Aléssia

Capítulo XXI

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXI <<<

O cheiro dos lençóis de minha cama foi subindo à medida que meu corpo afundava naquele aconchegante mundo macio. A suavidade do algodão tocou minha pele como uma carícia leve e, por uma fração de segundo, tive a sensação de ouvir a voz quente de Lara, declarando seu amor. Meus músculos estiraram-se felizes e um cansaço acumulado por dias, meses talvez, se desprendeu dos ossos pronto a me abandonar. Mas então um barulho aquoso, vagamente conhecido, chamou minha atenção. Não demorou muito e se repetiu: um peixe preso em uma das varas.

Sentei assustada recobrando a consciência, os braços puxando a linha antes que a cabeça completasse seu raciocínio. Uma tilápia se debatia, puxei-a para terra e sangrei com a faca. Prendi nova isca na linha e joguei novamente na água. Nesse gesto vi meu rosto refletido no lago. Cansado, abatido, envelhecido. Os sons da mata, o ar aromatizado, a luz filtrada pelo verde, a paisagem real da Floresta Escura em nada se parecia com as imagens de meus pesadelos infantis. Os pesadelos que eu vivia naquela cama macia, cama com a qual meus ossos sonhavam agora, a ponto de deitarem no chão batido rememorando a sensação do velho colchão que me confortava desde a infância.

Quando a luz começou a diminuir eu havia pescado sete peixes grandes. O suficiente para alguns dias de viagem, desde que a carne pudesse ser bem conservada. Procurei entre as árvores aquela que pudesse me fornecer as folhas mais largas e, com elas, improvisei uma cobertura no chão. Então descamei os peixes e os lavei no lago, pousando-os delicadamente sobre as folhas. Com todos limpos, cortei-os em postas e embalei em outras folhas, previamente forradas com ervas. Amarrei os embrulhos com folhas de salgueiro e depois enchi as duas bolsas de viagem de Amora. Voltei para o acampamento nas primeiras horas do anoitecer, feliz por ter um problema a menos. Precisava agora encontrar uma forma de carregar água.

Quando voltei, Diana já estava cuidando de aumentar o fogo de nossa pequena fogueira. Peguei alguns galhos fortes e preparei uma base para assar postas de peixes. Teríamos uma boa refeição naquela noite. Levei o cantil para encher, analisando as folhas, tentando encontrar alguma que pudesse servir de base para um cantil improvisado. Depois cuidei do peixe assado, reforcei o tempero com algumas frutas cítricas e mais ervas aromáticas. Servi Diana em vasilhas que improvisei com folhas de palmeiras.

— Espero que a refeição lhe seja palatável, querida lady — disse gentilmente, ao mesmo tempo em que caricaturava as mesuras próprias dos criados para com seus nobres. Conheci então o sorriso largo e luminoso de Diana, a maneira peculiar com que seus olhos se alongavam junto com as bochechas acompanhando o lindo semicírculo desenhado por seus lábios.

— Quanta gentileza, cavalheiro. Tenho certeza que vou adorar — e curvou levemente o tronco, numa mesura de agradecimento. Depois colocou um largo bocado na boca, lambeu os dedos com prazer e me olhou deliciada.

— Nossa, acho que é melhor peixe que já comi!

— Não seja exagerada.

— É sério, Iago! Muito bom mesmo, meus parabéns! Achei que fossemos morrer de fome nessa floresta, mas você consegue fazer milagres.

— Ah, se eu fizesse milagres mesmo, nós nem precisaríamos estar na floresta! — disse com um suspiro. Minha casa, minha vida passaram novamente por minha cabeça. E Lara. E mais uma vez a preocupação a seu respeito. Dava tudo para ter notícias dela.

Comemos em silêncio, felizes pela primeira refeição generosa, desde que nossa aventura havia começado. Diana me observava sem dizer nada. Como de hábito, analisava cada um dos meus gestos e expressões faciais.

— Você é um homem diferente, Iago.

Seu comentário me assustou.

— Como assim?

— Você é diferente. Mais delicado do que o normal. Mais preocupado e cauteloso do que os homens que conheço… ou conheci…

Sua voz nublou-se repentinamente, provavelmente com a lembrança das cenas de horror em seu povoado. Também para ela a vida conhecida, corriqueira, havia terminado. Estávamos ambas exiladas de nossos mundos confortáveis e precisávamos nos refazer, nos reinventar.

— Você conseguiu o suficiente para viajarmos? — Mudou de assunto, provavelmente para afastar a angústia.

— Consegui uma boa quantia, mas acho melhor aumentar nossa provisão amanhã. Não sei ao certo quanto tempo vamos viajar, não faço ideia do que temos pela frente.

— Vamos passar mais um dia aqui, então?

— Sim, pelo menos mais um dia. Preciso encontrar um jeito de carregarmos água… sem ela, não adianta termos comida.

