Aléssia

Capítulo XXXIV

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXIV <<<

As palavras de Alexandra surgiram nítidas exatamente como no dia em que as ouvi, em minha primeira noite de iniciação. “Nosso é o poder de libertar os demônios, nossa a força de trancafiá-los”. Então era isso…
Tentei, em vão, fechar meus lábios, fazer calar aquele riso maldito que comia meu fígado, devorava meus rins, mastigava minha espinha. Firmei meus músculos, lutei para controlar meus membros, acalmá-los, mas não podia. Não é minha essa força, não tenho esse poder, pensei tristemente, mas então algo falou em mim, como o som melódico suave de minha mãe em meus sonhos: você está indo pelo lado errado, esqueça seu corpo, recobre o poder sobre sua cabeça.
Controle-se, Aléssia! Ordenei a mim mesma com mais vigor que anteriormente, mas totalmente sem resultado. Próxima do desespero, lembrei de uma de minhas primeiras lições com Chad, ainda empunhando minha pequena espada de madeira: quando não há o que fazer, não faça nada. A imobilidade, Aléssia, muitas vezes é um trunfo.
Respirei fundo, fechei os olhos, observei. Meu corpo se debatia de forma quase ritmada, a bocarra aberta não parecia minha. A voz aguda que ria sem pudor, passava por minhas cordas vocais, mas era antiga em muitas eras.
Quem é essa que está em mim, pensei calmamente, mas não como um pensamento de fato e sim como uma pergunta endereçada a algum lugar dentro de mim. Em calma e silêncio aguardei a resposta. A mulher que habita em ti, respondeu uma voz das profundezas. O riso se calou. Extenuado, meu corpo parou.
— Ouça-me ao menos uma vez. Deixe-me Ser. Eu sou você, não sou outra. Não lute contra. Nunca mais me maltrate. Respire-me vez por outra. Abra-me frestas, para que eu veja a luz do dia. Liberte-me. Do que tem medo? Sou sua maior força. Sua maior aliada serei, se me der oportunidade. Não mais me esconda. Não mais me prenda nesses porões, que guarda em si. Não lute contra. Deixe-me Ser. Não tenha medo. Liberte-me!
— Eu te liberto, alma minha, se puder encontrar os caminhos que me levam para fora. Não sei qual é essa trilha, perdida em mim também estou, igual a você.
— Busque-me em tudo o que você não sabe ser. Dissolva-se. É lá que estarei.
— Como posso ser o que não sou? Como posso dissolver-me?
— Como todos se dissolvem: através do amor. Ame-me, Aléssia, com a mesma perdição com que ama as mulheres de fora.
Uma acha incandescente explodiu próxima e me queimou. Alguém gritou meu nome ao longe, e um abraço amparou-me. Encontrei-me ajoelhada no terreiro da Casa das Almas, o corpo curvado até que meus cabelos lisos tocassem o chão, minhas mãos agarradas à outra, do braço que me sustentavae protegia. A visão turva aos poucos foi passando e vi as senhoras que cantavam e batiam palmas, olhando-me. Corri meus olhos por elas e apenas Alexandra não podia ser vista, pois que era seu abraço o que me segurava. Apertei seus dedos em minhas mãos e os trouxe a meus lábios. Havia naquele beijo ternura e gratidão por um novo mundo descoberto. Amparada pela inimiga de meu pai me reergui no terreiro, sob aplausos das mais velhas mulheres de Líath, e com elas dancei em volta do fogo, até que o primeiro brilho de sol surgisse.
Devolvida a meu quarto pela anciã que me trouxera ao terreiro, novamente banhada, em minha túnica diária vestida. Depois me trouxeram frutas, torradas e um chá de melissa. Disseram-me que se tivesse sonhos seria normal e que deveria contá-los, mas não os tive. Acordei no meio da tarde sentindo-me em casa, espreguicei os músculos cansados e depois brinquei com as formas que a luz, entrando pelo cortinado da janela, formava no teto. Talvez se sentissem assim as moças que sonham com o príncipe encantado. Por um instante degustei a sensação de espera sonhadora, como se o futuro nos chegasse de repente, como se não tivéssemos poder de criar por nós a vida que queremos. Então abri um largo sorriso pra ninguém, uma alegria estampada no rosto e que era só minha.
A felicidade de ser o príncipe, e não quem espera por ele.
As vinte e nove noites seguintes foram como as primeiras, em torno do caldeirão da cozinha, lavando e picando legumes, conversando, falando coisas que apenas mulheres entre mulheres dizem. Era assim, entre uma xícara de chá ou outra, entre piadas e gracejos, na lida diária da cozinha, que ensinamentos para toda a vida me eram transmitidos. Incidentalmente, quase como se não se quisessem ensinar nada. Como se não estivéssemos ali exatamente para essa troca de lições femininas. E se nos primeiros dias aborreceu-me ter de lidar com facas, legumes e lixo, a monótona tarefa das criadas da cozinha do castelo, hoje me encantava e divertia. Picava legumes como se fosse uma brincadeira de criança, a cada rodada esforçando-me para mantê-los em cubos idênticos (por que é tão difícil? por que elas conseguem como se fosse mágica e eu não?). E alegrava-me em provar o caldo da sopa que preparávamos. Dava palpite nos temperos que faltavam, escolhia ervas para preparar chás que nos causassem efeitos engraçados, como falar coisas sem pensar ou fazer uma velha senhora pensar que tinha quinze anos.
