Aléssia

Capítulo XVII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XVII <<<

Nas primeiras horas da noite, meu pai entrou em meus aposentos, sem sequer anunciar sua presença. Antes que eu pudesse cumprimentá-lo, ergueu sua mão contra mim:

— Não ouse sair de seu quarto sem minha permissão, Aléssia. Não tenho tempo para crises juvenis. Vou lhe trazer de volta à razão, por bem ou por mal. Ficará aqui, reclusa, até que eu mande lhe chamar. A solidão lhe dará tempo para pensar em suas últimas atitudes. Espero que se lembre a quem deve obediência, lealdade e amor.

Já ia saindo, quando parou, pensou por um segundo e depois completou:

— Agradeça-me por ser bondoso o bastante para permitir que essa aia continue lhe fazendo companhia. Mas basta uma única tentativa de cruzar a soleira dessa porta, Aléssia, e mando essa menina pro inferno! Coloco você sobre os cuidados de uma criada de minha confiança. Não faça com que eu me arrependa desse gesto de carinho.

Por um instante, temi que tivesse me deixado sob a vigilância de guardas, mas uma ronda de Lara pela casa me aliviou: as grades que me prendiam estavam apenas em minha consciência. Aquilo era um castigo e um teste de obediência. Não era uma prisão. Ainda.

Foram treze dias sem contato com o mundo externo. Na aurora do décimo quarto dia, Lara e eu fomos surpreendidas pela entrada intempestiva de meu pai. Olhou-me cinicamente ao me encontrar seminua nos braços de minha aia, mas não fez nenhum comentário. Também não proferiu nenhuma palavra de carinho.

— Espero que seu espírito esteja mais manso agora, Aléssia. Quero que esteja pronta na próxima lua negra. Iremos dar um passeio no bosque.

— No bosque? Algum motivo esp…

— Não é capaz de adivinhar o motivo por si mesma? Não me envergonhe! Você já foi mais esperta. De qualquer maneira, isso é apenas um aviso, para que você tenha tempo. Quero sua roupa cerimonial impecável. Estarei em seu quarto na primeira hora do anoitecer da próxima lua negra, e quero lhe encontrar pronta.

Olhou com extrema malícia para Lara, antes de completar:

— Até lá pode se divertir com sua vadiazinha particular, não tenho nada contra. Mas depois dessa noite, as coisas entre nós serão bem diferentes.

Saiu sem me dizer mais nenhuma palavra. Horas mais tarde, quando Lara foi buscar minha refeição, fiquei sabendo que o Rei se preparava para uma viagem a um povoado próximo.

— Quando ele vai, Lara?

— Não sei ao certo… parece que amanhã cedo.

— Você sabe o que ele vai fazer lá?

Minha aia ficou levemente corada, como sempre acontecia quando queria me esconder algo.

— Fale, Lara, o que ele vai fazer?

— Ora, tratar de assuntos do governo, o que mais?

Era exatamente isso que eu estava me perguntando: o que mais? A lembrança de nossa visita ao povoado, sua frieza olhando para aquela triste gente, voltou nítida. E os acontecimentos dos últimos dias me diziam que eu nunca conhecera meu pai, não de verdade. Aquele homem correto e justo existia apenas na minha imaginação. Fazia parte da paisagem da redoma em que me enclausuraram. Quem era o Rei Aran, de fato?

— Você sabe, Lara. O que mais? Vamos lá, menina, conte-me o que foi que ouviu…

Puxei-a de encontro a meu corpo e beijei de leve sua nuca. A pele se arrepiou com o toque e minha jovem companheira estremeceu de prazer. Insisti carinhosamente para que me contasse o que ouvira, enquanto meus lábios e dedos a amoleciam o suficiente para perder o raciocínio.

— Eu preciso saber o que meu pai realmente vai fazer, Lara. Não sou mais criança, estou farta de todos me esconderem as coisas o tempo todo. Diga-me o que sabe, por favor…

Seu olhar era triste e preocupado quando me encarou.

— Você quer mesmo saber quem é seu pai, Alê?

— Sim, quero.

— Tem certeza? Isso pode ser mais duro do que você imagina.

— Diga-me o que sabe, sem mais delongas, por favor.

Lara deu um suspiro resignado e se afastou um pouco de mim, escondendo momentaneamente seu olhar do meu. Quando tornou a me olhar, estava resoluta.

— Não fico ouvindo pelos cantos, Alê, ouvi sem querer. Estava passando pelo gabinete de seu pai e eles estavam conversando com a porta aberta.

