Aléssia

Capítulo XXXII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXII <<<

Há poucos dias aquela mulher era minha adversária em uma batalha na Floresta Escura. Arrastou-me como prisioneira para sua cidade, tratou-me de forma vil e agora me recebia com honras e carinho em sua casa.
— Obrigada. A sala é muito aconchegante, transmite paz e descanso. Apesar de meus primeiros dias aqui em Líath não terem sido agradáveis, quero muito conhecer a cidade. E sinto como bom presságio que, após me exilar de meu pai, seja a terra de minha mãe que me dê acolhida.
— Venha conhecer seu quarto — disse Alexandra, com um sorriso nos lábios ao me ouvir mencionar minha mãe. Pela primeira vez pensei que aquela mulher conhecera Maura, convivera com ela, recebeu dela o amor que a vida me usurpou. Senti falta de minha mãe, como uma criança que chora pelo peito que a alimenta. Nada disso estaria me acontecendo se ela estivesse viva, pensei.
A sala desembocava em um pequeno corredor transversal à entrada da casa. Alex virou à esquerda e entrou por uma porta que chegava a uma antessala. Nela, duas portas guardavam a entrada de quartos conjugados.
— Se gostou da sala com certeza gostará daqui — falou abrindo a porta da direita — É fresco e iluminado pela luz da manhã. Não se parece em nada com seus aposentos no Castelo, certamente, mas todos aqui em Líath faremos o possível para que você se sinta à vontade, Princesa.
— Tenho certeza de que ficarei bem. Não sou apegada a luxos e esse quarto é muito aconchegante, o lugar ideal para descansar e colocar ordem na cabeça.
— Fico feliz que tenha gostado. Você conheceu Mirea, minha ajudante. Foi ela quem lhe levou as roupas ainda há pouco. Deve ter reparado que ela é uma jovem de poucas palavras, mas é bastante prestativa. Pode procurar por ela se precisar de alguma coisa.
— Não cheguei a ouvir sua voz. Para ser sincera, achei que tivesse algum problema nas cordas vocais. Mas foi muito atenciosa e, mesmo em silêncio, sua companhia me foi agradável.
— Mirea não tem problema algum nas cordas vocais, mas sofreu um grande trauma. Coisas da guerra. Pergunto-me se algum dia irá superar e voltar a ser a menina alegre que sempre foi. Até lá o que podemos fazer é dar-lhe conforto.
— Não se preocupe, de minha parte será sempre muito bem tratada.
— Alegro-me em ouvir isso. Uma das coisas que mais machucavam sua mãe era a forma como os criados eram tratados no Castelo de Três Círculos. Aqui a vida social é organizada de outra forma, tenho certeza que você irá notar, e todos são sempre tratados pelo que são e não pelo que fazem. Toda função é nobre, precisamos uns dos outros.
— Também sempre me machucou a maneira como os nobres tratam seus serviçais. Você me disse há pouco, que tenho o caráter de meu pai. Talvez eu seja parecida com ele em muitas coisas, mas o caráter se vê nos detalhes e nisso sempre fui muito diferente de Rei Aran.
Alexandra se limitou a me olhar e fez um aceno com a cabeça, que indicava seu desejo de que minhas palavras fossem verdadeiras. Então saiu do quarto e me deixou a sós para reorganizar minha vida.
No dia seguinte recebi visitas dos alfaiates de Líath, encarregados por Alexandra para me confeccionar todo um enxoval. Os primeiros encontros foram tensos, já que insistiam que eu deveria me vestir como todas as donzelas do povoado. Nosso terceiro encontro terminou quando os coloquei bruscamente para fora de meus aposentos, declarando que poderia viver muito bem apenas com as roupas velhas dos cavalariços de Líath. Voltaram cerca de uma hora depois com modelos de roupas masculinas e me deixaram escolher o que bem entendia. Então foi aquele festival de medidas e amostras até que dois conjuntos completos de vestes estivessem em meus armários. Nos dias seguintes muitos outros chegariam, até totalizar uma dúzia completa. Enxoval digno de uma Princesa, sem dúvida nenhuma.
Meu novo quarto tinha cheiro de jasmim, exatamente como o antigo. Em meu primeiro alvorecer acordei me sentindo em casa. A cama com colchão de molas, os lençóis de algodão muito macio e o leve aroma de goma na fronha, tudo isso contribuía para a ilusão e eu, sonolenta, permaneci no engano até levantar na penumbra, chamando por Lara, e abrir a janela para saudar o Monte Vermelho que não estava lá. Ao invés disso me deparei com o casario amarronzado de Líath em uma rua escura, onde alguns homens começavam sua rotina de trabalho. Um deles me viu e saudou com simpatia erguendo seu chapéu. Respondi com o mesmo entusiasmo, simplesmente porque era bom ter de volta coisas pequenas de uma rotina civilizada.
