Aléssia

Capítulo XXII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXII <<<

Naquele dia, o amanhecer demorou como nunca, prolongando minhas horas de terror. No profundo escuro silencioso da floresta, minha vida desfilava à minha frente qual uma praga incurável. Como tempero extra, vez por outra, surgiam imagens horrendas de meu pai e essa tal Casa de Mulheres. Como se desenterradas por algum gênio maligno, as lembranças de viagens de meu pai começaram a retornar, mesmo as mais antigas, em meus primeiros dias de infância. E todas elas vinham acompanhadas da mesma pergunta: para onde ele ia e o que fazia nessas viagens?

Meu pesadelo acordada. Meus monstros internos estavam todos despertos, não precisavam mais do anonimato do sono, espreitavam-me agora de fora e reviravam-me do avesso, sem que houvesse um despertar como salvação. Na verdade agora eu estava desperta e esse era meu inferno.

As lembranças não me abandonavam. Vinham, emboloradas, barrentas, atirar em minha cara as verdades que eu nunca quis ver. Mas no meio de todo aquele lodo desesperador, uma flor inesperada dominou a paisagem. Sem que eu soubesse como, nem de onde tinha vindo, lembrei da sensação de estar no colo de minha mãe, observando meu pai partir com seu séquito militar. Lembrei do calor de seu corpo, do carinho com que me aninhava. Lembrei inclusive dos músculos tensos de seu braço e do seu olhar raivoso para meu pai.

Nunca havia recordado o rosto de minha mãe e agora ali estava ele, completo em meu campo de visão. Era, como o meu, um rosto quadrado de ossos largos, mas com um nariz um pouco mais largo, marcado por uma forte inclinação para baixo, enquanto o meu é reto. Para meu desespero tinha exatamente os meus olhos, naquele estranho tom de nuvem em dia de chuva, mas guardando ainda uma tonalidade de céu azul. Seus cabelos eram longos e desciam em anéis avermelhados. Tinha o olhar severo, mas havia uma doçura qualquer em seu jeito. Era bonita de um jeito marcante, aquela beleza que você não esquece mais quando encontra. Seu porte era altivo e nobre e possuía o sorriso mais iluminado que já vi.

O amanhecer venceu as folhas e me resgatou das sombras internas. Olhando para cima acompanhei a chegada da luz, a maneira como paulatinamente cada folha se iluminava, a luz filtrando seu caminho esverdeado. Retirei da sela de Amora dois nacos de peixe e os coloquei para assar.

— Que cheiro bom. Estou faminta.

— Bom dia, Diana. Espero que tenha conseguido descansar.

— Descansei, sim, você consegue milagres em acampamentos, a sua cama improvisada é melhor do que a que eu tive a vida toda.

Não quis nem imaginar como seria a outra cama. Era estranho perceber que a vida não era mesmo confortável para todos.

— O lago é longe daqui?

— Não, poucas jardas a frente. Quer ir lá?

— Gostaria de me lavar, se não tiver problema.

— Nenhum problema. Parece um lugar agradável para banho, inclusive. É só seguir nessa direção, não tem como errar.

Minha nova amiga dobrou as cobertas com cuidado e as colocou na sela de Amora, exatamente como eu fazia. Sorri ao perceber o cuidado dela em me imitar. Em seguida nos sentamos para nosso desjejum: peixe assado com ervas e alguns goles de água.

— Nada mal pra quem achou que iria morrer de fome – disse Diana, enquanto lambia os beiços. Eu também me regalava com a refeição, o estômago dolorido recebendo a comida com alegria. Em seguida comecei a amortecer o fogo, enquanto a garota se dirigia ao lago.

