Aléssia

Capítulo XXXIX

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXIX <<<

— Você ouviu nossa conversa?
— Não era para ouvir? Ah, desculpe pela indiscrição…
— Não tenho mais segredos para você, Alê. Embora quisesse lhe preservar. Mas as coisas estão se precipitando. Tanto os acontecimentos no reino quanto os que ocorrem aqui nessa casa. Não sei há quanto tempo você está aí, mas se tiver ouvido a conversa vai me poupar longas explicações…
— Acho, então, que não ouvi o suficiente. Estou querendo longas explicações, Alexandra dos Olhos Cinzentos.
Ela suspirou fundo, olhando-me com preocupação.
— Chegamos, finalmente, a um ponto de equilíbrio e confiança, Aléssia. E não quero perder isso por nada desse mundo. Pergunte o que quiser, vou lhe responder. Ainda que saiba que a conversa será longa e exaustiva para nós duas, mas se as coisas chegaram a esse ponto é porque está na hora de esclarecermos todas as dúvidas.
Eu também acreditava que havíamos chegado a um ponto de equilíbrio e confiança, e doía pensar que talvez isso tivesse sido um engano. Optei por dar à Alexandra um voto de confiança e falei abertamente o que estava se passando em minha cabeça.
— Quando cheguei aqui Breno estava lhe pressionando a retomar suas atividades administrativas. Creio que isso seja normal e justo. Por mais que nossos últimos dias tenham sido agradáveis, sabíamos que o momento de voltar à realidade chegaria. Mas, logo em seguida, vocês começaram a falar de mim e, infelizmente, a sensação que tive é que vocês se esforçaram muito para conquistar minha confiança, ganhar meu apoio. Como se eu fosse um trunfo valioso nessa guerra. Apenas um trunfo valioso nessa guerra! Eu me senti usada, manipulada, Alexandra! Mais do que isso, me senti humilhada. Explorada da forma mais vil, através de juras de amor!
— Não, minha querida! Pelos Deuses! O que sinto por você é absolutamente verdadeiro!
— Foi o que ouvi em seguida, Alexandra. E só por isso estou lhe dando um voto de confiança e abrindo meu coração. Você declarou a Breno seu amor por mim. E quero crer que você não havia me visto e, portanto, não havia motivo algum pra mentir. Considero, então, que você me ama de fato e que se sente perdida entre um dilema: ser fiel a mim ou ser fiel à sua causa.
— Sou fiel a você e à causa. Não há divergência entre uma coisa e outra, Alê.
— Mas não nega que eu sou uma peça-chave nesse tabuleiro, não é? Breno deixou isso bem claro.
— Você é uma aliada importante, não resta dúvida. Afinal, é a Princesa de Âmina. E… filha de Aran. Possui informações privilegiadas que facilitariam nossa luta. Mas isso não significa que não sejamos capazes de vencer seu pai mesmo sem sua ajuda.
— Então por que tive a impressão de que havia mais do que isso? E por que Breno disse que não podem me dizer toda a verdade? De que sina vocês falavam?
Alexandra mordeu o canto de seus lábios numa atitude que, nela, significava preocupação. Era uma forma de autocontrole, uma maneira de ganhar tempo antes de dizer alguma coisa.
— Ao se casar com minha tia Maura, seu pai, sem querer, preparou seu próprio cadafalso.
— Como assim? Que cadafalso?
— Nós, os O’Líath, temos o sangue da Floresta Escura, Alê. Somos descendentes diretos dos seres sutis que viviam nas árvores da floresta, no primórdio dos tempos. Esses seres foram embora há milênios e nossos antepassados chamaram para si a responsabilidade de cuidar da floresta. Fomos muito bem sucedidos por muito tempo. Mas falhamos em algum ponto e permitimos que algo como a Pedra crescesse dentro da Floresta Escura. Uma consciência maligna que ninguém sabe ao certo de onde veio. Mas ela estava circunscrita a uma pequena área e foi possível isolá-la. Até que chegassem por aqui os primeiros Amarantos. A combinação de uma raça gananciosa com uma consciência ávida por poder foi explosiva. Em pouco tempo a Floresta diminuiu a menos de um terço do que foi outrora. E ninguém nunca foi capaz de pará-los. É mesmo provável que o clã de seu pai tenha se tornado invencível ao firmar o pacto com a Pedra. Mas, sem querer, seu pai criou uma vulnerabilidade.
Minhas pernas tremiam quando perguntei qual vulnerabilidade. No íntimo eu já sabia a resposta.
— Você.
Não consegui dizer nenhuma palavra. Sentei abismada na poltrona que Breno ocupara há pouco.
— É simples, Aléssia. Para que o pacto da Pedra se mantenha, e para que ambos os lados possam prosperar, tanto a Pedra quanto o clã de seu pai, é necessário que o líder do clã compartilhe sua consciência com a Pedra. Creio que a própria ganância, componente do sangue da raça de seu pai, faz com que nenhum deles tenha se quer tentado resistir a essa necessidade. Mas, ainda que algum Amaranto quisesse fugir, não conseguiria. Com o passar do tempo o clã começou a nascer comprometido, já intoxicado com o veneno da Pedra. Nenhum Amaranto pode resistir ao controle da Pedra sobre sua mente. Ou quase nenhum.
— Onde você quer chegar?
— Exatamente no ponto que você está pensando, Aléssia. Você nasceu da união do clã ligado à Pedra com o clã de defensores da Floresta. Pedra e Floresta estão intrinsecamente ligadas. E profundamente separadas. Exatamente como os dois lados de uma moeda. Você criou um fluxo de comunicação entre essas duas energias antagônicas. Há em você os mecanismos pelos quais a Pedra pode lhe controlar. Mas também há a herança O’Líath que liga você à Floresta. É por isso que, mesmo quando a Pedra chega perto de obter controle total sobre você, sua mente resiste e se liberta. Você, Aléssia, é o Amaranto que a Pedra não pode controlar. Você é o elo fraco, a quebra da corrente. O fim do pacto.