E foi assim, brincando com ervas e comidas, mexendo devagar o enorme caldeirão da Casa das Almas, que descobri um pouco mais de minha própria vida. Um detalhe que me escapara na infância. A verdade terrível que Mestre Renan citou e que a vida se encarregou de me contar.
— Vamos lá, Alexandra, sua vez de falar. Conte-nos um pouco sobre o falecido — a velha falou isso sem desviar os olhos das batatas que descascava. Disse tudo com naturalidade, apenas porque as mulheres falavam de seus homens, como normalmente fazem as mulheres envolta do fogo.
— Falecido? — falei num impulso. Nunca me ocorrera que Alexandra tivesse alguém. Disse aquilo com indisfarçável eto, parando de picar as ervas, que serviriam de tempero para o caldo que cozinhávamos.
Alex se mexeu desconfortável em sua cadeira e desviou os olhos dos meus, mirando algo longe pela janela da cozinha.
— A data está se aproximando, a época em que sua ferida reabre. Então devemos falar, acolher nossos fantasmas. Vamos, querida, conte-nos de novo como era lindo aquele Lorna. Ah, as moças o adoravam! Mas ele só tinha olhos pra você, a mais linda de todas.
A velha puxou um mar de lembranças, as mulheres na cozinha tagarelando felizes sobre um homem em quem eu nunca tinha ouvido falar. Alheia a tudo Alex olhava a janela, expressão triste, corpo tenso. Eu não podia ver, mas sabia perfeitamente que ela chorava.
— Ela está sofrendo. Parem com isso, por favor. — Meu desejo era sincero, queria que parassem. Não queria mais ter que ouvir nada sobre aquele homem tão lindo e tão heroico por quem Alexandra seria capaz de dar a vida, pelo que diziam. Além disso, doía-me ver aquela mulher severa, forte, ali acuada, cabisbaixa, sofrendo em silêncio, incapaz de se defender.
— Não podemos parar, criança. É preciso tirar o pus assim que a ferida abre. Alex sabe disso, não sabe, Alex.
— Sim, eu sei — a voz veio gutural, pesada. Quis me intrometer novamente, me impor, livrar Alexandra de alguma maneira. Mas ao invés disso abaixei a cabeça, recomecei a picar as ervas.
— Mas não acho que essa seja a hora, nem o lugar para começarmos. A dor pode esperar mais um pouco. — Alex completou seu pensamento já com uma entonação de voz mais controlada, mais senhora de si.
— É por causa da jovem que ela não quer falar — disse outra senhora no lado oposto da cozinha, picando cebolas e preparando o tempero. — Mas também isso deve ser lavado aqui. A cozinha é para purificar, cozinhar, desmanchar, refogar, transformar. É a hora e o momento, Alex, pois a Princesa jamais será capaz de se decidir se não souber a verdade.
— Verdade? — A conversa agora me dizia respeito, natural que eu assumisse meu posto no diálogo. Alexandra se virou devagar, a expressão mais tensa do que triste. Segura, olhou-me diretamente, sem subterfúgios.
— Lorna, meu marido, era o chefe da guarda pessoal de Maura, Rainha de Âmina.
Nem seria preciso aquele tom solene, para que eu percebesse que alguma coisa grave estava para acontecer. Deixei de lado a pequena faca de cozinha e me aproximei de Alex. Se havia algo a ser dito, que o fosse logo.
— Por que nunca me disse isso?
— Porque nunca me senti no direito de lhe dizer.
— Nunca se sentiu no direito de me dizer que é viúva do chefe da guarda de minha mãe? — Uma ideia nojenta, gosmenta, me gelou por dentro — Por que, Alexandra? O que ele pode ter feito de tão terrível?
— Nada, Aléssia. Terrível é o que foi feito aos dois. Terrível, é que isso tenha lhe sido escondido a vida toda. Terrível é a verdade que, ao que parece, finalmente virá à tona.
— Então diga. — Pela primeira vez naquele resguardo meu tom era austero e autoritário. A verdade era corpórea naquele lugar, eu quase podia tocá-la. E, sabia no fundo da alma, me arrependeria de tê-la ouvido. No entanto, não era possível chegar àquele ponto e recuar. E que melhor lugar para conhecer um segredo qualquer, por mais terrível que seja, do que uma casa de cura? O fogo aceso, as anciãs cozinhando, o ambiente feminino familiar protegiam-me. Que o mal viesse, pois não me encontraria vacilante.
— Você não se lembra, Aléssia? Você estava lá.
— Ela tinha apenas três anos, Alexandra!
— Acontecimentos terríveis não nos abandonam. Ela lembra. E será melhor trazer essa lembrança à tona do que ouvir a verdade de lábios estranhos.
— Somos a família dela…
— …que ela só conheceu agora. Em quem irá acreditar? Passou a vida acreditando nas mentiras inventadas por Aran.
— Parem com isso! Parem de falar como se eu não estivesse aqui! — Meu grito interrompeu a tréplica da senhora de xale negro com quem Alex estava discutindo. A velha, a única a usar roupas escuras e que nunca abrira a boca em nenhuma de nossas conversas, falava com Alexandra dos Olhos Cinzentos com autoridade. Mas naquele momento, ansiosa com o que aquela conversa haveria de me revelar, o detalhe do “somos a família dela” me passou batido. Meus olhos estavam fixos em Alex, era dela que eu esperava uma explicação. Era com ela que, de algum modo, eu teria um acerto de contas.