Os passos de Diana silenciaram de repente ao invés de se afastarem. Algum aspecto meu, profundamente treinado para guerra, percebeu isso, apesar de eu estar concentrada com a fogueira. Parei o que estava fazendo e apurei o ouvido. Silêncio total por alguns segundos, e de repente a voz de Diana, baixa e trêmula, chamava meu nome. Saquei a faca e caminhei cautelosamente até encontrá-la, paralisada, olhando uma marca no chão. Pegadas de lobo. Lembrei-me de meu pesadelo com um péssimo pressentimento.

— Era só que faltava. Estava mesmo achando tudo sossegado demais.

— É melhor irmos embora antes que anoiteça.

— Calma. Não vão nos atacar a menos que ataquemos. O fogo os mantém distantes, estamos seguros no acampamento. Precisamos de água e de mais comida. Vamos embora amanhã, em segurança, eu lhe garanto.

— É seguro ficar no lago agora?

Analisei as pegadas. Pareciam pertencer a um único animal e haviam sido feitas no início da madrugada.

— As pegadas foram feitas de madrugada. Não acredito que o animal volte durante o dia. Mas eu vou lhe dar cobertura. Deixe-me apenas colocar Amora mais perto do fogo.

— Amora?

— Minha égua.

Diana me olhou com aquela cara de quem tentava descobrir coisas a meu respeito, um risinho de canto de boca, e depois completou:

— Você é mesmo um sujeito diferente. Nunca imaginaria um soldado que dá um nome desses para seu cavalo.

Depois das providências tomadas acompanhei Diana ao lago. Sentei sob uma árvore afastada da margem e aguardei. Sem mais o que fazer do que observar a paisagem, deixei os olhos passearem pela floresta e acabei encontrando uma árvore, cujo fruto se parecia com uma cabaça. Estava alto, mas com um pouco de perícia consegui derrubá-lo com pedras. Separei dois e os limpei, cheguei a iniciar uma caminhada ao lago, para testá-los como vasilha para transporte de água. Esqueci que, sendo homem, não poderia acompanhar o banho de Diana, mas lembrei disso assim que a vi, de costas para mim e nua, na margem do lago.

Abaixei e fiquei espiando entre as folhas. Sob o sol, sua pele clara adquiria uma aparência mais aveludada. As costas eram largas, lisas, sem nenhum sinal que pudesse distingui-las. Estavam completamente aparentes já que a moça puxara os cabelos para frente e tentava desembaraça-los com os dedos. Estava em pé, sua silhueta descendo em curva desde os ombros largos até a cintura bem torneada e chegando a um quadril perfeito, de músculos rijos e arredondados. A visão me encantou a ponto de esquecer problemas e perigos e o fogo do desejo subiu da espinha ao coração.

Enquanto eu me encantava, Diana deu um passo gracioso para frente e desapareceu em um salto dentro do lago. As águas tornaram-se agitadas, depois voltaram à calma espelhada de sempre, até que a menina formosa reaparecesse na superfície, nadando despreocupadamente. Deitei entre as folhas e passei a tarde espreitando. O jeito como ela nadava, cada gesto de braço, perna, a leveza de seus movimentos. E depois, quando saiu da água e esticou o corpo preguiçosamente ao sol, secando-se.

Em uma árvore próxima seu vestido pendurado pingava gotas de sol. Seria preciso um longo dia para que tudo aquilo secasse e ela retornasse ao acampamento, mas eu precisava cuidar das coisas e dormir, ou não aguentaria mais uma noite de vigília.

Voltei ao meu ponto de vigilância e gritei, despretensiosamente:

— Acho que encontrei algo que pode resolver nosso problema com a água, mas preciso testar no lago. Você vai demorar?

Não houve resposta, o que me deixou apreensiva. Ia repetir a pergunta, em voz um pouco mais alta, quando percebi um movimento próximo: Diana, com o vestido molhado colado ao corpo, exibindo suas formas. Perdi o fôlego de eto e a reação não passou despercebida. A menina sorriu maliciosamente enquanto passava por mim.

