Aléssia

Capítulo XXVII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXVII <<<

Minha respiração ofegante dificultava o raciocínio. Era necessário acalmar os pulmões, apaziguar a mente. Relaxei devagar, mas profundamente, até dar repouso a todos os meus músculos. Seria capaz de suportar qualquer provação dentro daquele estado de ânimo, pensei. Mas minha paz interior foi perturbada por uma fina sensação de agulha que se transformou em uma dor lancinante em meu braço esquerdo. Urrei de dor enquanto a Marca da Pedra queimava infernalmente, obrigando-me a rolar pelo chão. O solo irregular marcava minhas costas E eu lutava desesperadamente para suportar aquele tormento. De repente senti pedras machucando minhas costelas e a grama roçando a pele de meu rosto. Abri os olhos para reconhecer o Bosque Oculto na sua escuridão que parecia perene.

— Volte para mim… volte para ocupar o lugar que é seu. Não quebre a corrente, Aléssia de Amaranto.

O símbolo n’A Pedra à minha frente pulsava em vermelho sanguíneo, enquanto meu próprio braço parecia ser devorado pelo fogo. Balbuciei algumas palavras desconexas implorando para acabarem com aquele suplício. Meu corpo rolava descontrolado no chão, não sabia dizer quanto tempo seria capaz de suportar. Entre lágrimas, percebi alguém se aproximar lentamente. Um par de botas parou diante de mim e julguei perceber o vulto de meu pai se abaixando e me segurando pelos ombros. Quando me colocaram em pé, no entanto, me vi cara a cara com a bela morena de quem eu era prisioneira. A luz do porão estava acesa e meus olhos arderam, não sei se pela claridade ou se pela dor implacável no braço.

— Ela está fervendo em febre. Era só o que faltava! Traga água pra beber e mais um tanto para fazer compressas frias. Não se esqueça de trazer alguns panos limpos também.

— Está certo, Alex. Volto o mais rápido possível.

Alguém segurou meus braços por trás e, com um objeto afiado, livrou-me da corda. Sem me lembrar das inúmeras recomendações de meu pai, levei instintivamente a mão ao braço doente e deixei o corpo cair pesado no chão duro. A dor tirava-me dos eixos, eu estava enlouquecendo.

— Mate-a, Aléssia, mate-a e volte para mim!

A voz d’ A Pedra era nítida e imperativa, dominava de uma maneira que eu certamente teria obedecido se fosse capaz de me mover. Mas a dor paralisava-me, amortecia todo o resto e, embora eu ouvisse nitidamente a ordem, não conseguia compreendê-la, as forças todas concentradas em suportar a dor sem sucumbir.

— Morte — murmurei, e não sabia se falava com A Pedra ou com a morena que, em algum lugar, assistia minha agonia. A dor aumentava de intensidade e a mão sobre a marca começou a arder, consumida pelo mesmo fogo que devorava meu braço. Então um pano frio encostou em minha testa, e alguém levantou meu corpo.

— Chame Mirea e diga que é urgente, vou precisar de ajuda.

— Você acha que é grave, Alex?

— Se for o que penso, não é apenas grave, é desesperador. Agora vá logo, traga Mirea o quanto antes.

A sensação fria saiu de minha testa e chegou ao braço. A dor arrefeceu o suficiente para que eu abrisse meus olhos e observasse os olhos cinzentos que me fitavam com preocupação, os mesmos olhos que me aqueciam nos meus melhores sonhos.

— Mãe? — minha voz saiu ofegante, soluçando por um abrigo, um amparo.

— Não, não sou sua mãe. — O pano abandonou meu braço e um barulho úmido como um mergulho soou por um instante, depois a água escorreu por todo o braço esquerdo e senti que eu resfriava por inteiro.

— Ah, Mirea, finalmente! Segura-a com força.

A sensação quente e reconfortante de estar contra o peito de alguém, quando a sentira pela última vez? Não importa, essa sensação é sempre muito bem-vinda; abandonei o corpo, deixei-me acolher por quem quer que fosse, enquanto meu braço era libertado com o barulho esfiapante de pano sendo cortado. Gotas de água choveram em minha ferida, e a agonia começou finalmente a ceder.

— Céus, o que é isso, Alex?

— Algo grave, Mirea. Mas trate de esquecer ou esse conhecimento pode lhe destruir.

As gotas se tornaram cascata enquanto meu braço era lavado com cuidado.