— Pense, Aléssia, o que aconteceu naquele piquenique com sua mãe? — Alexandra me encarava com veemência, veio caminhando até que seu rosto estivesse praticamente colado ao meu. Eu não sabia do que ela estava falando, mas não tive tempo para argumentar.
— Você se lembra não é? Era uma manhã tão bonita, que Maura achou que vocês podiam fazer um passeio. Foi a primeira vez que você saiu dos muros do Castelo, não se lembra de como gostou de poder olhar até bem longe sem que as pedras perturbassem sua visão? Só um soldado sobreviveu, e ele adorava me contar como você tinha ficado etada com o horizonte. Você nunca tinha visto um. Aquela menina vai crescer sem horizontes, Alex. Juan me disse isso até morrer bêbado pelas ruas de Líath. Nunca se conformou de não ter conseguido evitar a morte de Maura e de Lorna. Ele os amava tanto quanto eu.
— Morte? Morte de Maura e… Lorna? O que você está insinuando, Alex?
— Não estou insinuando, criança. Estou afirmando. Mas não preciso dizer, você sabe. Você estava lá. Você viu. Viu a forma como os soldados chegaram de emboscada. Viu o cuidado que tiveram para eliminar todos, um a um, mas sem lhe ferir. Você se lembra quando um dos homens de seu pai a pegou no colo e correu para os muros, enquanto você chorava e esticava os braços buscando sua mãe, não é? Juan se fingiu de morto, por isso sobreviveu. E nunca esqueceu dos seus gritos, seu choro. Mesmo depois de fecharem os portões ele continuou te ouvindo, até que finalmente você estivesse tão longe que nenhum som pudesse saltar as muralhas em busca de liberdade. Você se lembra, eu sei que sim. Eu sei que em algum lugar dentro de você mora um medo de se aventurar fora dos muros do Castelo de Três Círculos. Sei que suas noites ainda hoje são assombradas com o sangue que jorrou naquele dia. Sei que hoje, quando empunha uma espada, algo em você ainda se culpa por não ter podido defender sua mãe naquela manhã. Mas você não podia, você era muito pequena. E mesmo os experientes soldados que as vigiavam durante o passeio, mesmo esses nada puderam fazer além de morrer na tentativa de salvar a vida da Rainha. Salvar a vida de Maura, friamente assassinada a mando do próprio marido…
— Nããão!!!
Meus punhos cerrados voaram na direção do rosto de Alex, mas seus braços ágeis seguraram meus golpes no ar. Sem desviar os olhos dos meus, a líder do clã O’Líath continha minha fúria enquanto eu lutava para me livrar, vociferando-lhe toda sorte de ofensas. Nada daquilo era verdade. Nenhuma só palavra do que ela dissera podia ser verdade. Eu sabia que não. Eu não devia jamais ter saído do castelo. Queriam me jogar contra meu pai.
— Minha mãe morreu de peste negra!
— É mesmo? E quem mais morreu de peste no Castelo, Aléssia? Me diga, estou louca pra saber — O tom de escárnio de Alex só aumentava minha raiva. Eu me debati com mais força enquanto ela continuou falando — Como pode sua mãe ter morrido se não houve nenhum surto? Ou… Ah, já sei, foi um surto localizado. Naquela linda manhã de primavera sua mãe, Lorna, e todos os soldados da guarda da Rainha caíram mortos nas cercanias do Castelo dos Três Círculos, vitimados por um surto galopante de peste negra que chegou até ali, os limites da muralha, mas não cruzou as pedras, não atingiu mais nenhum morador da região. Oh, que pena! Que azar teve nossa querida Maura O’Líath, não é mesmo?
— Pare com isso, sua vadia! O que você quer é me jogar contra meu pai. Você quer que eu o odeie, pois só assim pode conseguir seus objetivos. Você não é capaz de vencer o Rei Aran na espada, então vai vencê-lo de emboscada! Sua vadia! Eu não vou permitir!
— Eu vou destruir seu pai sim! Vou destruí-lo porque ele me tirou Lorna e Maura. Vou destruí-lo porque alguém precisa vingar essas mortes. Vou destruí-lo porque seu pai se aproximou de minha família apenas para nos destruir, mas daqui não passará. O mal que ele nos fez voltará a ele, voltará triplicado, eu amaldiçoo Rei Aran! Eu o amaldiçoo e toda sua descend…
— Pare Alexandra! Aléssia não tem culpa do que você sente por ela! Pare de machucá-la, pare de agredi-la! Se não é capaz de lidar com seus próprios sentimentos o problema é apenas seu! Você não pode amaldiçoá-la! Ela é sangue do seu sangue também!
A velha de manto negro gritou em um tom que eu nunca suspeitaria que sua voz seria capaz de alcançar. Magra, pequenina, a velha se levantou com tal firmeza que Alex recuou alguns passos ao vê-la. Eu continuava a berrar, descontrolada, e por pouco não acertei um soco em Alexandra, seus braços perdendo a tensão ao ver a velha se aproximar, a boca desdentada aberta, proferindo ordens para as outras senhoras do local. Um grupo delas me segurou com firmeza e, contra minha vontade, me levaram de volta ao quarto. Obrigaram-me a tomar uma beberagem muito amarga, colocaram-me na cama e permaneceram do meu lado até que eu adormecesse. Uma delas, sentada à minha cabeceira, dizia-me palavras de carinho e acariciava meus cabelos. A raiva foi me encaminhando para um terreno sombrio, um lugar escuro, frio e silencioso. Em poucos minutos eu já nem me lembrava da Casa das Almas, das velhas ou dos insultos de Alexandra.



