de nosso círculo de convidados, espada já desembainhada, pronto para a primeira investida. Ao invés de lhe fazer a vontade, no entanto, agarrei um garrafão de vinho e aproveitei o momento para escapar daquele enfado.

Duane provavelmente pretendeu me seguir, pois ouvi nitidamente a voz de meu pai ordenando que se sentasse. Comecei a circundar a casa principal com a intenção de entrar pela cozinha, anexar Lara ao garrafão e subir para uma festa particular em meus aposentos.

Acontece que, atrapalhada pela bebida e pelo escuro, desviei meu rumo até as proximidades do estábulo real. E qual não foi minha surpresa ao dar de cara com Amaryllis, sozinha, caminhando por ali.

Não faço ideia do que minha amiga de infância poderia estar fazendo naquele lugar escuro àquela hora da noite. Mas era meu aniversário e não nos víamos há mais de um ano. Que mal haveria em cumprimentar uma velha conhecida?

Não pretendia assustá-la, mas tinha medo de perdê-la, tão logo me visse. Então caminhei devagar, meus passos sorrateiros tão bem treinados, e cheguei já com o garrafão em riste, para que ela entendesse que minha missão era de paz.

— Um pouco de bebida para alegrar a noite, querida dama?

Minha chegada causou-lhe um pequeno sobressalto e ela praguejou contra o susto que lhe dei. Não havíamos nos falado mais desde a discussão no bosque. E eu ainda sentia falta de sua companhia, embora isso não estivesse claro para mim o tempo todo. Há alguns anos havia me habituado a não pensar em Amaryllis. Mas agora ela estava ali, numa noite relativamente quente para a época do ano, com os lindos cabelos loiros soltos ao vento.

— Que susto! Que falta de respeito, Aléssia!

— Perdoe-me, a vi sozinha e achei que podia querer companhia e, talvez, um pouco de um bom vinho.

Ela puxou o garrafão de minha mão, mas não bebeu.

— Pelo visto você já bebeu demais por hoje, não é?

— Não, ainda há muito nesse garrafão para ser bebido.

— Para ser bebido por outra pessoa, não mais por você.

E, sem maiores delongas, virou as costas e saiu andando com meu garrafão de vinho.

Agarrei-a por trás e tentei puxar o garrafão, mas ela foi mais ágil e manteve a bebida em seu poder. Fiz nova tentativa, e mais outra ainda, nossos corpos cada vez mais próximos, rodando no escuro, quase numa brincadeira infantil. Eu queria a garrafa, ela não queria me dar. Começou assim, mas de repente eu já não me importava mais, Amaryllis que ficasse com o garrafão se era tão importante. Eu desejava outra coisa. E decidi pegar por bem ou por mal. Foi assim que, numa distração de Amaryllis, puxei-a contra meu corpo e roubei-lhe um beijo.

Ela se debateu, esmurrou minhas costas e, quando finalmente se soltou, começou a gritar toda sorte de ofensas. Não me importei, no entanto. Seu gosto tão sonhado, tão desejado, estava finalmente em minha boca, e tudo o que eu pensava era em conseguir mais. Fiz nova investida, mas dessa vez ela estava atenta e se esquivou. Na terceira, acertou-me um tapa no rosto. Parei por um segundo, atordoada. Aproveitando-se disso, Amaryllis despejou o garrafão em minha direção. O vinho atingiu meus olhos em cheio e caí no chão.

Meus olhos ardiam e Amaryllis saiu de foco. Comecei a esfregar o rosto na grama, desnorteada de dor. Amaryllis, no entanto, gritava por socorro, eu podia ouvir seus passos fazendo vibrar o chão, se afastando.

Tentava me levantar, desajeitada, humilhada, quando percebi que Amaryllis não corria sozinha. Havia o som de outros passos – alguém a perseguia.

Guiada por sua voz, muito mais do que por minha visão comprometida, comecei a correr o mais que pude. Amaryllis corria sério perigo, eu sentia isso com todo o meu coração. E, naquele instante, não me importavam as ofensas que minha amiga houvesse me dito. Também não me questionava se ela era uma traidora ou não, nem mesmo me preocupava quem a perseguia e por qual motivo. No fundo de minha alma apenas uma coisa importava: minha amiga de infância corria risco de vida. Era isso que meu coração me dizia.

