Aléssia

Capítulo XXIII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

 
>>>XXIII<<<

O crepitar do fogo ganhou força em meus ouvidos. Deixei que me embalasse como cantiga de ninar, afrouxei a respiração, soltei os músculos e o calor da fogueira, brincando com meus olhos fechados, criou desenhos em meus escuros interiores. Assim fui levando-me confortavelmente para um local seguro, um refúgio para permanecer enquanto minhas ondas de desejo não serenavam. Mas então, como criança que descansa ao sol na beira de um riacho, um fio fresco lambeu meu rosto e uma suavidade com fragrância floral tocou minha pele. Inadvertidamente minha consciência voltou à floresta como peixe fisgado por estranho anzol. Do lado de fora de meus olhos cerrados, Diana roçava a pele de seu rosto contra a minha e, num movimento leve e ritmado, enlaçou-me pela cintura, beijou meus lábios, deitou-me na grama, seu corpo pesando sobre o meu. E como se moldasse o barro de que sou feita, suas mãos experimentavam meus músculos, torneavam minhas formas, reafirmavam minhas curvas, descendo como cascata pelo pescoço, resvalando rapidamente por meus seios contidos em disfarce, depois brincando com o vórtice de meu umbigo e, finalmente, forçando passagem entre panos para tocar minha pele na altura do púbis.

Irresponsavelmente esquecida de todas as minhas circunstâncias, eu gozava cada carícia, entregando-me a seu desejo. Mas quando o calor de seus dedos brincou com os pelos tão próximos de meu sexo a súbita consciência de minha delicada situação me trouxe de volta dos labirintos em que tinha me escondido. Como se ressuscitassem subitamente, minhas mãos readquiriram energia e, num salto de bicho contra a presa, agarram seu braço e retiraram os dedos de minhas intimidades.

– Doida! Pare com isso!

Usando a meu favor minha constituição física mais forte do que a dela, virei o corpo deixando-a tombar com delicadeza no chão a meu lado. Então levantei rapidamente e me refugiei ao lado de Amora, como se de alguma forma pudesse encontrar socorro ali. Olhamo-nos aflitas, desejosas, assustadas. Não, o susto era meu. Dela escorria apenas desejo e uma aflitiva necessidade de compreender minha recusa. Em mim havia o desespero de desejar sem poder ceder.

– O que há, soldado, meu corpo não lhe apetece?

Entoou cada palavra, como se cantasse uma cantiga de sedução enquanto se levantava e caminhava provocante em minha direção. Não respondi nada, apenas aprumei os músculos e me preparei para a luta, se preciso fosse.

– Seus olhos dizem o contrário de seus gestos, soldado. Eles me devoram com paixão e me segredam que sua pele quer se esfregar na minha, seu sexo quer perder-se no interior de meu ventre… então por que luta contra seu desejo? Por que simplesmente não me toma nos braços e me mostra como é ser mulher?

– Você é linda e encantadora, Diana, mas não acho que deva confundir as coisas. É natural que nossos instintos falem mais alto aqui, no meio de uma floresta, a sós, vítimas de uma mesma tragédia. Mas nossas vidas continuam além daqui e, por mais que pareça estarmos fora do tempo, o que fizermos agora nos acompanhará para sempre. Não quero que você seja induzida pelas circunstâncias a fazer algo de que se arrependerá até o fim dos seus dias.

– Me arrependerei? Do que está falando, Iago?

– Você é uma mulher muito jovem, Diana. Vamos sair daqui, você recomeçará sua vida. Vai encontrar alguém com quem gostaria de constituir família, alguém a quem você realmente gostaria de dar o que me oferece agora…

– Está usando minha honra como desculpa para sua covardia, Iago? O que há, não é homem o suficiente para tomar uma mulher nos braços?

Ironicamente eu poderia ser até mais homem do que muitos dos que ela encontraria futuramente em sua vida. Mas não precisava lhe provar isso, não possuía esse brio que erguia a vara a menor provocação. E não era a honra dela que eu buscava proteger, mas a minha própria.

– Ou será que você nunca fez isso e tem medo? Será que o soldado Iago não passa de um menino assustado com medo de ser homem de verdade?

– Você é muito jovem. Vista-se.

– Sou mulher o suficiente para ser desejada pelo próprio Rei Aran. A única reservada para o uso dele.

Ergui um pouco minha cabeça e a encarei de esguelha.

– Vangloria-se de ser desejada pelo homem que exterminou seu povo? O Rei que, segundo você, reserva virgens para seu uso próprio? Prefere esse homem ao soldado que a respeita e protege?

Aquela menina roubada de sua vida corriqueira e que, no cerne da floresta da vida, descobria as forças da mulher, encarou-me com os nervos em fúria, mas subitamente tocada por minhas palavras. Aborrecida por seu desejo frustrado retornou para as mantas próximas da fogueira, enrolou-se nelas como se buscasse salvação e aquietou-se.

Voltei para a fogueira onde quatro postas de peixe assavam lentamente. Por precaução ergui duas postas ao ponto mais alto, para que não queimassem mesmo que permanecessem ali toda a noite. Cansada, abatida, sufocando em mim desejos quase incontroláveis, comi com sofreguidão as postas que restavam e depois aprumei o corpo para a noite de vigília.