— É tão grave assim?

— Muito mais do que você possa imaginar. Trouxe as ervas?

— Sim, quais vai querer?

— Calêndula, milfólio e alecrim. Vamos recostá-la na parede, preciso que você macere as folhas pra mim.

Meu corpo foi arrastado gentilmente e, com a visão ainda turva de dor, consegui perceber o vulto de uma mulher jovem sentada à minha direita. A Marca da Pedra continuava sendo lavada e a dor cedia paulatinamente, mas só estancou quando a compressa de ervas foi amarrada sobre ela. Então vi os olhos de chuva que me olhavam com preocupação, perturbadoramente idênticos ao de minha mãe.

— Alex… — falei pra mim, naquele meu jeito de pensar sonoramente. Estava juntando fragmentos do que ouvira hoje e coisas um pouco mais antigas. Ela arqueou a sobrancelha direita ganhando um ar ainda mais inquisidor.

— Alexandra dos Olhos Cinzentos — completei meu pensamento. A morena ficou em pé, se afastou dois passos e me encarou com a expressão preocupada.

— Vejo que já ouviu falar em mim.

— Do mesmo modo que percebo que você sabe quem sou.

— Claro que sei. Não teria me dado ao trabalho de ir te buscar na Floresta Escura se fosse apenas um soldadinho desgarrado do exército.

— Me buscar?

— O que acha que fomos fazer na Floresta? Um passeio?

— Mas… como sabia que eu estava lá?

— Sei de muitas coisas. Vivo de ter informações privilegiadas. E quando não sei, a informação corre atrás de mim… — seu olhar deslizou para meu braço esquerdo e me fez perceber a gravidade da situação. Os maiores inimigos de meu pai estavam, finalmente, de posse de uma informação profundamente confidencial. O braço ainda doía, a mão direita amparando o curativo feito pela mulher que, meses antes, eu desejava varrer para fora de nosso reino.

— O que faço com você agora, Aléssia?

— Eu poderia lhe dar uma dúzia de sugestões, mas acho que você não precisa delas. Se é assim tão esperta com certeza, saberá muito bem o que fazer com tudo o que conseguiu nas últimas horas.

Alexandra não disse nada. Afastou-se alguns passos e remexeu em algumas coisas que estavam largadas em um canto do cômodo que, a não ser por isso, estava totalmente vazio. Depois se levantou e caminhou com passos lentos, sempre olhando nos meus olhos. Ajoelhou-se do meu lado, muito próxima de meu rosto. Sua expressão dura não combinava com os olhos que, em meus sonhos, eram sempre doces e ternos. Eu não entendia como poderia sonhar com os olhos de Alexandra no rosto de minha mãe, não conhecendo nenhuma das duas. Sem dizer palavra, a inimiga de meu pai abriu as mãos e vi meu punhal de cinta, o punho trabalhado em prata onde um lobo uivava para a lua. Nos olhos do lobo dois pequenos cristais, um acinzentado e o outro azul como o céu. Num gesto brusco tentei recapturar meu pequeno tesouro, mas ela foi ainda mais rápida, e se afastou exibindo o punhal, triunfante. Tentei me levantar para lhe fazer frente, mas o braço esquerdo fisgou com fúria e tornei a cair.

— Isso me pertence — disse com raiva. Era a única lembrança de minha mãe e o pouco que me restava de meu mundo pessoal.

— Não estou bem certa — respondeu Alexandra, a expressão séria. — Não sei como o conseguiu, mas duvido de que tenha a retidão de caráter necessária para utilizá-lo.

Ergui o queixo buscando alguma dignidade. Na situação em que me encontrava, certos segredos não tinham importância. Se ela sabia quem eu era poderia facilmente deduzir que o punhal era uma joia de família. E ninguém mais digna do que eu, a legítima herdeira de Maura, para conduzi-lo e utiliza-lo.

— Não sei do que está falando. Esse punhal pertenceu à minha mãe e me foi deixado de herança.

— Esse punhal não foi feito para matar.

— Não o uso para matar! Carrego-o comigo em honra à memória da Rainha Maura Alexandrina de Amaranto.

— O’Líath.

Não entendi seu último comentário e minha expressão de quem tinha engolido algo de sabor duvidoso não lhe passou despercebido.

— Maura Alexandrina de Amaranto O’Líath. Não sabe o nome de sua própria mãe, Princesa?