— Então… basta que eu não me deixe controlar pela Pedra para que o pacto seja extinto.
— Não exatamente. Nenhum de nós pode prever o futuro. A Pedra poderia, por exemplo, fazer o mesmo pacto com outro humano e, com seu poder, torná-lo o novo Rei de Âmina, tirando você ou um de seus descendentes do trono. Para que o reino esteja totalmente livre dessa maldição é preciso eliminar a Pedra.
— Ora, é simples assim?
— Simples? Não está se dando conta da dificuldade, não é. A Pedra não é, simplesmente, uma pedra… ela é mais do que isso. Ela é…
—… a consciência que compartilha com meu pai…
Entendi, finalmente, onde Alex queria chegar desde o começo. E fui além, pois frases como “o destino cruel que a espera” me deram a intuição do que, exatamente, poderia significar “destruir a Pedra”. Se fosse o que eu pensava, o meu seria o mais famigerado de todos os destinos humanos.
— Você entendeu.
— Estou com medo de estar entendendo até demais. Você falou a Breno algo sobre querer me livrar de meu destino cruel.
Alexandra abaixou os olhos enquanto mordia levemente seu lábio inferior. Depois me encarou por alguns instantes antes de se sentar, visivelmente cansada. Aquela era uma conversa potencialmente dolorosa.
— Tenho até medo de dizer o que estou pensando, Alex… mas… ajude-me a pensar: se é preciso eliminar meu pai e a Pedra, qual a importância de existir um elo fraco? Bastaria que vocês tivessem eliminado os dois há tempos e…
— … antes de mais nada, não se esqueça que só descobrimos o Pacto recentemente. E, além disso, não subestime o poder da Pedra. Ela representa uma força natural muito antiga e potente. A grande questão é o que aconteceu para que essa energia ganhasse essa vertente maléfica. Isso, provavelmente, jamais saberemos. Mas uma vez que o mal tenha emergido, é preciso eliminá-lo por completo. Não basta exterminar a pedra, a consciência e o hospedeiro da consciência. É preciso que o pacto seja quebrado e que não haja nenhuma fresta por onde a consciência da Pedra — ou parte dela — possa se esgueirar e encontrar sobrevida. Enfim, são muitas questões e todo cuidado é pouco. Mas há um complicador maior aqui: o Poder da Pedra. Você o conhece bem, Aléssia, sente na própria carne a força que ela tem. E não sei se você sabe, mas você é o primeiro ser humano capaz de resistir a esse poder.
— O primeiro ser humano? Como assim? O que está dizendo?
— O que estou dizendo é que outra pessoa em seu lugar já teria tocado a Pedra e formalizado o pacto como ela quer. Você se recusou a fazer isso em pelo menos três ocasiões. Outra pessoa não conseguiria dizer nem sequer o primeiro “não”. Você consegue se impor, ainda que a grande custo. Como eu disse, você é o elo fraco. Além do poder da Pedra, seu sangue possui o poder da floresta. Isso lhe coloca em uma posição privilegiada. Não encontro outra explicação para você conseguir resistir à Pedra.
Alex parou o que estava dizendo e reclamou da garganta seca. Fomos para a cozinha, onde Mirea havia preparado nosso desjejum. Alexandra se serviu de uma xícara de chá, mas eu estava nervosa demais para colocar algo na boca, ainda que o estômago doesse.
— Diga logo o que está tentando esconder, Alex. Por mais difícil que seja. Está na hora de eu enfrentar a realidade, não é?
— Sim, você está certa. Está na hora. Ainda que seja a mais cruel das realidades.
Alex me olhou, visivelmente emocionada. Segurou forte minha mão como se quisesse sentir por mim a dor que estava prestes a me causar.
— Adoraria protegê-la, Alê. Daria qualquer coisa para trocar de lugar com você e assumir como meu o seu tormento. Mas isso é impossível. Tudo o que posso fazer é rezar, é lhe dar forças de todas as formas que estejam ao meu alcance.
— Fale logo, Alex, por favor.
— Você, com certeza, já sabe o que vou dizer, embora, muito provavelmente, esteja evitando pensar nisso. Mas o fato é que você é a única que pode destruir a Pedra… e o hospedeiro.
As palavras de Alexandra deram vida ao cenário que eu tanto temia.
— Você está me dizendo que… eu tenho que matar meu pai?
Nunca o silêncio havia sido uma resposta tão eloquente. Alex abaixou os olhos enquanto apertava suas mãos nas minhas. Mesmo Mirea, normalmente tão reservada, parou o que estava fazendo e ficou me olhando, etada.
Não podia ser. Aquilo era uma piada. E de péssimo gosto. Eu conseguia até mesmo aceitar que meu pai fosse um tirano cruel, escravizando seu povo. Aceitava que era preciso pará-lo, alterar o curso da história. Mas daí a matá-lo com minhas próprias mãos… era realmente impossível para mim.
— Alex, o que você está me pedindo é impossível! Eu não consigo sequer pensar na ideia de lutar contra meu pai, e você me sugere que eu devo matá-lo!
— Eu sei o que você está sentindo, querida. E, acredite, se estivesse a meu alcance, eu lhe pouparia de tamanho sofrimento. Mas…