Diana dormiu com fome, o sono agitado pelas carências do corpo. Passei a noite mastigando pequenos frutos, matando a sede no sumo de algumas plantas. O calor, mais intenso que nas outras noites, fez Diana aos poucos descartar as cobertas e seu corpo sem defeitos aterrorizou-me até a manhã seguinte.

Quando a jovem acordou, provavelmente encabulada com as próprias atitudes, enrolou-se às pressas na manta e correu para o lago. Por mais de uma hora estivemos perdidas em nossas dores particulares. Não tive coragem de me aproximar do lago, deixei uma refeição farta separada para Diana e fiz um desjejum à base de frutas. Depois improvisei bolsas com as mais largas folhas que encontrei e as forrei com frutas. Encilhei Amora e organizei nosso farnel na sela. A égua resfolegou animada ao perceber os preparativos para viagem.

Estava dando os últimos nós nas correias de Amora, quando a voz de Diana soou timidamente vinda da direção do lago. Tão logo percebeu meus passos rápidos a jovem lançou um pedido encabulado: na pressa de se afastar de mim esqueceu o vestido em uma árvore. Entreguei-lhe as vestes evitando encará-la, difícil dizer quem estava mais envergonhada, depois retornei ao acampamento e comecei a espalhar folhas pelo chão, para que o mato amassado por nossos corpos não se tornasse tão visível caso uma patrulha chegasse até ali no nosso encalço. Algo, entretanto, me dizia que haviam perdido há muito a nossa pista.

Diana comeu calada as duas postas de peixe e mais um bom punhado de frutas enquanto eu apagava o fogo e desarmava a fogueira. Colhi o material queimado e andei por cerca de quarenta minutos, largando as cinzas em pontos aleatórios do terreno. Depois enchi com terra o buraco, em que havia armado a fogueira e completei com folhas a superfície. Nem mesmo o mais atento dos observadores seria capaz de dizer que um acampamento esteve montado ali.

– Hora de partir, disse com suavidade, quebrando aquele constrangedor silêncio em que tínhamos nos metido.

Os primeiros cinquenta minutos foram para contornar o Lago Espelhado. À medida que o sol subia a luz incidia mais direta e clara, revelando nas águas paradas uma floresta alta de céu esverdeado. Pássaros raros voavam no fundo do lago e, em algumas raras falhas entre árvores, um pequeno pedaço azul podia ser percebido. Eu conduzia devagar nossa pequena tropa procurando minimizar nossos rastros. Quando se tem um inimigo poderoso, todo cuidado é pouco.

A Floresta Escura tornava-se mais densa à medida que nos afastávamos do lago. Sombras caíam pesadamente sobre nós e o caminho ficava mais difícil. A mata era mais fechada, difícil de encontrar espaços. Por vezes tive que olhar em volta, procurando um espaço por onde Amora pudesse passar. Comecei a temer que não encontrássemos saída; o lugar não era adequado para se passar com montaria.

Diana não dizia nada. Seguia em frente observando minhas instruções, o ar acabrunhado evitando meus olhos. A escuridão aumentava a cada passo, a floresta justificando seu nome. E sem a possibilidade de enxergar o céu ou perceber a direção da luz eu já não sabia mais para que lado íamos. Eram meus pesadelos, saltando para fora de meus sonhos. Amora parecia farejar o medo em minha pele e tornava-se mais arredia temendo ir adiante.

Chegamos a um ponto em que não era mais possível saber se era dia ou noite e as árvores cresciam tão próximas, que não havia espaço seguro para os passos de Amora. Não quis me arriscar a segurança de minha égua.

– Preciso encontrar um caminho seguro. Por aqui Amora pode se machucar.

– Ficou muito escuro de repente, é estranho… nem parece a mesma floresta em que passamos os últimos dias.

– Segure a rédea com força, tome conta de Amora. Vou tentar enxergar algo à nossa frente.

A única maneira de visualizar um caminho era olhar do alto. Escolhi uma árvore com galhos fortes e a escalei, lembrando de minhas brincadeiras no Bosque. Subi muitos metros e ali a luz do sol aparecia dando ares oníricos à paisagem. Pássaros raros surgiam aqui e ali e consegui enxergar alguns ninhos bem estranhos. Empoleirada naquela árvore, lançando olhares por todos os lados, senti meu coração pulsar junto com a Floresta, me senti una com toda aquela terra.

Muitos metros abaixo Diana e Amora eram dois pontos contidos entre enormes árvores, presos numa teia de madeira e ramos que parecia não ter saída. À primeira vista, a única alternativa era voltar ao lago. Mas precisávamos seguir. A salvação, se existia alguma, estava do outro lado da Floresta. Voltar era retornar ao Castelo, cair nos braços de meu pai. Mas eu não enxergava nada a frente além de árvores e árvores e árvores, imensas e altas árvores. Girei o corpo em todas as direções olhando com a maior atenção. Então, quando já começava a me desesperar, percebi à esquerda de onde estávamos um facho de luz que ia até o chão: um caminho que serpenteava exatamente na direção que precisávamos ir.

