Aléssia

Capítulo XXIV

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXIV <<<

— Procure descansar bastante, Diana. Amanhã vamos andar sem a proteção da floresta. E não podemos esquecer que estamos sendo caçados. A essa hora já existe um alerta por todo o reino, e a minha roupa com certeza não nos ajudará a passar despercebidos.

— Por que não se livra dessa armadura?

— Porque isso não resolve o problema. E se tiver que combater, a armadura me protege. A malha por baixo é tão característica quanto a armadura, e não posso simplesmente sair sem roupas.

— Sou obrigada a concordar.

Diana encheu a boca com um enorme bocado do peixe que lhe servi e depois tomou largos goles de água. Então continuou a falar num tom quase automático, como se falasse para quebrar o silêncio mais do que por interesse no assunto.

— Você tem algum plano? Quer dizer, já que sabemos que as coisas estão contra nós, tem alguma ideia de como melhorar nossa situação?

— Sair da floresta nas primeiras horas do dia e avançar um bom pedaço da estrada antes que o sol surja. No escuro todos os gatos são pardos… temos mais chance se não ficarmos muito expostos à luz do dia.

— Então você quer sair da Floresta ainda durante a noite?

— Não exatamente. Penso em pegarmos estrada por volta das quatro da manhã. Se tudo der certo, chegaremos maios ou menos oito horas em Forte Velho.

— Isso quer dizer que você vai dormir essa noite, certo?

— Claro que não! Alguém precisa vigiar, não é? Não acha que estamos totalmente seguros no meio da floresta, acha?

— E vai viajar sem ter dormido?

— Qual o problema?

— Se precisar lutar seus reflexos estarão lentos!

— Sou um soldado, sou treinado para isso — respondi com sinceridade. Ao menos nisso não precisava mentir.

A noite passou rápida. Para não dizer que não aconteceu nada notório, em certo momento tive a impressão de ouvir um uivo distante. Mas pouco depois o silêncio voltou a predominar.

Quando percebi o alvoroço dos pássaros nas árvores, acordei Diana. Hora de partir. Apaguei o fogo e, com alguma dificuldade, fechei o buraco e sumi com nosso rastro. Então, andando com cuidado pela trilha que, graças aos céus, era ampla, fui guiando Amora. Diana seguia quase a meu lado, acompanhando meu jeito de perscrutar o caminho em busca de um lugar seguro para os passos de nossa montaria.

Aproximadamente quarenta minutos depois, passamos pelas últimas árvores da Floresta Escura. A brisa fresca bateu com suavidade em meu peito e a sensação de ter sobrevivido a uma grande aventura me deu enorme alegria. A estrada surgia pouco mais a frente e, mesmo sendo sinônimo de perigo era, sem dúvida, um grande símbolo de liberdade. Eu, que nunca havia saído dos limites do Castelo, atravessei sozinha a temida Floresta Escura! Agora só precisava rezar para meu instinto estar correto e encontrar Amaryllis em Forte Velho.

Por uma infelicidade o céu estava muito nublado. Tive receio de tomar um rumo sem conseguir me orientar e isso atrasou nossa viagem em cerca de meia hora. Mas quando finalmente foi possível enxergar algo, conduzi nossa pequena caravana na direção sudoeste.

O terreno fora da floresta era mais seguro e regular e, por isso, evitei a estrada. Mesmo sabendo que andar à margem dela não era uma maneira muito segura de fugir, ainda me parecia menos arriscado do que galopar por vias criadas por minha família.

Quando o sol despontou no leste, encontrou-nos com o caminho muito avançado para Forte Velho. Não tínhamos tido tempo de comer. Eu esperava que a recepção na cidade nos fosse favorável e que nos oferecessem comida e uma cama confortável onde descansar.

Indiferente às minhas preocupações, Amora trotava feliz, como um prisioneiro que finalmente pode esticar as pernas e correr em liberdade. A temperatura amena ajudava a melhorar o ânimo de nossa montaria e fizemos muitas milhas rapidamente.

A estrada corria a um quarto de milha à nossa esquerda e, àquela hora, estava completamente vazia. Aproveitamos bem o anonimato que a madrugada oferece e recuperamos o tempo perdido na minha indecisão dos primeiros passos fora da mata.

Quando avistamos Forte Velho, o sol incidia diretamente sobre seus muros, dando à antiga fortaleza um aspecto levemente dourado. Contrastando com a paisagem verde, a edificação adquiria uma aparência majestosa, e mesmo o aspecto envelhecido das pedras não tirava seu brilho, como um Rei eternamente sentado em seu trono, como coisa que nasceu junto do mundo ou até mesmo antes dele. A história de Forte Velho se confundia com a história de Âmina e isso parecia gravado naquelas pedras. Compreendi porque Amaryllis falava com tanto orgulho da cidade de sua família.

A visão dos muros trouxe consigo sentimentos estranhos. Se tudo saísse como eu planejava, então teria meu primeiro encontro com Amaryllis desde o desastre em meu aniversário. Não sabia como ela me receberia. Havia, inclusive, a possibilidade de que desmascarasse meu disfarce. O que Diana sentiria ao saber que esteve esse tempo todo viajando com a Princesa de Âmina, exatamente a Princesa de cuja existência ela desconfiava ostensivamente?