Puxei da cintura minha espada, para ganhar agilidade. Com pernas treinadas para a luta, alternei corrida e saltos e, num instante, conseguia perceber o vulto de Amaryllis. Precisei me esforçar um pouco, para perceber o vulto de um homem já bem perto dela. Cortei imaginariamente uma tangente ao trajeto que os dois faziam, antecipei-me na corrida, meus pés ligeiros mal tocando o solo, auxiliando-me a chegar na surdina.

Cansada, acuada, Amaryllis tropeçou e caiu ao pé de uma árvore, no momento em que eu já estava a um braço de distância. Por um ato reflexo, olhei de soslaio para minha direita e percebi o brilho frio da lâmina, descendo na direção da garota. Num último salto parei a espada inimiga com o fio da minha, os braços firmes segurando minha arma e, para meu horror e eto, reconheci quem a agredia. Pela primeira vez na vida, eu estava usando minha espada contra meu pai.

Minha presença, no entanto, não o fez mudar de ideia. Recolheu rapidamente sua arma e em seguida atirou-a com força contra mim. Com destreza desviei o golpe e também o seguinte, Rei Aran com os olhos enfurecidos tentando atingir-me.

Não tive coragem de atacá-lo, mas me defendi como pude, enquanto urrava para Amaryllis fugir. Quando nenhum ruído de seus passos pôde mais ser ouvido, então meu pai atirou sua espada no chão.

— Estúpida! Deixou a bastarda fugir!

— É Amaryllis, meu pai! Como pôde atacá-la desse jeito?

Rei Aran me olhou de perto, os olhos fervendo de raiva.

— O que há com você, Aléssia? Não pode mesmo ver uma saia, não é? Aquela maldita lhe agrediu, humilhou e o que você faz? Defende-a quando seu pai tenta lhe fazer justiça?

— Fazer-me justiça? Com a espada? Que tipo de louco é você? O que pretendia? Matá-la?

— Matá-la! Ninguém! Ninguém, Aléssia, ninguém agride intencionalmente um Amaranto e continua vivo pra contar! Foi assim que nos tornamos poderosos, é assim que manteremos nosso poder!

Recolheu sua arma em seguida e saiu ríspido, pisando duro. Caminhava na direção da Guarda e, eu sabia, daria ordens para matar Amaryllis.

Com os olhos doendo muito, corri para a casa principal. Precisava avisar Mestre Renan. Entrei pela cozinha, ordenando que um criado o encontrasse na festa, depois puxei Lara para um canto reservado, meu nervosismo explícito na maneira como eu atropelava as palavras.

— Preciso que você encontre Amaryllis pra mim. Temos que evitar uma tragédia. Confie em mim, não posso explicar agora, mas encontre-a a qualquer custo e diga-lhe que o Rei Aran a jurou de morte.

— Jurou de morte? Amaryllis? Mas, Alê…

— Não temos tempo, Lara, depois explico, vá e encontre Amaryllis antes do meu pai!

Do salão principal fui para a cozinha onde Mestre Renan tentava, insistentemente, conseguir alguma informação com o criado que fora lhe chamar.

— Fui eu quem o chamou, Mestre. Precisamos achar Amaryllis, é urgente.

Enquanto explicava, tomei a iniciativa de arrastá-lo em direção ao estábulo. Meu tutor me seguiu confuso, tentando entender o que sua filha tinha a ver com a situação. Procurei Lorde e Amora nas baias e os preparei para uma pequena cavalgada. Antes de montarmos, no entanto, tomei coragem para contar o que havia acontecido.

— A culpa é toda minha, mestre, e você tem todo o direito de me matar, se quiser. Ofendi sua filha gravemente e ainda a coloquei em perigo de vida.

— Do que está falando, Aléssia? Você ofendeu minha filha? Isso é impossível! Sei quanto você considera Amaryllis.

Abaixei o rosto, envergonhada.

— Eu poderia atenuar a situação, dizendo que estava bêbada, mas isso não é desculpa pra falta de caráter, nós dois sabemos disso. O que fiz à sua filha foi profundamente grave, eu sei, e me envergonho. Mas agora não temos tempo a perder, precisamos encontrá-la antes de meu pai.

Segurei Amora e me preparei para montá-la, mas meu tutor não fez menção de montar seu cavalo.