Durante uma semana recebi de Alexandra a instrução de permanecer em repouso. Minhas refeições eram servidas no quarto e constavam sempre de uma quantia generosa de folhas, legumes, carne, queijo, azeite e vinho. Chás dos mais diversos tipos eram servidos ao longo do dia, muitas vezes acompanhados pelo fabuloso pão de ervas, do qual eu já havia me declarado fã, para alegria de Alexandra que revelou ser a responsável pela iguaria. Em outros momentos a jovem Thália, outra assistente de Alex, me trazia uma grande quantia de frutas com a recomendação clara de comê-las todas. Parecia-me um exagero, mas eu obedecia.
Não sei se a fartura da alimentação, o aconchego do quarto, o conforto da cama ou o marasmo de não ter o que fazer é que me provocavam tanto sono, mas o fato é que entre uma refeição e outra eu dormia muito. E, milagrosamente, esse período foi de sono sem sonhos, nem alucinações. Apenas aquele calmo sono negro que permitia a meu corpo se recuperar de todos os traumas recentes.
Ao fim dessa primeira semana, em uma manhã especialmente quente, Alex me convidou para desfrutar da primeira refeição do dia em sua companhia, em uma pequena sala de jantar que havia do outro lado do corredor. Depois disso passamos a fazer todas as nossas refeições juntas, o que começou a estabelecer um vínculo que, se não era amizade ainda, ao menos podia ser chamado de afeição.
Recuperada pelo descanso e pela alimentação comecei, enfim, a ter uma vida em Líath. Nos primeiros dias Alexandra me apresentou pessoas e lugares. Andamos pelo vilarejo até que eu fosse capaz de me localizar sem auxílio, e foi só depois disso, quando tomei a iniciativa de sair sozinha para rever lugares e encontrar pessoas, só então Alex me levou ao lugar mais preservado do povoado: o campo de treino.
Saímos de casa nos minutos que antecedem o nascer do sol e nos dirigimos ao lado sul do vilarejo. Saindo da praça principal, caminhamos pelas ruas de comércio até o terreno existente entre dois prédios. Ali Alex me ordenou que entrasse, vindo ela mesma logo em seguida. A passagem não tinha mais do que meio metro de largura, e naquele horário era muito escura. Meus pés, entretanto, não se enganavam e reconheciam que o chão ali era de pedra. O pequeno corredor, com cerca de metro e meio de comprimento, desembocava em uma rua aparentemente igual a todas as demais. Mas ali Alexandra assumiu a dianteira e me guiou por um labirinto de ruas, de cuja existência nunca suspeitei.
Chegamos então a um terreno amplo ocupado por homens, cavalos e armas. Nos misturamos ao burburinho e ninguém fez conta de nossa presença. Fomos passando por aqueles homens, que aparentemente se organizavam para a batalha e, da periferia ao centro, chegamos a um marco onde um rapaz não muito alto, mas extremamente forte, nos fez um aceno e veio ter conosco. Tinha os cabelos negros ondulados e volumosos, longos, alguns fios presos em uma fina trança em suas costas, todo o resto solto descendo em anéis por seus ombros e costas. O sorriso jovial revelava dentes fortes e brancos. Cumprimentou Alex com um beijo na face, que foi rapidamente retribuído. Pela primeira vez a via trocar intimidades com alguém, mas não tive tempo de avaliar nem pensar coisa alguma. Pois que os dois me olhavam com ar de avaliação, o jovem medindo-me sem nenhum pudor, mas com um olhar que não era nem de desejo, nem de curiosidade. Estava mais próximo do escárnio, pensei, mas talvez fosse apenas meu mau humor diante de situações como essa.
— Esse é Breno — disse Alex — meu irmão caçula. Ele é o líder de nosso exército e será, a partir de hoje, seu orientador. Sei que você é uma excelente espadachim, mas talvez precise se aprimorar no combate corpo a corpo. Como Princesa de Âmina você foi preparada para lutar tendo um exército a lhe auxiliar. Aqui, lutamos todos unidos e defendemos uns aos outros, quando possível. Mas ninguém é mais importante do que os demais, se é que você me entende, Aléssia.
— Compreendo perfeitamente — disse com má vontade. O hábito de Alex de ressaltar meu título de nobreza e os confortos de minha vida me irritava.
— Ótimo, vou deixá-los então. Breno lhe dirá qual sua nova rotina. — disse Alex enquanto despedia-se. Fiquei com seu irmão que, percebia-se facilmente, nutria profunda antipatia por mim.
Sem nenhum pudor Breno me encarou de cima embaixo antes de dizer, com indisfarçável desdém:
— Princesa Aléssia, finalmente… Vejamos se é mesmo tão boa nas armas quanto Renan diz — jogou uma espada em minhas mãos e, sem que eu tivesse tempo de preparo, começou a golpear. Minha primeira defesa foi torta e desajeitada, mas na segunda eu já empunhava a espada com segurança. O terceiro golpe de Breno eu rechacei com força e, a partir daí, ao invés de apenas me defender, comecei a atacar.