Ficou uns minutos em silêncio e eu aguardei que criasse coragem.

— Ouvi seu pai dizendo que ia “dar um corretivo” no vilarejo de Salvação…

— Dar um… corretivo?

— Foram essas exatamente as palavras dele, Alê, “dar um corretivo”. Ouvi sem querer, mas aí, claro, apurei meus ouvidos. Pelo que entendi, o vilarejo está dando cobertura a alguns rebeldes. Seu pai quer não apenas coibir isso, quer dar uma lição que sirva de alerta a todo o reino, para que ninguém mais ouse ir contra ele.

Dar apoio a rebeldes era algo grave e, sem dúvida, merecia uma ação convincente. Mas…

As imagens do povoado de Pedra do Sol desfilaram na minha cabeça. Aquele povo formado por homens fracos, velhos, mulheres e crianças… O vilarejo de Salvação seria muito diferente disso? Que corretivo era esse, que meu pai pretendia aplicar? Reforçar a segurança no local não seria mais justo e eficaz?

— Lara, preciso sair daqui.

— O quê? Você enlouqueceu, Alê?

— Preciso seguir meu pai, ver o que ele realmente vai fazer. Você me ajuda?

— Vai acabar presa e… Céus, Alê, nem quero pensar no que seu pai faria…

— Você me ajuda, Lara?

— Você quer que eu te ajude na sua desgraça? Como posso? Claro que não!

— Sem você eu não vou conseguir. É importante, Lara, é muito importante.

A angústia de minha jovem companheira era visível. Ela tinha razão, era arriscado. Mas eu não tinha escolha. Não podia simplesmente seguir inerte o caminho traçado por meu pai. Se as coisas fossem como eu suspeitava que eram, então era o momento de tomar uma atitude drástica.

— Lara, você conhece o povo desse reino melhor do que eu. Acha que o vilarejo que meu pai vai atacar é formado por soldados, por gente treinada para o combate?

Ela abaixou o rosto, as lágrimas despontando na superfície da alma. Com a ponta do pé direito desenhou um imaginário semicírculo no chão do quarto. Balançou levemente a cabeça de um lado para o outro e depois me encarou com as lágrimas escorrendo.

— Ah céus, Aléssia… eu te amo tanto! Tenho um medo tão grande de te perder! Mas… você é a única esperança que temos… Odeio ter que admitir, mas você está certa. Não pode ficar aqui de braços cruzados… Eu vou te ajudar, Alê. Vou te ajudar no que for preciso.

Não havia mais função ou hierarquia entre nós. E, pela primeira vez, senti que Lara expressara seu sentimento completo por mim. Acariciou levemente meu rosto, talvez antecipando a tragédia que estava por vir. Mas, assim como eu, Lara sabia que não podíamos fugir de nosso destino. Então me deu um longo beijo, comunicando seu amor por completo. Agasalhei-a em meus braços com ternura e afeto e, nervosa, pensei na possibilidade de perdê-la.

— Eu também te amo, Lara, minha querida companheira, mulher amada.

Beijei-a com paixão, sofrendo por uma saudade que nunca imaginara sentir. O cuidado zeloso de Lara me faria falta nos próximos dias. Para ser exata, até hoje, vez por outra, ouço sua voz melodiosa me acordando e sinto seu toque suave me ajudando com as vestes…

Naquela manhã, Lara me ajudou a arquitetar um plano. Garota rápida de raciocínio, simpática e muito bem relacionada com os outros criados da casa, em pouco tempo conseguiu o material necessário. O resto dos preparativos ficou a cargo de Casey que, atendendo a uma solicitação minha, chegou a meus aposentos cerca de uma hora antes do alvorecer.

— Espero que seja realmente urgente, Princesa, pois não foi nada fácil sair da cama nesse horário…

— Imagino, meu amigo, e agradeço pelo sacrifício. Mas é realmente importante e só você poderia me ajudar. Inclusive porque o assunto se reveste de tal importância, que eu não confiaria em mais ninguém além de você e Lara.

— Sinto-me honrado com suas palavras, Alteza — disse o velho cabeleireiro, fazendo uma mesura.

— Deixe disso, Casey, você corta meu cabelo desde que nasci! Não precisamos dessas formalidades, não é?

— Como queira, Alteza. Em que posso lhe ser útil?

— Preciso de um corte especial, Casey. Acha que consegue deixar meu cabelo exatamente igual ao de um soldado?

— Um soldado? É um corte um tanto estranho para uma menina, não acha?

