Aléssia

Capítulo XXXI

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXI <<<

O conforto de enxergar surtiu efeito apenas nos primeiros minutos. Lentamente fui arrastada novamente para meus delírios, a Pedra urrando por minha presença. E não havia nada que eu pudesse fazer além de resistir. Sozinha.

A contagem de dias se perdeu lá pelo nono prato de comida. Com luz ou sem, minha vida no cativeiro era uma monótona repetição de dois instantes: estar comendo, estar aguardando a comida.

Tive muitas lembranças, pensamentos, sonhos, devaneios. Dos comuns e simplistas aos mais absurdos. Confundir o catre do cativeiro com minha cama no castelo se tornou lugar comum. Sentir na pele as carícias de Lara ou de Matilde, também.

Certa manhã, dei por mim contemplando minha imagem no Lago Espelhado. Estava abatida, visivelmente mais velha, os cabelos maiores do que o de costume caindo pelo rosto. Então, como por encanto, surgiu atrás de mim uma figura esguia com um ar muito familiar. Olhei seu reflexo na água e aos poucos reconheci os olhos, tão parecidos com os de Alexandra. Depois vi seus lábios formarem meu próprio sorriso. Seus cabelos negros desciam em ondas pelos ombros. Nunca tinha estado tão nítido para mim o quanto nos parecíamos. Meu coração se encheu de alegria, orgulho e saudade. Levantei-me devagar, e minha mãe me abraçou com ternura.

Em poucas palavras, Maura O’Líath me pediu paciência e força. Alexandra vai conhecer sua alma, vocês serão grandes aliadas. Mas no instante seguinte tudo se tornou nublado, escuro, como se estivéssemos no prenúncio de uma tempestade. As árvores ficaram turvas e perdi o lago de vista. Assim, num passe de mágica, já não estava mais ali, já não era a floresta em seu caráter remanescente, mas seu próprio centro, seu cerne, seu coração energético: o Bosque Sagrado.

A Pedra gritava por mim. Não, nada audível. Mas a maneira como pulsava e brilhava tinha, para mim, o caráter imperativo de um chamamento. Por muito pouco não me ajoelhei, complacente – qualquer coisa que me livre de todo esse sofrimento, pensei.

— Sua vida de volta, Aléssia… não é isso o que você quer?

Sim, era. Proposta tentadora. Mas longe, na memória, a voz de minha mãe: seja forte.

Recuei dois passos e teria recuado mais, não fosse uma fisgada no braço esquerdo. Do não sentir nada à dor absoluta, foi apenas um momento. A voz da Pedra me exortava à ação.

— Apenas um gesto. Estique seu braço. Nunca mais haverá dor alguma. Nunca mais nenhum tormento. O mundo todo estará a seus pés. De você serão as decisões, seu – e apenas seu – será o Poder. Tudo isso ao alcance de suas mãos, Aléssia. Toque-me!

— Não! — rosnei levemente, mal tendo forças para abrir os lábios.

— Vamos parar logo esse sofrimento… toque-me.

— Não! — disse, dessa vez com mais força e decisão.

— Deixe de tolice, Alés…

— NÃO! — berrei a plenos pulmões, usando de uma força e energia que não sabia de onde vinha.

Já me preparava para urrar, com medo de fraquejar diante daquela voz barrenta, mas ao invés da Pedra ouvi um uivo e, logo em seguida, um lobo interpunha-se entre a Pedra e eu. Como se fosse possível uma rocha temer um animal, a Pedra silenciou. Uivando, o animal me olhava. A dor no braço me dominava completamente, e talvez por isso eu seja capaz de jurar que ouvi o lobo dizendo, em voz quase humana, vá embora, fuja enquanto é tempo. Não sei ao certo como fiquei em pé e andei alguns passos adiante. Mas tão logo saí do círculo de influência da Pedra, já pude correr livremente. Por pouco tempo, no entanto: minhas pernas encontraram a ternura do solo da Floresta Escura e meu rosto, contorcido pela dor, olhava-me no fundo do Lago Espelhado.