A espada que estava usando era mais leve que Brenda e eu a manobrava com extrema rapidez. Não precisei nem de cinco minutos para derrotar o general do exército rebelde, arrancando-lhe a espada das mãos. Os homens em volta se aglomeraram para nos ver duelar e as expressões de eto, quando a espada de Breno caiu ao chão, foram inúmeras.
— Se fosse um combate de verdade, você estaria morto, caro general. Talvez precise treinar um pouco mais — disse-lhe com satisfação enquanto atirava as duas espadas a seus pés e deixava a área de combate. Eu não tinha nenhuma intenção de passar meus dias com aquele sujeitinho insuportável.
Refiz o caminho que Alex me mostrara e caminhei sem pressa até a praça principal. A cidade estava morta, ainda mergulhada no escuro, e os poucos sons que se ouvia vinha de dentro dos comércios onde, eu adivinhava, trabalhadores preparavam produtos para venda.
Procurei Alex em casa e depois em alguns prédios conhecidos. No começo da tarde a encontrei em uma área próxima às plantações, na cozinha de uma pequena casa, cercada de ervas e mulheres, preparando unguentos, chás, tinturas, poções e tantas outras coisas parecidas com as que Malvina me servia no Castelo. Minha chegada causou um pequeno burburinho, todos os olhares voltados para minha presença quase masculina, tão distante daquelas mulheres de vestido e lenço nos cabelos. Uma pequena senhora de cabelos brancos, quase pele e osso apenas, as mãos frágeis e os olhos cavernosos, benzeu-se três vezes vendo-me entrar. Seus lábios envelhecidos murmuraram palavras que, mesmo sem ouvir, eu sabia que eram um pedido de proteção.
Alexandra se adiantou do grupo e veio a meu encontro e, com um sorriso afável, me pegou pelo braço e levou para fora da casa.
— Como conseguiu me encontrar aqui?
— Thália me disse que talvez estivesse aqui — respondi esticando o pescoço para dentro da casa — De quem é essa casa?
— Da comunidade. Não é uma casa, é um local de orações e saúde.
— Rezam para ter saúde?
— Mais ou menos — respondeu rindo — Mas me diga o que a trouxe aqui, confesso que estou curiosa.
— Passei o dia lhe procurando…
— O dia? — me interrompeu franzindo a testa — Não devia ter passado o dia com Breno?
— Creio que minha companhia não seja agradável a seu irmão. Ainda mais depois que o derrotei na espada de forma quase vexatória.
— Como é? — O rosto de Alex demonstrava uma mistura de eto com divertimento.
— Deixe para lá, ele mesmo há de lhe contar. Não foi o que me trouxe aqui. Gostaria de ter minha espada de volta, bem como o canivete de minha mão. E, claro, gostaria de rever minha égua, com certeza ela sente minha falta.
Alex soltou um suspiro e começou a andar.
— Sua égua está muito bem, como já lhe disse várias vezes. Mas vou levá-la ao estábulo, para que possa vê-la. Quanto à espada… não sei se é conveniente, Aléssia. Posso devolvê-la, mas não gostaria que você a portasse pelas ruas de Líath.
— Ora, mas por quê?
— É uma joia rara, muito diferente de todas e chama muito a atenção. Sei que você está segura em Líath mas…
— Algum problema, Alex?
— Não sei. Talvez seja apenas um mau pressentimento.
— Se não estou completamente segura isso é mais um motivo para carregar minha espada.
— Não. É um motivo para portar uma espada, sem dúvida, mas não a sua. Acho que seria prudente escondê-la entre os habitantes locais. E sua espada destoa de tudo o que temos aqui.
— Tendo em vista a reação das senhoras da casa de cura e oração, chamo a atenção com ou sem espada. Sou diferente de todas as outras mulheres de Líath. Nem você se parece comigo. A única solução seria novamente me infiltrar entre os homens, mas também eles acabariam por perceber minhas diferenças.
O sol avermelhava os muros a oeste quando chegamos aos estábulos. Pensativa, Alex cumprimentou o vigia e me levou à baia de Amora. Minha égua coiceava e relinchava nervosamente e só se acalmou quando meus dedos tocaram sua testa.
— Reconheceu meu cheiro, minha pequena valente? Como você está? Espero que estejam te tratando tão bem quanto você merece, minha campeã… Salvou minha vida e de Diana, não foi? Princesa valente!
— É um belíssimo animal, de fato. E muito dócil. Tem recebido tratamento vip, eu mesma preparei unguentos para relaxar os músculos doloridos. Ela está bem, pronta para lhe acompanhar em seus novos caminhos, Aléssia.
— Chame-me de Alê, por favor.
— Será uma honra, Princesa.
— Pare com essa cerimônia e não me chame por esse título. Princesa de quê? Abandonei o Castelo dos Três Círculos, não ocupo mais nenhum posto na hierarquia de Âmina.
— Já que me deu permissão de tratá-la como amiga, permita-me dizer que creio que você esteja errada. Você ocupa o mais alto posto na hierarquia tanto de Âmina quanto de Líath. Você é a Rainha da União, aquela cuja coroa reunirá os opostos e apaziguará as inimizades. A Rainha de Âmina e Líath.