Juntei os frutos limpos e corri para o lago, deixando as preocupações práticas ocuparem minha cabeça. As vasilhas improvisadas serviram perfeitamente. Não eram grandes, armazenavam cerca de um litro e meio cada uma. Voltei ao local em que tinha localizado a árvore e peguei tantos frutos quanto consegui. Depois, com certa dificuldade, cortei alguns de maneira a formar uma espécie de rolha para os que iriam conter a água. Dessa maneira, consegui cinco vasilhas que nos possibilitariam carregar sete litros e meio de água.

Voltei para o acampamento onde Diana estava deitada perto do fogo sob uma réstia de sol. Retirei as mantas da sela e organizei uma cama semelhante à que fizera na noite anterior. Deitei recomendando à Diana que mantivesse o ouvido atento para qualquer barulho estranho. Não acreditava que os lobos pudessem atacar o acampamento, mas todo cuidado era pouco.

Busquei um canto em que os raios de sol não me alcançassem e adormeci rapidamente. Talvez as sombras em que deitei tenham facilitado a ilusão, o fato é que em pouco tempo eu estava caminhando no escuro absoluto. O que parecia um passeio calmo ganhou urgência. Meus pés bateram apressados nas folhas da floresta. Não dessa floresta em que estava, mas a floresta dos meus pesadelos de infância. Paulatinamente meus passos se tornavam mais e mais rápidos, minha respiração ofegante, meus pelos na nuca eriçados, um medo me impulsionando… corra!, corra!

Não, não era medo, era urgência. Alguém me instigava a correr. A encontrar alguma coisa. “Vá, Aléssia, antes deles, antes dos lobos”… A Pedra gritava meu nome, ordenava a busca. Era o punhal sob a árvore, “pegue antes dos lobos, pegue antes dos lobos!”.

A marca em meu braço latejava e a dor me empurrava ainda mais para frente. Comecei a ver o punhal sob a árvore, como no dia da iniciação, e algo em mim sabia exatamente onde ele estava. Corri na direção correta e avistei a árvore. Então vieram os uivos. Lobos. Lobos por todos os lados. Entre eu e o punhal toda uma alcateia.

Os pelos de minha nuca eriçaram, tal qual me acontece desde a infância. Mas pela primeira vez senti o corpo arquear lentamente, até as mãos tocarem o solo. Olhei nos olhos os animais que se opunham à passagem e senti os músculos traseiros preparados para o salto. Um dos lobos se adiantou do grupo que me ameaçava. Tinha a pelagem cinza clara e os olhos cinzentos de uma expressão profunda e enigmática.

Então, de algum lugar distante, a voz de Diana gritou, a Floresta tremeu em minha visão e os lobos desapareceram. Sentei assustada, a mão já agarrando a faca em minha cintura. Para minha surpresa, Diana estava sentada junto da fogueira assando alguns peixes. Nenhum sinal de lobos ou qualquer outra ameaça.

— Acordou, soldado? Espero que tenha conseguido descansar.

— Na medida do possível — respondi francamente enquanto me levantava. Não completei o gesto, no entanto, interrompida por uma forte fisgada no braço. Logo em seguida, a Marca da Pedra começou a doer de forma latejante. Não consegui disfarçar, deixando o corpo cair pesadamente, a mão no braço enquanto me contorcia de dor.

Assustada Diana correu em meu socorro, prestativa, tentando levantar minha quota de malha em busca de um possível ferimento. “Ninguém pode ver essa marca”, as palavras de meu pai soaram nítidas.

— Não é nada, estou bem.

— Deixe-me ver, pode ser algum animal venenoso.

— Não, não foi nada disso, é uma cicatriz antiga que dói às vezes. Não é nada, já vai passar.

Era essa minha esperança. A Marca havia latejado apenas uma vez desde que a recebi, depois permaneceu morta em meu braço. Começava a suspeitar de que a Pedra era uma maldição transmitida de pai para filho e que, ingenuamente, havia deixado meu pai me contaminar com ela.