Uma sensação úmida invadiu meu braço, que queimava com fúria.

— Aguente firme, já vai passar.

No meio de meu delírio, reconheci vagamente a voz de Alexandra. E, sonho ou não, pareceu-me mais terna do que o normal.

Seus olhos chuvosos sorriam para mim, as mãos segurando com firmeza a compressa salvadora.

— Essa Marca vai acabar te enlouquecendo. Doeu assim alguma outra ocasião nos últimos dias?

— Sempre dói um pouco, mas hoje foi uma das piores crises. Não tão séria como a outra, da qual você também me salvou, mas ainda assim bem forte.

— Ela tenta te controlar através da dor, não é?

Balancei afirmativamente a cabeça. Sentia-me fraca demais para falar.

— Descanse — disse Alexandra, arrumando suas coisas para sair do quarto.

— Está com fome? Posso mandar lhe servir um pequeno lanche.

— Seria bom, se fosse possível — respondi com sinceridade.

Ela sorriu e fechou a porta atrás de si. Poucos minutos depois, um rapaz, que aparentava ter seus quinze anos, entrou com uma bandeja contendo chá, frutas e um tipo especial de pão com ervas que se revelou extremamente saboroso. A primeira refeição que me foi servida por amor e não por obrigação.

O rapaz retornou uma hora depois para retirar a bandeja. Olhava-me com indisfarçável curiosidade e me tratava com um respeito que julguei ser oriundo do medo. Quando já se aproximava da porta, o menino me fez uma reverência e disse que Alexandra viria me ver em poucos minutos. Falou tudo num tom muito formal como se, em função da visita, eu devesse vestir meu traje de gala ou coisa do gênero. Achei engraçado e não levei em consideração. Deitei me preparando para mais um longo período de sono ou alucinação, nunca sabia o que encontraria na minha solidão, e cheguei mesmo a murmurar uma prece, pedindo por um pouco de sono vazio e escuro.

Mas ao invés de descanso, tive companhia. Alexandra, os cabelos negros curtíssimos realçando o formato anguloso de seu rosto quadrado. A mulher severa que me mantinha em cativeiro, e que pela primeira vez vinha à minha presença sem nenhum traje militar, sorria amigavelmente. Usava um vestido de algodão justo o suficiente para revelar um corpo insuspeitavelmente belo.

— Precisamos lhe arranjar algumas vestes mais adequadas, não é? Renan me disse que você se sente mais à vontade em roupas masculinas.

Concordei, e ela fez um sinal para que a acompanhasse. Não movi um único músculo. Que mudança repentina era aquela? Minha imobilidade surtiu mais efeito do que um longo questionário. Alexandra fechou a porta do quarto e se sentou em meu catre.

— Eu lhe devo desculpas e explicações não é?

Não respondi. Apesar das palavras de Mestre Renan, não sentia simpatias por aquela mulher. Talvez por ter aprendido a odiá-la antes de tudo.

Alexandra não aguardava uma resposta, entretanto. Sentada, de cabeça baixa, parecia estudar o que pretendia dizer:

— Renan lhe deixou informada sobre os antigos problemas de nossas famílias, não é? Você é a junção de dois clãs que sempre se odiaram. Acredite, Aléssia, desde seu nascimento pensei em você como a herdeira de minha tia Maura, a quem tanto amei. E quando a vi pela primeira vez  fiquei assombrada: você se parece muito com sua mãe! Eu gostaria muito de amá-la, Aléssia, como prima que somos. Mas você foi criada por seu pai e, até onde eu saiba, tem o temperamento dos Amaranto. Talvez isso não tivesse tanta importância, se você não tivesse essa maldita marca em seu braço. Mas você a tem.

Eu conseguia compreender os medos daquela mulher,  que colocava sobre os próprios ombros a vida de seu povo. Ao menos nisso estávamos irmanadas, nesse destino cruel de ser responsáveis por tantas vidas, a ponto de colocar os problemas pessoais em segundo plano. Meu pai, com certeza, enxergava sua posição de forma diferente, mas eu fui treinada a pensar assim, havia sido preparada para governar com foco no interesse do Reino e não em meus interesses próprios.

