Aléssia

Capítulo XXX

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXX <<<

Mestre Renan pigarreou por um momento antes de continuar:

A essa altura você deve estar se perguntando qual o meu papel nessa história. Bem, como você sabe, minha família tem suas raízes em Forte Velho, cidade que foi anexada à Âmina apenas cinquenta anos antes de Aran se tornar Rei. Apartados do Reino pela Floresta Escura, era natural que nos sentíssemos mais próximos de Líath, povoado com o qual mantínhamos milenar relação de fraternidade.

Vicença era uma mulher muito sábia e me orgulho de dizer que foi uma de minhas mentoras, ao lado de sábios de meu próprio povoado. Com o auxílio deles me tornei perito em educação, e viajei para Âmina em busca de um emprego no centro nervoso do Reino.  Isso foi na época em que Aran deixara Âmina com seus conselheiros para permanecer três meses em Líath. Quando voltou ao Castelo de Três Círculos, já havia desposado Maura.

Nesse momento meus conhecimentos eram enaltecidos pelos nobres de Âmina e eu havia me aproximado de alguns antigos conselheiros. Seu pai, sabiamente, estava preocupado em ter a seu lado conselheiros jovens, que pudessem acompanhá-lo ao longo de seu reinado. Interessava-lhe a experiência dos conselheiros antigos, mas sendo o próprio Rei tão jovem, estava claro que necessitaria de conselheiros de confiança, quando atingisse uma idade mais avançada.

Fiz o possível para me aproximar do Rei e ganhar sua confiança. Mostrei-me leal, sábio e culto. Não foi difícil. Complicado, mesmo, foi convencer sua mãe a não contar que já me conhecia. Maura não percebia perigo algum, estava certa de que tinha encontrado uma saída amistosa para os problemas de Líath. Em seus primeiros momentos em Âmina, Maura dedicava boa parte do tempo em projetos de governo. Acreditava, realmente, que Líath e o Castelo de Três Círculos governariam essas terras com justiça e harmonia. Mas consegui convencê-la de que não seria bom para minha carreira se o Rei soubesse que eu e a sua Rainha éramos amigos de infância, e Maura prometeu segredo.

Se eu tivesse qualquer dúvida sobre a fidelidade de Maura a mim, essa teria passado ao constatar que, com a morte de sua mãe, Rei Aran me indicou para ser seu tutor, Aléssia. Em três anos como conselheiro, eu havia me tornado o predileto de seu pai.

Rei Aran admirava – e admira até hoje – minha cultura e capacidade de transmiti-la. Uma coisa que não posso negar é o amor que seu pai tem por você. Amor de tal ordem profundo, que cheguei a pensar que você havia curado seu pai. Após seu nascimento o rei deu sinais de ter se tornado mais humano. O tempo, entretanto, comprovou que eu estava enganado.

Não cheguei à Âmina com o intuito de ser seu tutor. Tudo o que pretendia era observar o Rei de perto. Obter informações privilegiadas que ajudassem Forte Velho e Líath. Mas uma vez que ganhei essa posição, decidi usá-la da melhor maneira possível. O jovem que chegou à Âmina com o intuito de conseguir algum sucesso profissional, se viu de repente na situação de tutorar a futura Rainha do reino. Em momento algum me passou despercebida a responsabilidade que eu tinha em mãos: assumi a tarefa de fazer de você uma pessoa íntegra, justa e corajosa como era sua mãe. Buscava, através da educação, minimizar as influências do sangue e do exemplo de seu pai.

A julgar pelos relatos que ouvi há pouco de uma jovem chamada Diana, fui bem sucedido em meu intuito.

O resto você sabe de uma forma ou outra. Há apenas uma última verdade que você precisa saber, Aléssia, mas uma verdade tão terrível que não sei se você está preparada para ouvi-la. Permita-me o silêncio por enquanto, Princesa. Pondere e assimile as informações que lhe passei e o resto da verdade aparecerá, quando for o momento. O que posso acrescentar nesse instante é que, pouco após a morte de sua mãe, procurei Alex… Alexandra O’Líath… e juntos começamos a traçar um plano de ação. Não vou dizer que me orgulho de usar uma criança em meus planos, mas já estava claro que o destino havia nos dado uma oportunidade única.

Desde então Alex acompanha à distância seu crescimento e sua educação, Aléssia. E, não fosse pela marca em seu braço, tenho certeza de que você teria sido tratada com mais hospitalidade por ela.

Sua fuga do Castelo me pegou de surpresa. Eu aguardava pelo momento em que poderia lhe orientar e preparar para alterar definitivamente a história de Âmina e Líath. O que Alex e eu pretendíamos era controlar os ímpetos de seu pai, rebatê-lo como todos os seus antecessores foram rebatidos. Naturalmente você se tornaria Rainha e, influenciada por minha educação, governaria com justiça. Acreditávamos que até mesmo a paz com Líath poderia surgir durante seu governo.

