ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 11. CHÁ

ERIS

— Você está fazendo isso de propósito. Qual o seu problema, porra? — ainda não consigo acreditar que ela foi capaz de se fingir de interessada na guria só para me atingir ou seja lá que merda está pensando.

— Meu problema? É assistir de camarote a pessoa mais importante da minha vida jogar as chances que ela tem de viver, no lixo — Haru me deu o maior tapa sem mão. 

— Inacreditável, Haru, inacreditável — ela me sorriu de forma cínica.

— Então, aquela conversa ontem no meu quarto…? — pergunto.

— Eu precisava ter a certeza do que eu senti na formatura da capeta leite ninho. Então… apenas joguei a isca. Vi o jeito como vocês olhavam uma para outra no Teatro Municipal, seu discurso de ontem não me convenceu em nada. Nem você se convenceu do que falou. 

Filha da puta.

— As danças ontem no Quimera…? — continuo perguntando.

— Eu precisava descobrir qual era a dela. E, não, eu não a usei se é o que está pensando. Curti mesmo passar um tempo com a Misha, nós conversamos bastante, ela é mesmo incrível e descobri muitas coisas sobre ela — Haru continua me respondendo da forma mais natural possível — inclusive que o sabor favorito de sorvete dela é café.

Ah, você jura?

— Que bom, Haru.

— Descobri também que ela está bem afim de você.

— E descobriu isso como? Com a sua bola de cristal? — estou com tanto ódio dessa gaúcha descolorida que minha vontade é mandá-la de volta para o seu emprego. Mas, agora, da forma correta.

— Ela não tirou os olhos a noite inteira de você, sua lerda. Bem como não tirou os olhos de você na formatura da Catarina, ontem na ceia e hoje aqui no churrasco. Mesmo você passando o dia ignorando a garota e se exibindo com a ruiva — Haru estala a língua.

— Você sabe muito bem que eu não estava fazendo isso — a encaro com minha fisionomia fechada — e a Bruna é nossa amiga… apenas amiga. 

— É claro que eu sei. Quem não sabe disso é a Misha. 

— Você é a pessoa mais descompensada que eu conheço, Haru.

— E você é a pessoa mais difícil que eu conheço, Eris. Precisei tomar medidas drásticas, caceta.

“Medidas drásticas” no dicionário da Haru significa: fazer merda.

Acredite, nunca sai uma coisa que preste.

— Tá me dizendo que você fez isso de propósito porque quer que eu curta a minha vida — ela afirma com a cabeça — e você chegou a conclusão que serei feliz com a garota que veio passar as férias e vai embora no final de janeiro? Para a Inglaterra.

Haru sabe muito bem o que esse inferno de lugar significa para mim.

— Não vá por esse caminho… — ela diz — vocês olham de um jeito diferente uma para a outra, a gente sente quando é algo a mais, pelo menos eu acho — ela divaga, olhando para o céu acima de nossas cabeças.

— Sabe o que eu acho? Que a sua privação de sono está afetando seu cérebro. Você conseguiu se superar dessa vez, meus parabéns.

— Larga mão de ser ranzinza, só uma vez, caralho — volta a me encarar — eu te conheço tempo o suficiente para saber que você está fugindo.

— Quer mesmo falar sobre isso? — ela continua me encarando mas, como eu já suspeitava, não me rebateu, claro que não me rebateu.

Pimenta só é bom nos olhos dos outros, não é, Haru?

— Quer tanto me ajudar? Então não se meta nos lugares que não foi chamada — solto todo o ar dos meus pulmões.

Mas ela segura meu braço e, olhando dentro dos meus olhos como se pudesse ler os meus pensamentos, cuspiu todas as palavras que eu não queria ouvir.

— Eu não vou desistir de você, Eris — diz em um tom firme — não importa se você vai ser grossa comigo, se vai ficar puta ou se refugiar dentro daquela toca que você chama de ateliê. Eu amo demais você para desistir da sua vida, aquela que você já abriu mão — aqui eu já sei que o assunto não é mais sobre a enteada da minha irmã.