Corri entre galhos de árvores para enxergar melhor aquele caminho. Sem dúvida alguma ele seguia sempre adiante e parecia ser uma trilha segura para fora da Floresta. Um caminho encantado para quem pudesse percebê-lo.

– Encontrei uma saída! – disse exultante, quase aos gritos, assim que coloquei meus pés no chão. Imediatamente retomei as rédeas de Amora e tomei o rumo lateral que nos levaria – eu esperava – para fora da Floresta.

O caminho era exatamente como o avistei do alto: largo o bastante para passar com Amora, serpenteando entre as árvores e com uma iluminação difusa aconchegante que dava a agradável sensação de se estar em um sonho bom. O ar fresco e o aroma de flores induziam bons sentimentos. Com poucos minutos de caminhada, minha tensão desapareceu e já não tinha mais dúvidas de que em breve estaríamos em um lugar seguro. Também Diana demonstrou melhora em seu estado de ânimo retomando suas costumeiras conversas casuais. Amora seguia mansamente, sem estranhar o caminho. Assim, num ritmo quase musical, caminhamos até uma pequena clareira, primeiro espaço aberto desde que deixamos o Lago Espelhado.

Com as pernas doendo de cansaço sentamos as duas felizes pela possibilidade de descanso. Retirei os arreios de Amora para que ela pudesse descansar completamente, depois cavei um pequeno buraco e completei com água para que se refrescasse.

Diana deitou sob as sombras de um carvalho, parecia mais cansada que o normal. Sem parar para analisar minha própria situação, armei uma pequena fogueira e coloquei postas de peixe para assar. Depois peguei um cantil de água e uma porção de frutas para que Diana e eu amenizássemos nossas necessidades enquanto o peixe assava.

– Por enquanto acho que podemos nos refestelar com certa fartura, mas se demorarmos muito a vislumbrar uma saída da floresta, teremos que começar a racionar nossa comida.

– Espero francamente que não cheguemos nesse ponto.

– Eu também. Daqui a pouco vou tentar observar o caminho à nossa frente e perceber se a floresta dá sinais de estar no fim.

– Você tem alguma ideia de que horas são?

– É difícil dizer… saímos de lá por volta de seis da manhã e acho que caminhamos por cinco horas, aproximadamente. Então deve ser onze horas agora.

– Espero que esteja certo, assim temos muito tempo antes do anoitecer.

– Mais ou menos. A floresta é tão fechada que a luz aqui deve diminuir rapidamente no período da tarde. Por isso é importante que essa parada não seja longa, não podemos desperdiçar os momentos de luz. Espero, sinceramente, que estejamos na borda da floresta essa noite.

– Depois da floresta quanto tempo de viagem temos até Forte Velho?

Eu temia que ela me fizesse essa pergunta. Meu conhecimento do reino era apenas cartográfico. De acordo com os mapas teríamos uma viagem de cerca de quatro horas depois da Floresta Escura. O problema é que eu não tinha os mapas comigo e precisava contar com minha memória, para encontrar a direção correta.

– Umas quatro horas.

– Se tudo correr bem amanhã a esse horário estaremos lá, então.

– Sim.

– E depois?

– Como assim?

– O que acontece depois?

– Você fica em Forte Velho e eu sigo adiante.

Servi nossas postas de peixe e joguei algumas frutas para Amora. Diana abriu seu embrulho com sofreguidão e comeu com pressa. Eu também estava com muita fome, mas procurei comer com calma, raciocinando no que faria depois. Não tinha ideia de para onde iria, quando saísse de Forte Velho.

– Você não quer me dizer para onde vai, não é? Vai me deixar numa vila e nunca mais vai pensar em mim.

Não esperava por aquele comentário melancólico, embora considerasse até mesmo natural o apego da menina.

– Temos que seguir nossos caminhos, Diana. É melhor assim.

Antes que ela tivesse oportunidade de dizer algo, me levantei e escolhi uma árvore para a escalada. Subi rapidamente e depois comecei a andar pelos galhos altos, tentando avistar o fim de nossa trilha. Afastei-me consideravelmente do nosso pequeno acampamento, mas o esforço não foi em vão. Como por encanto, a trilha terminava em uma clareira larga que aparentava ser o fim da floresta.

– Acho que avistei o fim da floresta, estamos no caminho correto. Se andarmos rápido chegaremos à borda no fim da tarde e teremos um lugar seguro para passar a noite – disse já apagando a fogueira, ocultando nosso rastro e equipando Amora.

O período da tarde transcorreu levemente. A trilha era agradável e com as energias recuperadas caminhamos rapidamente. Aproximadamente três horas depois do almoço, alcançamos o lugar que eu avistara do alto. Prendi Amora em um tronco e escalei mais algumas árvores para avistar o que tínhamos pela frente: não havia mais dúvida, era o fim da floresta. Poucos metros a frente era possível avistar a estrada.

Cavei um buraco fundo e nele montei nossa fogueira. Depois fui atrás de frutos que ajudassem a dar outro sabor ao nosso peixe de todo dia.



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