Mas nós desconhecíamos o Pacto da Pedra. Apenas em seu décimo quinto aniversário descobri a fonte do poder da família Amaranto, em uma conversa informal com o Rei. Discutíamos detalhes de sua educação, e então ele me contou da necessidade de lhe preparar para o que chamou de Iniciação pela Pedra. Creio que a essa altura você saiba melhor do que eu o que isso significa.

Aquela revelação de seu pai me mostrou duas coisas importantes. A primeira e mais surpreendente era que seu pai confiava em mim, a ponto de revelar segredos que não poderiam, em hipótese alguma, ser revelados a terceiros. Fui tratado não apenas como alguém de confiança, mas como membro do clã. Não sei o quanto você me conhece, Aléssia, mas essa demonstração de confiança tocou-me profundamente. E, vinda de seu pai, sei que era sem dúvida alguma uma prova de afeto. O que tornou um pouco mais difícil minha posição nessa história, pois que eu sou, não uma pessoa de confiança, mas um traidor vivendo dentro da família real.

Não me orgulho disso, muito embora saiba que minha posição é necessária. Tornei-me peça chave na luta por liberdade e justiça e, se formos bem-sucedidos, a história me honrará por meus feitos. Mas ainda assim, minha consciência pesa por agir de maneira vil com alguém que, pessoalmente, me trata muito bem. Não fosse pelo fato de conhecer os atos de vilania cometidos por seu pai, não fosse por ter testemunhado muitos desses atos ou as ordens para que tais atos fossem cometidos, não fosse por isso eu não teria motivo algum para odiar seu pai.

A revelação que Aran me fez, trouxe consigo outra consequência direta: não nos bastava esperar que você, Aléssia, se tornasse Rainha. Precisávamos resgatá-la antes que você fosse induzida – ou obrigada – a prestar seu juramento à Pedra.

Alexandra, a atual líder do clã O’Líath, é uma mulher valente e ousada. Sob seu comando formamos um exército rebelde, que aumenta a cada dia. Muitos bons soldados e mestres peritos em armas se juntam à nossa luta. Quanto mais devastação seu pai impinge aos povoados, mais e mais voluntários se juntam às nossas fileiras. Saímos da defensiva para uma atitude de franco combate, e temos conseguido avanços importantes. Claro que a contrapartida é o aumento dos ataques bestiais de seu pai. E, claro, ele ataca povoados e vilarejos inocentes e desprotegidos.  O que aumenta a sensação de revolta e insegurança do povo e engrossa ainda mais nossas fileiras.

Mas nada disso tem nenhuma importância, Aléssia, se você já está corrompida. Essa marca em seu braço é como uma cicatriz em meu coração, a prova viva de que todos os meus esforços foram vãos.

— Você falou em prestar juramento à Pedra, Mestre Renan? Não prestei juramento algum. Recebi a Marca antes da hora, o que etou até mesmo meu pai. Ao contrário do que vocês pensam, sei muito pouco sobre a Pedra. Quando a vi pela primeira vez não sabia sequer de sua existência, e depois disso só a vi mais uma vez. Entre um e outro encontro, várias conversas com meu pai, mas todas muito misteriosas, e minhas perguntas sendo respondidas com um lacônico “quando for a hora você saberá”. Agora, com minha fuga, é provável que a hora nunca chegue.

— Você está me dizendo que não fez seu juramento? Até onde eu saiba a Marca só é dada após o juramento!

— Não jurei absolutamente nada, Mestre. Ganhei a Marca no meu segundo encontro com a Pedra. Haveria um terceiro logo após a volta de meu pai de sua “pequena viagem de negócios”, como ele me falou. Mas eu decidi participar clandestinamente de sua viagem e o terceiro encontro não ocorreu.

— Isso realmente é uma novidade para mim. O terceiro encontro seria para o juramento?

— Não posso lhe garantir, Mestre. Mas meu pai se referiu a esse encontro como sendo minha “iniciação da Pedra”. E… desde minha fuga, tenho tido sonhos… alucinações… ou seja lá o que for, em que Pedra me pede para voltar para ela… ou então me vejo lá no Bosque e a Pedra tenta me convencer a toca-la. Então, creio que ainda falte algo importante.

— Você tem sonhos com a Pedra?

— Sonhos ou alucinações, não sei dizer. E…

— E?

— Tenho até medo de dizer isso, Mestre, mas sinto que a Pedra tenta me controlar através da Marca. Alexandra me socorreu em uma crise. Não sei se ela se deu conta do que viu, mas a verdade é que quando tento me afastar a Marca dói horrivelmente, como se estivesse me queimando em carne viva. Minha Marca, aliás, é completamente diferente da de meu pai. A dele é gravada na pele como uma espécie de tatuagem. A minha foi… como que gravada a fogo… de alguma forma minha pele foi queimada, embora isso não tenha sido feito fisicamente… se é que isso é possível.