E, na real, nunca nem foi. Infelizmente, eu já ofereci muita munição para que a Haru faça esse tipo de coisa. Não sou a favor dos métodos que ela usa, mas não posso dizer que eu também não faria o mesmo por ela. Definitivamente com outros métodos, óbvio.

— Você e suas péssimas decisões.

— Eu sei que hoje é um dia fodido e nada que eu fizer apagará o que aconteceu ou trará de volta tudo o que perdemos. Eu também perdi, lembra?

Como eu posso me esquecer? Há coisas na vida que não importa a quantidade de tempo que passe, nunca serão esquecidas.

Mas essa discussão não nos vai levar a canto algum.

— Por que fez esse circo todo? — finalmente pergunto para encerrarmos esse assunto.

— Porque eu sabia que se você curtisse ficar com a Misha, acabaria abrindo mão dela…  assim como fez com todo mundo que tentou entrar na sua bolha — disse, em um tom cansado.

Ela está errada?

Ela não está errada.

— Ela vai embora, Haru — falo, finalmente, me dando por vencida.

— Então eu estou certa… curtiu mesmo ficar com ela — Haru constatou de forma tão animada que mais pareceu um bonequinho desses de desenho animado quando tem suas baterias recarregadas.

É claro que eu curti, porra. Alguém em sã consciência não teria curtido?

— E o que isso importa? — pergunto, mesmo sabendo que não importa porra nenhuma.

— Importa que ela ainda não foi embora — ela gira o corpo nos calcanhares ficando de frente para mim — ainda é natal — coloca uma mão em cada um dos meus ombros — e a magia do natal ainda está acontecendo — me pressiona contra a parede.

— Que droga você usou, Haru? — ela está falando igual a Catarina e isso me assusta.

— Ainda não usei nenhuma, tô de sobreaviso nessa merda — eu não tinha falado no tom literal — nem beber, eu bebi. Enfim… você confia em mim?

Eu nunca gosto do que vem depois de um “confia em mim?” da Haru.

Mas eu tenho outra escolha? Eu já me fodi mesmo.

*

MISHA

Idiota, você é uma idiota, Misha.

O que você pensou? Ela é areia demais para a sua Saveiro, iludida. 

Eris passou o dia inteiro com as amigas na piscina de papo com a Dani e a tal ruiva que nem se quer me olhou; depois deixou as coisas com a ruiva, jogou bola e posso jurar que estava dormindo com ela na rede.

Mas tratei de me ocupar o suficiente jogando baralho com Catarina e algumas outras amigas delas. Até que foi bem divertido e a minha ressaca agradeceu.

E o Oscar do ano que vem vai para quem? Exatamente, para mim, por ter feito um belíssimo papel de trouxa. Achei mesmo que depois da nossa conversa de ontem, tudo estaria menos… eu desisto.

Pelo menos matei um pouquinho a minha saudade de sambar, que saudade eu estava de uma roda de samba, um pezinho no chão… Ah, meu Rio de Janeiro.

*

Saio do banho enrolada na toalha que é o dobro do meu tamanho e caminho direto para o meu quarto. Minha pretensão é sair daqui apenas quando meu pai e Nara chegarem. Falando neles, será que estão bem?

Ligo a luz, fecho a porta e dou de cara com

— Puta merda — solto sem pensar — você me assustou — levo uma de minhas mãos a boca. 

Uma Eris está sentada na minha cama e… muito bem vestida? Cabelos molhados e levemente arrepiados, o caos que é só dela, seu perfume, a correntinha que salta sutilmente da gola da camisa e seus característicos anéis de prata. Ela está usando uma camisa de algodão branca, não mais uma camisa social de botão, uma calça jeans larga no mesmo corte da noite anterior e tênis All Star de cano alto, não mais os de grife de ontem. 

Ela digita freneticamente algo no celular. O que ela pensa que está fazendo?

