Aléssia

Capítulo XXXVII

POR ÐIANA ŘOCCO

Revisão: Carolina Bivard, Isie Lobo
Cartografia: N. Lobo
Mapa de Âmina

>>> XXXVII <<<

Não esperava aquele tipo de confissão. E a lembrança de que Alexandra já havia sido casada me perturbou. Imaginei-a sozinha, curvada sobre uma urna depositada em um túmulo cavado com as próprias mãos, a cabeça nua, as lágrimas regando a terra rasgada para a sepultura.
— Acho que entendo o que você quis dizer, quando falou em simbolismo de entrega…
A vela, já bem diminuta, tremeu sua chama como que querendo chamar nossa atenção. O burburinho de vozes das outras mulheres se tornou mais nítido com o nosso silêncio. Havia mergulhado tão intimamente na conversa com Alex, que tinha esquecido nossas companheiras de círculo. Sem que tivesse qualquer relação com isso tudo isso, olhei para minhas mãos e tive a angustiante sensação de que eram maiores do que na realidade são. Aproximando os olhos tive mesmo a sensação de ver pelos em meus dedos.
É a última lembrança mais ou menos realista que guardo, pois depois disso não vi mais vela, nem círculo nem as mulheres que me acompanhavam. Eu estava sentada sozinha no topo de um pequeno monte e observava o céu estrelado. Ventava muito. Esfreguei com força meus braços tentando aquecer a pele arrepiada. Abaixo havia um vale, que se fazia perceber apenas pelo modo como o céu refletia seu cenário nas águas de um rio. Um uivo vindo lá de baixo parecia me chamar. A sensação de frio desapareceu para, em seguida, eu perceber meu corpo de forma completamente estranha, como se fosse muito maior, como se não fosse humano. De quatro eu observava o vale abaixo e enxerguei a alcateia que me chamava. Minha garganta soltou um uivo gutural como resposta, e a meu chamado a lua nasceu, cheia, iluminando a centena de lobos que, lá embaixo, me observava.
Um segundo uivo e outro lobo, meu velho conhecido, surgiu a meu lado. O cenário mudou, talvez fosse a Floresta Escura. Corremos lado a lado entre árvores muito próximas umas das outras. Paramos em um lago e começamos a beber, sedentos. Os olhos cinzentos de meu companheiro pareciam sorrir enquanto me observava a seu lado.
Mas do mesmo modo que aquelas imagens surgiram, desapareceram. Encontrei-me só com Alexandra, a pequena vela praticamente apagada. As mulheres espalhadas pelo terreno, algumas andavam, outras deitadas, outras sentadas, e todas pareciam falar muito. As três jovens, que trouxeram a beberagem, andavam de um lado para outro, atendendo às mulheres que necessitassem de auxílio.
— Você voltou, então?
A pergunta de Alexandra desviou minha atenção do que acontecia pelo terreiro. Sentia-me cansada, levemente desorientada. Os olhos dela eram idênticos aos daquele lobo, o animal que me espreitou em meus dias de refúgio na Floresta Escura.
Abri a boca e quis falar, mas a garganta arranhou, ardeu, e a voz não saiu. Quando, finalmente, consegui forçar um som, esse foi gutural como o uivo de minha alucinação. Engasguei com a saliva e Alexandra se divertia com a situação.
— Machuca um pouco no início, mas depois você se acostuma com as transições. Procure não falar pelas próximas horas. Sim, eu sei, você tem um monte de perguntas. Mas para tudo há o momento certo. Acho que você já entendeu a importância da paciência.
Nem tentei responder. Talvez não compreendesse o valor da paciência, mas minhas cordas vocais sabiam exatamente o valor do silêncio. Alexandra olhava-me com carinho e um sorriso largo. Esticou um dos braços e vi, brilhando em sua mão, o velho punhal, presente de minha mãe. Meu coração saltitou, mas não esbocei reação. O valor do ritual também havia sido reforçado nesses dias de aprendizado.
— Aqui está. Não preciso explicar, você o conhece muito bem. Se as coisas tivessem seguido o curso natural, você teria recebido seus conhecimentos diretamente de sua mãe. E no momento em que ela a julgasse pronta, lhe presentearia com um punhal, símbolo de sua iniciação. Depois de tudo o que viveu aqui, tenho certeza de que agora você sabe exatamente como usá-lo.
Alex estendeu a mão esquerda, o punhal deitado no centro de sua palma. Aproximei intuitiva minha mão esquerda, a palma para baixo, e a pousei sobre o punhal. Então Alexandra pousou sua mão direita sobre a minha e disse, emocionada:
— Sinto-me profundamente honrada em lhe transmitir o punhal sagrado que um dia pertenceu à sua mãe, Aléssia. E muito feliz por poder devolvê-lo a você, depois de nossa discussão, quando você se encontrava prisioneira. Sinal claro de que as coisas evoluíram entre nós, e que o sangue de Maura está sendo honrado da maneira como nossa amada Rainha merece.
Mais uma vez minha garganta falhou. Então apertei a mão de Alex, colocando minha mão direita por cima de todas e a olhei nos olhos, não disfarçando as lágrimas que corriam. Meu sorriso era a expressão mais sincera de minha felicidade e gratidão e, tendo ela respondido com um sorriso igualmente sincero, posso dizer que me compreendeu perfeitamente.
Alexandra fez um gesto gentil de chamado e uma das moças se aproximou. Levou-me para o quarto com orientação de descansar o máximo possível.