— Aléssia, tudo isso que você está falando é de fundamental importância. Por favor, conte-me cada detalhe.

Para mim foi um alívio poder falar francamente sobre coisas que me atormentavam há tanto tempo. A traição de Mestre Renan estava confirmada, e por ele mesmo, mas que importância isso tinha agora? A vida é apenas uma questão de ponto de vista e, com meu novo ângulo de visão, dava graças aos céus por não tê-lo denunciado a meu pai.

Narrei a Mestre Renan cada detalhe que fui capaz de lembrar, incluindo sonhos e premonições. Aproveitei para comentar da conversa que ouvira entre ele e um soldado da guarda pessoal de meu pai, e de como me senti confusa depois disso tudo. Ao fim de nossa conversa eu me sentia limpa por dentro.

Meu mestre se levantou reclamando de dores na perna depois de tanto tempo sentado no chão. Meu corpo cansado também sentiu a falta de acomodação e passei lentamente do chão para a cama.

— Vou ter uma conversa séria com Alex. Você terá o tratamento que merece, minha filha. E, por favor, perdoe Alexandra por qualquer excesso. Ela é uma boa mulher e você terá a oportunidade de comprovar isso.

Tal oportunidade, entretanto, pareceu bastante distante quando, menos de uma hora depois daquela visita, Alexandra voltou a meu cativeiro, a cabeça altiva e o olhar duro como sempre.  Não disse nada até ter seu rosto praticamente colado ao meu. Seu olhar impiedoso causou-me calafrios.

— Você dobra Renan com facilidade. Mas não pense que tem poderes comigo. Não lhe vi nascer, nem crescer. E ainda que isso tivesse acontecido, duvido que o sentimentalismo me dominasse. Renan é um homem muito bom, e a bondade muitas vezes abre as portas para a derrota. Eu o respeito, mas conheço bem todas as suas fraquezas. Por isso entendo que ele não consiga ver a criatura pestilenta que a Princesa de Âmina é.

Pestilenta foi dita com tal vigor, que gotas de saliva voaram por todo o meu rosto. Tentei afastar e tudo o que consegui foi ficar mais imprensada contra a parede. Mas não era do meu feitio ouvir bobagens calada.

— Modere suas palavras, Alexandra dos Olhos Cinzentos!

— Engula seu orgulho, princesinha de merda! Aqui quem manda sou eu! Vocês são vermes! Todos os Amaranto, vermes nojentos! Acha mesmo que acredito que você simplesmente desertou de sua vidinha de conforto? Pensa que vou acreditar que você fugiu do papai, Aléssia? Eu sei o que vocês estão tramando. Mas não sou burra. Ouviu? Não sou burra! Se achava que seria fácil se infiltrar em meu exército, se acreditava mesmo que bastava uma “boa ação” e meia dúzia de palavras bem estudadas para me fazer abrir as portas de meu exército, está muito enganada. Não conseguem nos vencer pela força, querem nos derrotar pela astúcia. Boa tentativa, princesinha, mas falhou. Só não te mato agora mesmo porque pretendo utiliza-la de uma maneira melhor. Afinal, o papai vai querer a preciosidade dele de volta, não vai? Vou usa-la em uma armadilha, Aléssia. Você não perde por esperar. Depois mato os dois. Leeeennntamente…

Seus passos pesados a levaram até a porta, de onde me encarou por mais um instante. Olhava-me com desdém e rancor, como se o fato de me ter prisioneira vingasse séculos de perseguição.

— Vou manter os lampiões acesos. Agradeça a Mestre Renan por me obrigar a isso. E espero não me arrepender por lhe ter cedido esse desejo.



Notas:



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8 Respostas para Capítulo XXX

  1. Estou amando seu livro!! Ele prende a gente de uma forma inexplicável *-* Sou sua fã ja kkkk

  2. Toda vez que alessia se encontra com Amaryllis, parece que Amaryllis não gosta dela assim, torcia tanto pra elas…

  3. Uau! Vc consegue me deixar sem fôlego. Capítulo forte. Tanto nas revelações do Renan, como no discurso inflamado de Alexandra. Assim Alessia, se apaixona de vez rsrs não esperava mesmo que ela fosse ceder tão fácil.

    Parabéns!! Muito bom ter Alessia de volta! Beijos

    • Bibiana! Que saudade dos seus comentários! ?
      Que bom que você gostou! A história chegou a um ponto crítico. Se segura aí porque tem muita coisa importante pra acontecer nos próximos capítulos ?

  4. Essa Alexandra pareceu ser “simpática” mesmo ainda desconfiando da Aléssia. Mas com a chegada do mestre Renan ficou ogra, grossa 🙁

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