— Compreendo seu dilema, Alexandra — disse finalmente — Gostaria muito de lhe dar provas de que não concordo com as atitudes de meu pai e que, apesar de ter a Marca gravada em meu braço, não efetuei nenhum juramento,  nem me comprometi com a Pedra de forma alguma.

— Eu sei que não — falou com uma certeza tão grande que me etou.

— Sabe?

— Sim, eu sei. Por mais estranho que pareça, Aléssia, agora eu sei. E gostaria de me desculpar pela forma como lhe tratei desde que chegou à nossa cidade. Gostaria apenas que compreendesse que não podemos correr riscos. Nossa situação é muito delicada e eu precisava de provas.

— Acabei de lhe dizer que não podia provar. Como mudou de opinião tão rapidamente? Que provas você tem?

— Agora quem não pode explicar claramente sou eu, Aléssia. Mas digamos que a sua última crise me tirou todas as dúvidas. Eu vi você resistindo ao chamado da Pedra, lutando por sua liberdade. Espero que isso seja explicação suficiente pra você.

— Você me viu? Estava no quarto enquanto eu delirava?

— Não é delírio, não é mesmo? É bastante real. Real a ponto de a cicatriz queimar seu braço e lhe impingir uma dor,  que poucas pessoas são capazes de suportar. E ainda assim você resiste. Sua força de caráter é mesmo excepcional, como Renan sempre afirmou. Ele de fato lhe conhece muito bem e tem um amor especial por você, Aléssia. E agora sei que esse amor é mais fruto da convivência com você do que do fato de você ser filha de Maura. Mas por muito tempo tive dúvidas, e isso só piorava minha condição para julgamento. Espero, honestamente, que um dia você possa me perdoar por esses erros e que o sangue fale mais alto e sejamos, enfim, uma família unida, como temos sido ao longo dos séculos.

— Família que agora ganha laços com o inimigo. Sou uma piada do destino, não é?

— Espero que você seja a solução para um longo conflito.

— Gostaria de ter esse poder todo, Alexandra, mas não tenho. Sei que você não vai compreender mas, apesar de tudo, Rei Aran é meu pai. Sim, estou chocada com tudo o que descobri recentemente sobre esse homem, mas ainda assim o amor que tenho por ele é real. Nunca tive motivos para odiá-lo, comigo foi um pai amoroso, cuidadoso, preocupado com minha educação, meu bem-estar, disposto a sacrifícios por mim. O que mais alguém pode esperar de um pai?

Alexandra ficou me olhando por tanto tempo,  que me perguntei o que ela estaria vendo.

— Não se culpe por amar seu pai. Mas também não me culpe por odiá-lo. Isso, com certeza, será o primeiro passo para que possamos estabelecer algum nível de entendimento. Por enquanto, o que podemos fazer é aprender a conviver uma com a outra. Vou lhe autorizar a andar livremente pela cidade, Aléssia, mas não pode sair dos muros de Líath sem minha autorização. Não que eu queira lhe aprisionar, mas zelo por sua segurança assim como a de todos nesse povoado. Espero que compreenda e não discorde de minha autoridade.

— Sei que estou em seus domínios, Alexandra, e saberei respeitar suas decisões.

— Chame-me de Alex, como todos os meus amigos. Alexandra é formal demais. Vou pedir que lhe tragam roupas mais adequadas.

Saiu imediatamente. Minutos depois uma menina se ofereceu para me ajudar no banho. Aceitei agradecida, há tempos não me limpava de forma adequada.

A garota tinha a pele morena e os cabelos negros encaracolados, volumosos. Os lábios carnudos abriam-se num sorriso. Suas mãos delicadas me despiram com suavidade e depois esfregaram água morna em minha pele exausta. A delicadeza de seu toque e a maneira tão carinhosa de seu trato me levaram em uma viagem aos muros do castelo. Olhos fechados, o perfume de ervas lançadas na água quente, a massagem delicada em meus músculos, o leve acariciar na pele para livrá-la de impurezas, me entreguei a esses cuidados com fome por uma vida morta. Toquei de leve as mãos que cuidavam de mim, e por muito pouco não puxei para meu colo a pequena de Líath, pensando estar sob os cuidados de Lara.