Na manhã seguinte os sons que vinham da cozinha me despertaram. Sentei na cama, um pouco perturbada, a luz matinal vazando pela cortina, enquanto vozes baixas passavam pela porta entreaberta. Tive a estranha sensação de que algo grave poderia ter acontecido e levantei com o coração acelerado. Abri a porta com cautela para espiar as senhoras na cozinha, preparando a próxima refeição do dia. Só então lembrei que meu período de iniciação havia terminado.
— Bom dia, amada donzela!
Ri com a saudação meio descabida de Alex e respondi sorridente, pensando no que ela queria dizer com aquilo. O estômago dolorido, entretanto, é uma cura para qualquer pensamento despropositado, e me aproximei do caldeirão em busca de comida.
— Faminta não é? — disse uma senhora que cortava legumes. — Separei aqui algumas coisas para você comer, venha comigo, querida.
— Já passou o horário do café?
— Falta pouco para o almoço, minha querida!
— Dormi tanto assim? Por que não me chamaram?
— Porque você precisava descansar — respondeu Alex — A noite foi emocionante, não foi?
Sentia a cabeça pesada e um gosto de chumbo na boca, a saliva grossa, pastosa. Não lembrava de nenhum sonho.
— Não sei… foi?
Alexandra riu sem pudor algum. Parecia mais leve e feliz do que o normal.
— Quando o cansaço passar você acabará se lembrando. Alimente-se bem, depois troque sua roupa e volte para casa. Já avisei Thália de que almoçaremos lá. Enquanto eu não chego, aproveite para pensar o que pretende fazer. Se ainda quiser viajar por seu reino, eu lhe ajudarei com os preparativos.
Agradeci seu apoio. Eu não tinha mais certeza do que pretendia fazer, mas não falei nada a respeito. Talvez quisesse apenas sair de Líath sem que Alex soubesse de meu paradeiro.
Cruzar o umbral que separava a Casa das Almas das ruas de Líath me deu uma estranha sensação de liberdade e medo. Eu estava novamente entregue a mim mesma, à minha vida. Poderia seguir para qualquer lado, sem que nada me impedisse. E sem que nada me amparasse. Entendi, naqueles meus primeiros passos na rua, a segurança que a rotina da Casa das Almas me passava. Depois de menos de uma semana ali, quase não havia novidade. As coisas aconteciam da forma como se esperava que acontecessem e não ter que reagir a elas era um grande conforto.
A liberdade da rua, no entanto, era um desafio constante. A cada passo eu devia escolher o próximo. E assim sucessivamente, traçando minha própria rota.
Sacudi um pouco a cabeça e os cabelos, presos com uma pequena tira de couro, varreram minhas costas dando-me conta de minha nova vida. Poderia cortar o cabelo cem vezes ou mesmo raspá-los: a Aléssia-dos-cabelos curtos, a menina que cortava os cabelos, porque não queria se parecer com as outras meninas do castelo, essa jamais voltaria.
Não sou mais uma criança…
Olhei em volta para me certificar de que ninguém havia ouvido a angústia, que soltei sem querer. A rua estava deserta, como se fossem ainda as primeiras horas do dia.
A ala da cidade em que eu estava é que era mais vazia do que o centro. Mas custei um pouco para me lembrar disso. Ainda não tinha interiorizado a dinâmica da cidade, aquele ainda não era meu lugar. Sentia-me estrangeira como se uma barreira intransponível dificultasse o entendimento com as pessoas que ali viviam.
Mas um som cortante de metal batendo em metal interrompeu meus pensamentos. Um grito próximo, alguém clamava por socorro. Corri na direção do chamado, virei a esquina mais próxima e encontrei Breno duelando com três homens. A rua estava deserta, o irmão de Alexandra em franca desvantagem. Provavelmente tinha sido atacado por soldados irritados com seus maus tratos. A lição era merecida e eu não tinha nada com aquilo. O melhor era sair dali rápido antes que alguém me visse.
Quando girei o corpo meu olhar desviou para o chão e, acidentalmente, notei a bota que os homens usavam. Não eram homens de Líath. Eram soldados do Exército Real!
Minhas atitudes seguintes foram tão impulsivas que talvez eu não seja capaz de narrá-las adequadamente. Uma coisa é certa: só lembrei que estava sem Brenda quando minha mão tateou a cintura em vão. Mas já era tarde. Eu estava correndo aos gritos e o que me sobrou de alternativa foi me atirar sobre um dos homens que atacavam Breno, derrubando-o. Desconcertados com minha presença os outros dois se descuidaram tempo bastante para Breno nocautear um deles. O outro, no entanto, desistiu de mim e ergueu sua espada contra as costas desprotegidas do irmão de Alex.
Quando não há tempo para análise, o corpo faz o que a alma ordena. Com a agilidade de um felino atirei meu corpo entre Breno e a espada. Senti a lâmina fria passar como um vento por meu abdômen. Minha preocupação era cair em pé e defender Breno. Ainda tentei ter algum controle de meu próprio corpo, mas as pernas falharam em me dar apoio. Senti o rosto bater no chão ao mesmo tempo em que gritos e choques de espada enchiam meus ouvidos. Alguém gritou meu nome desesperadamente, mas não consegui responder, embora tentasse. Sentia apenas que precisava dormir, descansar..