Lara e eu nos entreolhamos tentando conter o riso. O velho Casey era bastante apegado a padrões e estética, e eu tinha certeza que ele faria algum comentário do tipo.

— É exatamente essa a questão, Casey, preciso me parecer com um menino. Um soldado. Vou te pedir pra confiar em mim e não fazer perguntas, não quero envolver ninguém nos meus problemas. Quero apenas que me deixe de um jeito tal que, se me virem de uniforme, não possam jamais desconfiar que não sou um soldado. Acha que consegue?

— Com facilidade, Aléssia. Mas não sei se devo. Temo que minha amada Princesa pretenda se meter em alguma encrenca.

— Eu falei o mesmo quando ela me pediu ajuda, Casey — interrompeu Lara — mas a Princesa me convenceu da urgência e necessidade da questão. Você a conhece desde pequena e sabe, tão bem quanto eu, que ela é uma pessoa bastante séria e responsável. Não faria tal maluquice à toa. Corte o cabelo dela, Casey, só você pode nos ajudar e essa questão é importante, ela estará em perigo sem um cabelo muito bem cortado…

— …e o fato de você não fazê-lo não me impedirá, apenas aumentará o risco a que estarei exposta.

— Mulheres! – Casey desabafou mais para si do que para nós, junto com um suspiro irritado de quem se via em posição de fazer algo contra a própria vontade.

Minutos depois, senti uma leve aflição ao me olhar no espelho. Como um simples corte de cabelo podia mudar tanto a fisionomia de alguém? Pela primeira vez reparei como meu olhar era duro, o queixo rígido de maxilares sempre mordidos. A expressão de alguém em armas, aguardando o começo da guerra. Com o cabelo militar, as sobrancelhas grossas e o rosto anguloso, de ossos largos, ganharam realce. Minha aparência era tão masculina, que cheguei a me questionar quem eu realmente era.

— Nunca diga a ninguém que cortou meu cabelo assim, Casey. Para todos os efeitos, você dormiu até tarde nessa manhã e não me vê desde a véspera de meu aniversário, quando cortou meu cabelo pela última vez. O ideal, mesmo, é esquecer de tudo o que aconteceu agora, aqui. Com esse pequeno cuidado, você estará seguro em qualquer circunstância.

Não foi fácil para Lara entrar na lavanderia do exército sem ser vista. Sair de lá carregando uma farda completa, foi uma proeza de porte gigantesco e que eu, até o último instante, duvidei de que minha aia fosse capaz de fazer. Mas agora ali estava eu, diante do espelho, um soldado perfeito.

Afivelei Brenda à cintura e ajeitei o elmo, saindo da casa principal pela porta da cozinha na escuridão da madrugada de lua minguante. Amora me aguardava do outro lado da casa, corretamente paramentada por Lara.

— O outro cavalo eu devolvo ou deixo aqui nas cocheiras?

— Melhor deixar aqui. Seria arriscado voltar lá apenas para devolver o cavalo, ainda mais o animal estando sem seus aparatos militares. E como uma tropa parte hoje, creio que vão demorar um pouco para notar a falta dele. Se é que vão notar. Mas não deixe o pobre coitado no estábulo real, não. Será que sua prima não consegue escondê-lo na estrebaria Leste?

— Boa ideia! Tenho certeza que ela consegue dar um jeito.

— Mas não lhe conte nada sobre nossos planos, é arriscado. Não sei o que vai acontecer. Se meu pai descobrir que me infiltrei em sua tropa…

— Nem me fale nisso! Ainda estou preocupada em como você vai disfarçar esse cabelo quando voltar.

— Se voltar, Lara…

Seu olhar mudou da apreensão ao terror. A hipótese não havia lhe passado pela cabeça e me recriminei por não ter tido coragem de ser totalmente honesta quanto a meus planos.

— Como assim? O que você acha que pode acont…

— Não sei. Tenho procurado não dar cordas a meu medo. Acho que estou assustada, apenas isso. O que estou fazendo é arriscado, nós duas sabemos.

Lara ficou me olhando, em pânico. Mas eu não tinha mais tempo a perder, precisava estar a postos quando a tropa começasse a formação no pátio. O dia estaria claro em poucos minutos, eu precisava me apressar. Beijei Lara com fervorosa paixão e montei Amora.

— Se eu não voltar junto com a tropa, pegue suas coisas e fuja. Suma desse castelo! Você não estará segura aqui sem mim.

Não esperei pela resposta. Esporeei Amora e saí a galope antes que meu remorso me fizesse mudar de ideia. Meu coração estava destroçado por fazer Lara chorar.



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