Notas:



O que achou deste história?

6 Respostas para Capítulo XXXIV

  1. Diana, tô aqui pra registrar meu voto, sou team Alex, hahahahahaha…confesso que no começo eu achava que ia rolar algo com a Amarilis, por ter sido o primeiro amor da Aléssia, mas já estamos nessa altura da história, e a guria mal aparece…sem contar que é hétero…e o harém da nossa princesa predileta hein ? Danada….torcendo por Aléssia e Alex, apesar de tudo que envolve as duas….ah, uma dúvida…pelo jeito a Alex é bem mais velha que a Aléssia, né ? O marido morreu com a mãe da Aléssia quando esta ainda era criança….

    • Angel!!! ???
      Que bom te ver aqui de novo.
      Então você também sucumbiu ao charme de Alex, hein? ? hummmm voto registrado. Você tem razão, há um monte de coisas que atrapalham o caminho dessas duas. Mas você sabe que o coração, além de músculo involuntário, é teimoso e caprichoso, né? Às vezes só porque tá muito difícil, o danado cisma que quer. Vamos ver o que fará o coraçãozinho volúvel e indeciso de nossa amadíssima princesa.
      Um beijo grande, querida, gratidão pelo comentário :*

  2. Oi Diana

    Momento tenso entre a princesa e a prima. O rei mandou matar a própria esposa caraca!!!?? Quero que chegue quarta-feira logo!!! ? Rsrsr

    Abrs ?

    • Oi Lins querida,
      já é quarta!? rssss
      Rei Aran não tem muito escrúpulo pra eliminar as pessoas que ficam no caminho dele. A única coisa que interessa é o poder e, de mais a mais, casou-se com Maura apenas para conquistar Líath, mas o tiro saiu pela culatra. E ele eliminou a esposa rapidinho, antes que ela pudesse ameaçar sua soberania. Enfim, um rei como outro qualquer ??? Mas pensa no que é você descobrir que seu pai matou sua mãe e inventou pra você que ela morreu de uma doença ?
      Obrigada por me acompanhar nessa aventura. Um beijo enorme de agradecimento por seus comentários :*

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