Meu coração já havia ouvido o suficiente. Tranquei-me no quarto sem saber como agir, lutando para me manter racional e não permitir que o desespero me derrubasse por completo. Mas não encontrava outra solução a não ser o abandono total, deixar definitivamente de ser quem eu era, entregar meu fardo a outro que fosse capaz de suportá-lo.
O trinco da porta se moveu levemente e depois duas pancadas secas, suaves, se fizeram ouvir. Em seguida a voz de Alex chamava meu nome com suavidade e carinho. Eu podia perceber sua aflição, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Não queria vê-la, não queria abrir nenhuma possibilidade para que ela me convencesse de cometer aquela loucura. Matar meu próprio pai. Jamais!
Eu só conseguia pensar em partir. Fugir para o local mais remoto possível e jamais retornar à Âmina ou Líath. Despir minha pele e identidade,
Felizmente Alexandra pareceu compreender meu estado de ânimo e não insistiu em me ver. Permaneci no quarto, em silêncio, pensando maniacamente em busca de uma solução. Nesse processo acabei pegando no sono e tive um sonho muito estranho. Eu era um lobo que corria pela Floresta Escura nas proximidades do Lago Espelhado, mas logo me afastando dali e entrando em uma região negra como a noite e que eu não reconhecia. A certa altura o lobo farejava um buraco no chão e, após passar pelo que me pareceu uma passagem subterrânea, saía nas proximidades da Pedra, no bosque do Castelo. Ali, espreitando entre as árvores, o lobo assistia a um pequeno ritual, meu pai derramando sangue na Pedra, o sangue que escorria de um corpo que eu não conseguia identificar. Era uma mulher bonita, jovem e nua. Fiquei imaginando quem poderia ser. O sangue pingava do pescoço da jovem e, depois de alguns minutos, meu pai sacou seu cutelo e fez outro corte no pescoço e o sangue começou a jorrar com mais força. Ao mesmo tempo, eu sentia em meu braço uma pulsação forte bem no local da Pedra e a “ouvia” dizer, em minha cabeça, “sim, sim, sinto-me mais forte, continue, Aran”.
O mais estranho é que eu era o lobo, mas também era alguém que observava o lobo. E foi nessa condição de observador que percebi a pulsação na Marca da Pedra.
Quando parecia não haver mais sangue para escorrer, meu pai largou o corpo em um buraco. Haviam muitos outros corpos ali, todos aparentemente de mulheres jovens. E todos os corpos nus, alguns já em estado de putrefação (eu enxergava isso em detalhes embora estivesse bem distante). O meu lado observador sentiu asco, náuseas e medo petrificante. Queria correr, mas não conseguia mover um único músculo, sentia como se estivesse amarrada por alguma fibra invisível.
Meu lado lobo sentiu ódio, vontade de atacar, morder. Mas algum tipo de estranha prudência o fez permanecer onde estava, os dentes à mostra como fera pronta a atacar.
A cena macabra, no entanto, não havia terminado. Agora meu pai esfregava o sangue na Pedra e esse sumia gradativamente, como se a Pedra o absorvesse. Parecia haver prazer naquele gesto tanto em meu pai quanto na Pedra. E eu sentia isso na marca em meu braço. Com sua voz rochosa, a Pedra falou, e os dois travaram o seguinte diálogo:
— Aléssia está aqui, mas não consigo alcança-la. Sinto-a, mas está fora de minha esfera de alcance.
— Então ela fez sua escolha.
— Você a perdeu, seu estúpido! Como não é capaz de controlar sua própria filha?
— É esse maldito sangue O’Liath! Mas eu vou resgatá-la! É minha filha. Estará do meu lado, tenho certeza disso.
— Nos livramos da mãe para que não pudesse influenciar a menina. Você não tem desculpas, Aran. Traga-a de volta imediatamente ou sentirá na pele a minha ira!
Foi só então que o lobo uivou, um som doloroso como um lamento, um choro que escorria da alma. E num pulo raivoso atirou-se contra meu pai, totalmente pego de surpresa e sem tempo de armar-se com o cutelo que havia acabado de embainhar no cinto. Um som agudo e doloroso desnorteou o animal que correu pelo campo, para longe, antes que ficasse atordoado a ponto de ser morto por meu pai.
Havia gosto de sangue em minha boca quando abri os olhos em meu quarto. Alexandra esmurrava a porta com fúria gritando por meu nome, mas o cheiro de putrefação me mantinha imóvel na cama. Queria deixar de ver aqueles corpos na vala, mas não conseguia. Só quando a Marca queimou com intensidade renovada percebi que a Pedra havia, enfim, me localizado e tentava arrastar minha consciência de volta ao bosque. Os gritos desesperados de Alex eram o único fio de realidade ao qual eu podia me prender, e os usei como alavanca para me arrastar pelo quarto e destrancar a porta, caindo ao lado da mesma logo em seguida, o corpo todo ardendo como se minha carne estivesse em chamas. Mas apesar da dor não tinha forças sequer para gemer, quiçá para gritar, deixando o corpo abandonado para morrer lentamente, se fosse esse o caso.
A morte, aliás, me serviria como presente naquele instante. Nada me doía mais do que minha vida e eu daria mesmo qualquer coisa para me livrar dela.
Alexandra, infelizmente, não compartilhava de minha opinião. Seus braços me levaram para a cama enquanto orientava Mirea no preparo de poções e emplastros. As horas seguintes de Alex foram dedicadas exclusivamente a meu cuidado, e no entardecer daquele dia eu já me sentia forte o bastante para evitar a presença da Pedra em minha mente. E para aceitar a dor infinita de meu destino.