— Deixe-me ver, insistiu, sinceramente preocupada. Mas mesmo com o receio de parecer grosseira, eu não podia permitir. Reuni todas as minhas forças para me levantar, juntei as varas de pescar e anunciei que estava indo para o lago.

O caminho já havia se tornado rotineiro. A sequência de dias, ainda que pequena, me trazia a confortável sensação de lar, de segurança, de conhecer o ambiente em que se está. Sensação profundamente ilusória, como eu deveria saber, estando já comprovado o quanto desconhecia o Castelo, o lugar onde fora criada. Mas ainda assim essa sensação de familiaridade me invadiu e segui distraída o conhecido trajeto para o Lago Espelhado. As marcas no chão teriam passado despercebidas não fosse ter, acidentalmente, derrubado uma das varas de pesca. Ao me abaixar percebi as pegadas frescas. Um lobo — provavelmente o mesmo das marcas anteriores — estava rondando o acampamento. As pegadas eram idênticas às encontradas por Diana e estavam próximas dessas. Mas eram recentes, feitas há poucos minutos.

Com o instinto alerta fui ao lago e fixei as varas nos pontos previamente cavados no solo. Então voltei ao acampamento e aticei novamente o fogo, alertando Diana. Depois peguei uma tocha e alguns galhos para armar uma pequena fogueira no lago. Não podia deixar de pescar, mas também não podia me expor ao perigo.

A tarde, no entanto, foi calma e proveitosa. Retornei com nove peixes grandes, devidamente cortados em postas e guardados em folhas com ervas. A Floresta estava sendo generosa conosco. Partiríamos na manhã seguinte tão logo os cantis estivessem cheios.

Retornei com as bolsas da sela de Amora pesadas de tanto peixe. Entrei distraída no círculo demarcado para nosso acampamento, dois peixes separadas para nosso jantar, o restante equilibrando nas duas mãos. O material de montaria estava guardado nos galhos mais altos de um arbusto. Ali pendurei as bolsas com comida e encostei as varas de pesca. Depois peguei os peixes para assar e me aproximei da fogueira. O que eu vi, no entanto, me fez reter o passo e suspender os gestos.

Próxima da fogueira, sob as mantas, Diana estava deitada nua, olhando-me com indisfarçável desejo. Prendi o fôlego para não delatar minha emoção, recuperei o controle de meu juízo e coloquei as postas na fogueira. Estava faminta, Diana também devia estar. Prendi as postas entre galhos e coloquei acima do fogo, para que cozinhasse lentamente. Concentrei minha atenção na delicada tarefa de cozinhar, evitando a mulher que, tão próxima, oferecia-se sem saber ao certo quem eu era. Não a recriminava, no entanto. Na verdade, compreendia-a completamente. Os últimos três dias se assemelhavam a trinta anos para duas pessoas que haviam perdido seus mundos conhecidos.E, sendo obrigadas pelas circunstâncias a confiar uma na outra, era natural que um sentimento de bem-querer brotasse. Natural também que os corpos, fatigados pela tensão e pela fuga, encontrassem certa paz no desejo ardente da paixão. Não haveria mal algum em nada daquilo, não fosse o fato de tudo ter começado com base em uma mentira. Mentira essa necessária para nossa sobrevivência, mas que cortava pela raiz qualquer possibilidade de um entendimento ou mesmo de uma amizade mais profunda.

Ela, no entanto, não sabia de nada disso. E na solidão da Floresta desejava uma companhia, uma entrega. Alheia a meu descaso aproximou-se, provocante, serpenteando entre as folhas. Fêmea certa de seus encantos, espreguiçou-se ao calor do fogo, músculos retesados realçando a beleza de seu corpo, labaredas tonalizando sua pele clara. Eu, frágil e desesperada, fechei os olhos e mergulhei em meus labirintos interiores, rezei para que meus horrores pessoais se metamorfoseassem em pontos de força, para que eu encontrasse em algum canto de meus abismos o elixir que me daria força e resistência.



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