As sombras invadiam lentamente o acampamento. Não demorou muito e apenas nosso fogo era fonte de luz. O cansaço do dia foi tomando conta de meu corpo e, pouco depois de nossa única refeição do dia, improvisei camas com folhas. Como na noite anterior, cedi as mantas de Amora para que Diana se agasalhasse. Minha cota de malha me garantia um relativo conforto. Por sorte a primavera já ia adiantada e o frio estava distante.

Abafei a fogueira para diminuir sua intensidade e fiz Diana deitar. Reconfortada pelas cobertas e pelo fogo minha companheira passou uma noite mais tranquila que a anterior. Quanto a mim, procurei me manter acordada da melhor forma possível, mas o estômago cheio, o escuro, o silêncio e os pensamentos inconvenientes acabaram arrastando minha consciência. No meio da Floresta Escura eu corria entre árvores gigantescas fugindo de algo ou alguém. Ouvia passos, sons semelhantes a cascos e medonhos uivos, que me arrepiavam a pele do pescoço. Meus passos, por mais leves e ágeis que fossem, pareciam não me tirar do lugar. O ar não chegava aos pulmões e eu me afogava ao ar livre, no seco.

Acordei com meu próprio grito e a sensação de ter sido alcançada. Diana, os olhos azuis muito arregalados, estava sentada a meu lado. Nossos olhos se abraçaram antes de nossos corpos e pela primeira vez senti a pele dela na minha. Segurou-me terna contra seu peito, enquanto alisava meus cabelos e sussurrava palavras de carinho. O susto passou, mas o medo de estar ali, o rosto entre seus seios, me obrigou a levantar.

— Você está bem, Iago?

— Estou, obrigado. Foi só um pesadelo — respondi com vergonha de ter dormido no meio de minha vigília.

— Só? Fala como se fosse simples.

— É simples se você os tem praticamente todos os dias desde que nasceu. Já me habituei.

— Credo! Desde pequeno? O que é que te atormenta tanto assim?

Esta Floresta, foi a resposta que me ocorreu, mas já bastava uma de nós assustada. Então desviei por onde me pareceu melhor, a resposta que com certeza justificaria tais crises:

— A falta de minha mãe, provavelmente.

Diana me olhou com um carinho renovado e acariciou levemente meu rosto. Desembaracei-me dela e fui olhar Amora que estava agitada por causa de meu grito.

— Você a perdeu?

— Morreu de peste negra quando eu tinha seis anos.

— Lamento, Iago. De verdade, lamento muito.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. A escuridão era imensa e os sons da mata me pareciam mais assustadores que o normal. Ter um pesadelo com a Floresta Escura e acordar no meio dela era uma experiência terrificante à qual eu tentava me adaptar.

— E seu pai?

Perguntou com inocência, provavelmente apenas para continuar o assunto. Senti as lágrimas molhando minhas pálpebras, no entanto.

— Foi ele quem me criou.

A voz traiu a emoção que eu tentava disfarçar. Diana se aproximou preocupada e envolveu meu rosto em um abraço terno. Não consegui mais conter a avalanche que vinha controlando há dias. Meu corpo convulsionou em soluços, minhas lágrimas molhando o colo de Diana. Tudo o que meu pai havia sido para mim caiu pesadamente a meus pés. O fim de todas as minhas ilusões, o término dos mais profundos sonhos.

— Seu pai deve ser um homem valoroso — ela disse enquanto me honrava com um beijo na testa — Ele está vivo?

— Infelizmente não — minha resposta foi sincera. O homem que eu conhecia como meu pai estava morto, irremediavelmente perdido. Diana me abraçou penalizada e pela primeira vez deu sinais de sua própria dor. Nossas lágrimas se fundiram num longo e terno abraço.

— Estamos na mesma situação, não é? Você também não tem mais ninguém no mundo.

— Talvez eu tenha alguns amigos, mas apenas isso.

— Talvez?

— Minha vida tem andado tão incerta, que mesmo isso não sou capaz de afirmar. Já não sei quem realmente me quer bem e, depois de tudo o que andou acontecendo, não sei se quem me tinha amor sincero ainda o tem.

— Por que deixariam de ter? Você é um homem de tão bom coração! Não é possível que tenha feito algo tão terrível que pudesse obrigar as pessoas a deixarem de lado os bons sentimentos que nutrem por você.

— Não fiz nada de que me envergonhe, isso é fato. Mas as circunstâncias não me são muito favoráveis nesse momento.

Diana me olhou pensativa e, provavelmente, construiu na cabeça a história de um jovem órfão que se alista no exército real e deserta em seguida, sequestrando a jovem que seria usada como brinquedo particular do Rei.

— Mas justiça lhe será feita, Soldado Iago. Você é um homem muito especial, lhe sou profundamente grata. E você não está só: temos um ao outro, não é?