— Antes de seu pai? Do que você está falando, afinal? Não vou a lugar algum enquanto não me explicar toda essa loucura, Aléssia.

Senti o calor de minha vergonha aquecer meu rosto, mas mantive minha cabeça erguida, o olhar direto para meu tutor.

— Beijei Amaryllis à força.

— Céus!

— Arrependo-me imensamente, Mestre. Não sei o que me deu. Mas ela estava ali, tão perto, tão linda e…

Tomei fôlego antes de continuar, os olhos azuis de Mestre Renan haviam adquirido uma tonalidade escura, contrariada.

—… eu a amo tanto, Mestre… e há tanto tempo…

Ele soltou um suspiro agoniado, olhando-me com tristeza.

— Foi por isso aquela sua briga com Douglas no estábulo, não é? Sempre tive medo de dar ouvidos à minha desconfiança….

— Lamento muito, muito mesmo, Mestre, mas infelizmente não há como mudar o que já fiz. A única coisa que posso fazer é impedir que as coisas fiquem ainda piores. Amaryllis se revoltou com minha atitude, com toda razão, e me agrediu com um tapa. Se fosse apenas por mim, não passaria disso. Mas, infelizmente, meu pai viu a agressão e a jurou de morte.

Montei Amora, apavorada com nossa demora, e saí a galope. Mestre Renan alcançou-me em seguida.

— Sei onde Amaryllis está, venha comigo, Aléssia.

Cavalgamos para noroeste, a região da residência dos nobres. Emparelhei meu cavalo com o de Renan para lhe dizer o que me parecia óbvio:

— Amaryllis sabe que meu pai está furioso, não acho que se esconderia em sua casa ou mesmo na de Douglas, mestre.

— Com certeza não. Mas não é para lá que vamos.

Paramos nas proximidades da casa de um oficial do exército, a quem eu conhecia apenas de vista. Mestre Renan me pediu para aguardar ali, tomando conta dos cavalos. Não tinha mesmo a intenção de entrar, por isso não vi mal algum em seu pedido. Voltou em menos de cinco minutos acompanhado por Amaryllis e Douglas.

Foi difícil olhar nos olhos da garota que, durante tantos anos, havia sido minha referência de mundo. Seu olhar era raivoso e eu nem sequer podia culpá-la por isso.

— Você tem toda razão de me odiar, Amaryllis. Gostaria de poder voltar no tempo, mas é impossível.

Ela montou em Lorde sem me dirigir palavra. Douglas, no entanto, parou ao lado de Amora e me disse sério, mastigando a raiva antes de soltar as palavras.

— Uma vez você, Aléssia Valentina, me ameaçou de morte caso eu fizesse algum mal à Amaryllis. Agora você coloca a vida de minha amada em risco. Eu deveria matá-la por isso. Não posso fazê-lo aqui dentro desses muros, por motivos óbvios. Mas tome muito cuidado quando sair da redoma, Aléssia. Eu estarei lá fora lhe esperando, e vou fazer justiça com minhas mãos.

Não respondi, simplesmente porque não havia resposta possível. Em seu lugar eu teria me assassinado ali mesmo e nem me importaria de passar a vida como um proscrito.

Douglas montou em Lorde com Amaryllis na garupa. Meu amor de infância estava indo embora. Senti uma dor medonha no peito.

— Amaryllis! Gritei sem pensar, com a voz embargada de emoção. Para meu eto, ela me olhou nos olhos.

— Eu te amo.

— É uma pena que eu não possa dizer o mesmo, Aléssia Valentina de Amaranto.

E sumiu na garupa de Douglas.

Minha estupidez juvenil alterou o curso de nossas vidas de forma irremediável. E agora eu estava frontalmente contra meu pai e afastada de meu tutor. Em um único golpe, perdi todos os meus alicerces.

Na primeira reunião de conselho após o incidente, meu pai decretou Amaryllis Inimiga da Coroa e ordenou que fosse capturada viva ou morta. Levantei minha voz contra ele em pleno conselho e a discussão só terminou, porque recuei ante sua ameaça de mandar me prender. Em outros tempos, eu gargalharia pensando se tratar de uma brincadeira. Agora, no entanto, não tive dúvidas de que falava sério. Saí no meio da reunião, sem respeitar a hierarquia.



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para Capítulo XVI

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.