Notas:



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4 Respostas para Capítulo XXXVII

  1. Inacreditável!!!!

    Essa é a palavra! Ainda estou sem acreditar que você terminou desse jeito o capítulo! Quanta maldade no seu coraçãozinho. E ainda ter que aguardar o próximo. ? Fazer o que né?! ??

    Abrs ?

    • ?
      “Quanta maldade no seu coraçãozinho. E ainda ter que aguardar o próximo.”
      Tortura psicológica. Meu passatempo predileto ?
      kkkkkkkkkk Brincadeira (mas com um fundinho de verdade hahahaha) Não me queira mal, Lins ?. O que seria da vida sem uma pitada de suspense, não é mesmo? Olha, como eu tenho dito nessas últimas horas: domingo chega rapidinho, embora sábado demore pra kct ?
      Um abraço bem apertado (pra compensar a espera, ok?) e até o próximo capítulo ?

  2. Uau!! Como vc faz isso? Como termina assim? Quer me matar do coração? hahahahahah

    A Alex se revela cada vez mais interessante. E o amadurecimento de Alessia, é lindo.
    Muito bom, mas quero o próximo! Não vou aguentar esperar, não. rsrs
    Vc é foda!

    Beijos

    • Já já é domingo, Bibiana ?

      Saudades dos seus comentários, viu? Só espero não ter que matar a Aléssia várias vezes, pra ter a honra de recebê-los 😉

      Um beijo muito grande (faz um bem enorme ao meu ego saber que você gosta do que escrevo ?)

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