Sua ternura me comoveu. Beijei sua mão e, em algum lugar de meu coração, jurei honrá-la e protegê-la como a uma irmã. Mesmo sabendo que nossos caminhos se separariam em breve e que a probabilidade de um dia nos reencontrarmos era remota. Mas por carinho e gratidão à Diana, naquele instante desejei ser a Rainha que o povo desejava e merecia. Desejei assumir o controle de meu reino e fazer justiça ao povoado de Diana, à família de Diana dizimada sem nenhuma razão outra além da arrogância de um homem inebriado pelo poder.

Comovida e carinhosa minha companheira retinha minha mão na sua. Era a hora de fazê-la entender que não seguiríamos juntas para sempre. Ainda que me comovesse com sua solidão, sua sina de perder as pessoas amadas, ainda que houvesse de minha parte empatia por essa perda, já que eu mesma vivia momento análogo, era hora de prepará-la para a separação, um novo — e involuntário — abandono.

— Obrigado, Diana. Também gosto muito de você. Mas infelizmente preciso encontrar um lugar seguro para lhe deixar e depois voltar para meu caminho.

— Voltar para seu caminho? Como assim? Para onde vai? Por que não posso ir com você?

— Não sei ao certo para onde vou, mas sei que, com certeza absoluta, não é um lugar seguro para você. Vou lhe deixar com pessoas que sei que cuidarão muito bem de você, Diana, não se preocupe.

— Eu me preocupo é com você, Iago.

Suas palavras foram sinceras e reconfortaram minha alma. Naquele ponto de minha vida, encontrar alguém que era capaz de gostar de mim sem saber quem eu era, me fazia bem.

— Por que precisa partir? Por que não ficamos os dois nesse lugar seguro de que você fala?

— Porque tenho coisas para resolver.

— Bem, pelo tom em que você fala, acho que não posso perguntar que coisas…

— Melhor não. Não é seguro saber.

Ficou me olhando por alguns instantes, como se quisesse adivinhar o que eu pensava. Então sentou calmamente a meu lado e entrelaçou seus dedos nos meus.

Permanecemos perto do fogo em silêncio. Depois de uns instantes, como se falasse para si mesma, Diana começou a comentar a vida em sua aldeia. Morava com a avó e um irmão menor. O pai foi assassinado numa disputa de terra em uma região próxima. Pouco depois a mãe foi levada pela Guarda Real sob alegação de amaldiçoar a filha de um nobre que morreu de peste negra.

— E agora não consigo parar de pensar se teria encontrado minha mãe, caso ficasse no acampamento do Rei.

— Encontrado sua mãe no acampamento? Como isso seria possível?

— Não no acampamento, seu tonto. Na Casa de Mulheres! Minha mãe foi enviada para lá com certeza, e era meu destino também, provavelmente.

— Casa de Mulheres?!

— O que há? Que cara é essa? Não vai dizer que nunca ouviu falar na Casa de Mulheres? Todo mundo sabe, é a ameaça mais comum dos soldados contra qualquer mulher que não obedeça ou ceda às suas ordens!

— Nunca ouvi falar nada sobre isso. Que casa é essa? Por que você e sua mãe iriam para lá?

Diana me olhou com assombro ou como se eu fosse o sujeito mais burro que ela já havia encontrado.

— A Casa é para onde levam todas as mulheres que possam ter alguma serventia para os homens. Ficam presas, à disposição dos nobres e do Rei em pessoa. As virgens, em particular, são colocadas em local especial para que o Rei Aran as deflore. Depois, pelo que dizem, ele as usa enquanto as considera atraentes, depois elas vão para outro cômodo da casa e passam a servir aos nobres. As consideradas sem nenhuma serventia são dadas como escravas a reis estrangeiros ou distribuídas como prêmios a soldados, que se distinguem em batalhas.

— As virgens… pertencem ao Rei Aran? Foi isso o que você disse?

Sim, foi isso o que ela disse. A situação chocou-me a tal ponto que devolvi o jantar. Sem querer vi meu pai nas mais diversas circunstâncias de minha vida: o homem forte que me orientava no campo de treino, o pai zeloso que me acarinhava antes de dormir, o Rei galante chegando com seu séquito ao castelo depois de uma longa viagem…

Diana não compreendia e tentava me ajudar como se eu passasse mal do estômago.

— Será que alguma dessas ervas era venenosa?

Não, não era. Venenoso era meu sangue. Venenoso e nefasto. Minha cabeça criava as mais indecentes imagens e eu não conseguia aceitar que meu pai fosse capaz de tais atrocidades. Queria sumir do mundo, me enfiar na mata densa e nunca mais encontrar o caminho para a civilização.

Afastei-me de Diana e sentei no lugar mais isolado possível dentro do círculo protegido de nosso acampamento. Mesmo sem compreender meu estado de choque Diana o respeitou e, sem dizer palavra, tornou a deitar.



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