Lara. Onde ela estaria?

Com um gesto, a pequena me pediu para levantar. Secou meu corpo e me ajudou a vestir uma delicada camisa de algodão e calças de montaria. Depois fez uma mesura e saiu, deixando a meu encargo os últimos detalhes da roupa.

Não cheguei a usufruir de minha privacidade. Alexandra entrou logo em seguida, analisou meu visual, ajeitou o cordão de minha camisa e me convidou a sair.

Voltei ao longo corredor por onde passara carregada pelos soldados. Cheirava a mofo e madeira velha. As tábuas rangiam debaixo de nossos pés e as paredes, muito próximas, pareciam pré-dispostas a me agarrar e trancafiar novamente no quarto.

— Você não permanecerá nesse quarto, obviamente. Pensei em colocá-la em outro, anexo ao meu próprio, na casa principal. É o lugar em que ficam os membros da família. Dessa forma posso lhe dar uma assistência maior sempre que precisar. E posso também lhe socorrer quando a Marca voltar a incomodar.

Houve uma pausa antes que ela dissesse a última frase, e o fez em um tom de voz mais delicado do que o resto de sua fala. Percebi que tinha medo de ser indelicada ao tocar em um assunto que parecia tabu entre nós. Essa demonstração de cuidado me tocou.

— Sua ajuda é bem-vinda, Alexandra. Sempre lhe serei grata por ter aliviado minha dor nos piores momentos. Sem você talvez eu tivesse sucumbido. Eles tentam me enlouquecer com essa tortura, para que eu faça o que eles querem, sem pensar. Pois essa é a única maneira de conseguirem o que querem.

— Chame-me de Alex, por favor.

— Certo. Alex… vou tentar me habituar, desculpe.

Pela primeira vez trocamos sorrisos e amabilidades.

Saímos da casa para a praça principal que, no outro dia, estava lotada de curiosos. Hoje apenas algumas pessoas passavam, e nos olharam de soslaio. Cruzamos a praça até uma charmosa casa avarandada com aspecto de solar. O portão de ferro rangeu,  quando Alex o empurrou para dentro. Subimos a pequena escada de três degraus, passamos pela varanda e entramos em uma agradável sala de estar que tinha aroma de flores e ervas. O sol atravessava uma vidraça lateral e era filtrado pela cortina rendada. Sua luz cálida dava à sala um aspecto fresco e aconchegante.

— Seja bem-vinda a meu lar, Aléssia O’Liath. Espero, sinceramente, que se sinta em casa aqui e que possa, em breve, chamá-lo de seu lar também.



Notas:



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4 Respostas para Capítulo XXXI

  1. Olá, Autora!
    Essa Alex começa a me inspirar a muitas coisas, sabia?
    Imagino como ela deve ser na sua mente….
    Parabéns. Seus personagens são apaixonantes!
    bj

    • Olá, Fira Liberiz

      hummmm então Alex também está mexendo com sua imaginação, hein? Bem-vinda ao fã clube 😉

      E obrigada por seu comentário, meus personagens agradecem suas belas palavras (eles são mais cara de pau, eu sou tímida rssss). Um grande beijo, gratidão pela leitura!

  2. Faz pouco tempo que entrei no site e já estou adorando. Li os 30 capítulos da sua história em um dia! Ainda bem que foi ontem! Rsrrsr já estou ansiosa pelo próximo e querendo mais. ?

    • ?
      Bem-vinda, Lins!
      Caramba, os 30 em um dia? Você lê rápido, hein?!

      O próximo capítulo será postado no domingo. Atualizo Aléssia duas vezes na semana, religiosamente 😉

      Um grande beijo e gratidão pelo comentário, esse retorno é muito importante pra mim ?

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