Notas:



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5 Respostas para Capítulo XXXIX

  1. Oi Diana,

    Que tenso esse capítulo! Alê descobrindo mais coisas sobre o pai. E a bicha é forte mesmo hein?! Pra aguentar e resistir a influência da pedra.

    Obs.: A Bibiana tá certinha! rsrsrs ;P Capítulo extra!!!

    Abrs o/

  2. Vixi, perdi o retorno do Lesword, mas agora já coloquei a leitura em dia!
    Caraca, que sina dessa moça, gente!
    Adorando o retorno do site e ainda mais da nossa princesa amada Aléssia!
    Parabéns pelo trabalho, Diana Rocco! E obrigada por nos brindar com ele!

  3. Capítulo forte, intenso… angustiante. Já disse que amo a Alex? Amo! Ela é foda! E o amadurecimento da Alessia, continua sendo lindo de se ver! rsrs
    Acho, só acho, que poderia rolar um capitulo bônus… tipo hoje! hahahaha 😉

    Beijos

    • HOJE? ?
      Meu coração dói de ter que lhe negar algo, Bibiana 🙁 mas hoje não será possível. Entretanto, estou em dívida com vocês (çasscritôra que perde dia da semana, tsc tsc tsc…) posso tentar me redimir* amanhã 😉

      De agora em diante acho que não terá mais refresco nessa história, viu? Prepare coração e ansiedade: emoções fortes a caminho!

      * essa palavrinha parece que saltou direto de Wird pra cá, não é? Espero que não tenha lhe dado arrepios :/ rssss

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