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para Capítulo XXXII

  1. Nossaaaaa vc N tem noção de como eu qria ser hacker pra invadir seu computador e saber toda a história kkkkkk ou um livro físico pra devorar essa história !! Kkkk Qrooo mt a Alessia fica com a Alex ?

    • 😯 😯 😯

      Oi, Beatriz, tudo bem? 🙂
      então…
      … os originais de Aléssia acabam de ser transportados para um computador velho e sem acesso à internet, com recursos de segurança copiados da Idade Média 😛 (melhor garantir do que remediar, né? kkkkkkkk)

      Bom, quanto a ter Aléssia em livro, isso está previsto para 2018, em uma versão revista e ampliada. Só não posso garantir – ainda – que vá ter um livro físico. Entretanto, Aléssia tem tantas fãs, e tanta gente me cobra esse livro que sim, há uma ótima chance de que apareça um livro físico em 2018. 😉

      “Qrooo mt a Alessia fica com a Alex” >> parabéns, Beatriz, você acaba de entrar para o nosso bolão. Seu voto já foi registrado. Agora é só aguardar mais um pouquinho pra saber com quem essa princesa ficará – se é que ela vai conseguir sossegar o facho, não é? rssss

      Um grande beijo e muito obrigada pelo comentário. Continue acompanhando, já passamos de metade da história :*

  2. Oi Diana,

    Eita que Aléssia humilhou o primo! Rsrsrs E que responsabilidade pra futura rainha! Queria saber da Lara, o que aconteceu com ela…
    Será que vai ter o casal Alex/Alê???

    Abrs ?

    • Você não tem noção do que esse rapaz ainda vai sofrer nas mãos dela, Lins! 😀
      Quanto a casais… não arrisco palpites. O coração dessa princesa é meio… imprevisível, digamos assim 🙁

      Tenho rezado muito por Lara, espero que rei Aran não tenha descoberto que ela ajudou Aléssia a fugir. Aliás, o que será que o rei tá pensando do desaparecimento da filha, hein?

      Um grande beijo e muito obrigada pela leitura e pelo comentário. Você nem imagina como isso é importante pra mim!

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