Era a primeira vez que me nomeava por meu título, e o fez com tanto escárnio que quase me deu náuseas. Isso, aliado à provocação de me dizer que eu não sabia o básico sobre minha família, fez o sangue ferver o suficiente para me colocar de pé, apesar da dor faiscante no braço.

— Quem você pensa que é pra falar assim comigo? E para dar à minha mãe nomes além dos verdadeiros? Só por me ter subjugado acha que pode agir da forma que lhe dê na veneta? Você não me conhece, Alexandra. Eu morro se preciso for, mas ninguém – ninguém! – jamais irá desonrar minha mãe em minha presença!

Pela primeira vez seu rosto brilhou em um sorriso e o olhar foi tão terno e carinhoso quanto o dos meus sonhos.

— Deveria me sentir agredida por suas palavras, Aléssia, mas é muito bom vê-la falar de Maura com tanto amor e coragem. E vou responder sua pergunta: sou Alexandra O’Líath, filha de Alessandra Mae O’Líath, irmã de Maura Alexandrina O’Líath. Sou, portanto, sobrinha da Rainha Maura. E sua prima.

– Prima?

Minha mãe era filha única e seus pais estavam mortos muito antes de meu nascimento. Era o que meu pai havia me contado, era o que constava nos livros com a história de Âmina. Mas as pilastras de meu mundo estavam atualmente em terreno movediço e eu não possuía condições de julgar nada do que me diziam. E, portanto, não havia como acreditar ou confiar em alguém. Fosse quem fosse. Mas uma coisa na qual eu nunca havia pensado, e que agora zunia na minha cabeça, é que não fazia sentido que minha mãe não tivesse um nome de família além daquele recebido de meu pai.

Como se pretendesse comprovar o que dizia, Alexandra retirou de suas vestes um segundo punhal, em tudo idêntico ao meu, a não ser por uma pedra vermelha em um dos olhos do lobo.

— Temos o mesmo sangue, Aléssia, ainda que isso possa não nos agradar. Se bem que, pelo que percebi, você se orgulha do sangue de sua mãe. Isso é bom. Finalmente algum traço de caráter em você.

Não respondi sua provocação. A Marca recomeçou a arder levemente. Apertei com força a compressa contra meu braço e tentei digerir tudo o que aquela estranha estava me dizia.

— Como o seu punhal, esse pertenceu à minha mãe e me foi dado por herança. A diferença é que o recebi diretamente de suas mãos, junto com seus conhecimentos e sua missão. E você, Aléssia? Qual o seu conhecimento e qual a sua missão? Eles lhe permitem manejar esse punhal, que um dia foi de sua mãe?

— Esse é o punhal de sua mãe, Aléssia. É um punhal sagrado. Agora não fará diferença pra você, mas chegará o dia em que saberá como usá-lo. Até lá, guarde-o com carinho para que se lembre do quanto sua mãe lhe amava. Mas não deixe seu pai saber que o punhal está com você, está bem, minha querida? Seu pai não queria que sua mãe lhe desse esse presente.

— Por que não, Mestre Renan?

— Provavelmente por achar que é um brinquedo muito perigoso para uma garotinha… mas eu sei que você vai usá-lo com sabedoria, não é? Não vai se machucar nem machucará ninguém com ele, certo?

A imagem de Mestre Renan, ajoelhado para ver meus olhos, com o punhal esticado entre suas palmas, voltou nítida como se estivesse acontecendo agora. Quantos anos eu teria? Sete? Oito? Não importa. Desde aquele dia o punhal era meu troféu. Mas agora, naquela conversa, começava a entender.

— Um punhal ritualístico! É um punhal ritualístico, não é?

Alexandra acenou positivamente com a cabeça, os olhos muito cinzas me congelando.

— Pelos Deuses, o que fui fazer com ele?!

— O que você fez, Aléssia?

Uma avalanche de lembranças se desprendeu de minha memória e ameaçava me soterrar. Meu pai olhando o punhal em minha cintura e querendo saber onde eu o conseguira. Meu instrutor de esgrima maravilhado com a beleza da peça e, em seguida, me ensinando a usá-lo em defesa pessoal. Eu usando-o para ameaçar Douglas no estábulo real. O sangue quente dos soldados escorrendo pela lâmina sagrada, no dia em que salvei Diana.

— O que você fez, Aléssia? O que você já fez com esse punhal?



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