A única coisa que não considerei foi a possibilidade de uma recepção hostil, em virtude de usar as cores do exército de Âmina. E, no entanto, foi exatamente o que aconteceu. Encontramos os portões da cidade abertos e entramos sem que ninguém nos incomodasse. Não havia sentinelas nos muros nem qualquer vigilância no portão. Isso, simplesmente, já me pareceu sublime e, por alguns instantes, me peguei tentando entender como era viver numa cidade da qual se podia sair e voltar a bel prazer. Esse pensamento sumiu quando percebi que, à medida que avançávamos pela cidade, as pessoas abandonavam seus afazeres e corriam atrás de nosso cavalo. Eu não conseguia entender o que diziam, mas a atitude era profundamente hostil. Aticei Amora e procurei ganhar espaço, mas a certo momento não era mais possível prosseguir.

— Procuro uma jovem de nome Amaryllis di Veneris. Alguém sabe onde posso encontrá-la?

Joguei a pergunta ao vento, na esperança de que entendessem que vínhamos em paz. Uma lança atirada certeiramente em minha direção foi a única resposta. Agarrei-a no ar, com agilidade, o que calou a multidão. Guardei a lança na sela de Amora e repeti a pergunta.

— Quem é você e por que procura essa moça?

Um rapaz com ares de poucos amigos me olhava, aguardando minha resposta. Procurei manter a voz firme enquanto respondia, mas no fundo me questionava o que Amaryllis faria se lhe dissessem que um soldado de nome Iago a procurava.

— Meu nome é Iago. O assunto que me traz aqui é confidencial.

— Lamento, mas nada aqui é confidencial. Não falará com ninguém dessa cidade se não se identificar adequadamente e não disser exatamente o que quer.

Gritos de apoio eclodiram por todo lado, deixando claro que eu não poderia me safar com facilidade. O meu melhor trunfo era a verdade. Então, por que não usá-la?

— A jovem que está comigo precisa de amparo. Sua aldeia foi devastada pelo exército real, ela é a única sobrevivente.

Houve um murmurinho na multidão, enquanto o rapaz me analisava friamente.

— E por que um soldado do exército iria socorrer uma sobrevivente de um massacre realizado pelo próprio exército? Quer mesmo que acreditemos nisso?

— Talvez o soldado seja decente o suficiente para saber o que é certo e o que é errado. Vejam, compreendo o receio de vocês, mas estamos apenas eu e a garota, não representamos ameaça. As armas e escudos do exército em nada me ajudam já que, nesse instante, sou caçado pelo exército ao qual pertencia.

— Belas palavras, soldado. Mas os indícios que nos traz não são suficientes para nos convencer. Precisamos de provas.

Reconheci a voz antes de conseguir enxergá-la, majestosa, abrindo espaço entre a população. Seus lindos cachos emoldurando o rosto, a expressão altiva. Meu coração bateu descompassado e não pude conter o sorriso de meu rosto. Amaryllis parou ao lado de Amora e acariciou amorosamente o rosto de minha montaria. A égua resfolegou feliz, reconhecendo a amiga.

— Estou esperando uma resposta, soldado.

Falou com autoridade, dando ênfase ao “soldado” enquanto me encarava com aquele olhar de “você pode ser Princesa o quanto queira, mas não tenho medo de você”.

Eu já nem sequer me lembrava da pergunta, mas tanto fazia. A senha para que Amaryllis compreendesse a situação era outra. Abaixei-me para encará-la mais de perto e disse, a voz profunda, mas a fala mansa, pronunciando com ênfase cada palavra:

— Eu vi com meus próprios olhos, Amaryllis.

A constatação de que eu, de fato, a conhecia, causou novos comentários entre os presentes. Ela, por sua vez, ergueu ainda mais seu queixo e me encarou com ares de desafio. Devolvi o olhar sem medo. Ela se afastou abrindo passagem:

— O soldado não é uma ameaça, podem deixá-lo passar. Cuidem da garota, preciso falar a sós com ele.

— Então você realmente o conhece, Amaryllis?

Minha amiga de infância acenou positivamente para o rapaz que impedira minha passagem anteriormente, e fez sinal para que eu a seguisse. A malha humana foi se afastando, nos dando passagem. Amaryllis estava entrando em uma pequena casa quando senti um tranco no peito: Douglas me encarava com muita seriedade.

— Não vou deixar você a sós com esse… tipo…

— Não seja tolo, Douglas, sei me defender muito bem.

— Então há algum tipo de risco, não é, Amaryllis? — tornou a falar o rapaz que me abordara antes de todos.

— Não, não há. Douglas é que tem cismas bobas.

Amaryllis entrou na casa e eu, forçando passagem, ia fazer o mesmo, quando Douglas me barrou novamente, os olhos raivosos. Pela primeira vez meu rival estava em um terreno que lhe era favorável, e estava consciente disso:

— A faca fica. Não há motivos para entrar armada.

Levantei a sobrancelha ante seu artigo feminino, mas ninguém pareceu perceber o deslize. Calmamente tirei da cintura minha faca, a mesma com que ameaçara Douglas no estábulo no dia em que nossa inimizade foi selada, e a entreguei em suas mãos.

— Cuide dela com carinho, foi presente de minha mãe.

Ele a atirou no ar, bem em minha frente, como se fizesse troça da importância que a arma tinha para mim. Entrei na casa odiando ter que deixar com ele a única lembrança de minha mãe, que sempre me acompanhava.

Fechei a porta e me vi a sós com Amaryllis pela primeira vez em muitos anos. Estava de costas, mas se virou raivosa tão logo percebeu a porta fechada.



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