— O que você pensa que está fazendo? — resolvo perguntar.

— Estava esperando você sair do seu banho.

— Isso eu estou vendo, Eris. Por quê? — arqueio uma sobrancelha.

— Porque eu gostaria de te perguntar se posso te levar a um lugar — ela solta de uma vez enquanto leva uma das mãos a nuca e me solta um sorriso pela metade.

E o que te faz pensar que eu vou aceitar, Eris? 

É o que eu penso, mas é o que eu respondo?

Não, não é o que eu respondo. 

— Está me chamando para sair, Eris De Mori? — é difícil até formular a pergunta, esse plot twist aqui eu não estava esperando.

— Você pode olhar por essa ótica se quiser — e soltou outro sorriso, mas dessa vez foi um largo. Rapidamente lembrei de quando ela me disse isso, no dia que nos conhecemos.

Não tenho nada a perder se eu aceitar esse convite, tenho? Não tenho.

— Tudo bem — respondo — deixa eu me arrumar e nós vamos, pode ser? — vamos descobrir o que ela está aprontando.

Ela balança levemente a cabeça e levanta rapidamente da cama.

— Estarei na sala.

Ok, a energia natalina é mesmo muito louca, Catarina tem razão.

20 minutos depois eu apareci na sala. Teria me arrumado em menos tempo, mas só quem tem cabelo cacheado sabe como o nosso cabelo demanda um tempo único para estar pronto. O tempo sempre é dele, só nos cabe a aceitar.

Assim que apareci, Eris levantou do sofá, travando a tela do celular e me olhou dos pés a cabeça. 

Estou relativamente simples, com um dos meus vestidos longos que sinto que não serão muito úteis daqui para frente visto que estou indo para um lugar bizarramente frio; a mesma rasteirinha que usei ontem e mascará de cílios. Nada mais. Nada demais.

Ela soltou um assobio e por conta disso sinto meu rosto aquecer um pouco. Ah, porra, nem vem.

— Vamos? — estendeu a mão para mim.

*

Mas a magia do Natal resolveu ser seletiva, porque assim que saímos da fazenda, um pé d’água começou a cair. Feio, muito, muito feio. Acho que nunca vi tanta chuva na minha vida.

— Não acha melhor pararmos um pouco? Está chovendo muito — pergunto.

— Esta estrada não suporta chuvas muito fortes — ela diz, focada na direção — se eu parar aqui, vamos ficar presas.

Realmente, a magia do Natal não é para amadores.

— Então não acha melhor voltarmos? — sugeri.

— É arriscado demais, vamos ficar presas na estrada — seus ombros estão mais tensos do que o costume, ela não altera o tom de voz, mas sinto que está tensa. — Já perdi a conta de quantas vezes precisei salvar a Nara ou o teu pai na estrada.

Ela continuou dirigindo e pegamos o mesmo caminho de ontem. Passado algum tempo, ainda com muita chuva, chegamos ao centro da cidade.

— Bom, nós vamos precisar recalcular nossa rota até que essa chuva pare — diz, virando-se para mim — foi mal por isso.

— Tudo bem, estava muito quente, já era esperado que chovesse assim — tento amenizar um pouco a situação, mas Eris pareceu mesmo ter ficado um pouco frustrada — não é a sua culpa.

— Onde você ia me levar? — resolvo perguntar.

— É surpresa.

— Ok. Então, o que vamos fazer agora?

— Voltar para a fazenda está totalmente fora de cogitação e hoje é dia 25 de dezembro, está tudo fechado. Só consigo pensar em um lugar — ela continuou dirigindo pelas ruas da pequena cidade até que paramos uma rua antes do bar que fomos. 

Passei por aqui no dia que saí com a Nara.

— Me espere aqui, tá? — Eris colocou a mão sobre minha coxa — eu já volto — destravou a porta da picape e saiu debaixo da chuva.

Pouco tempo depois, Eris voltou correndo, debaixo da chuva, abriu minha porta e me ajudou a sair da camionete. Ela segurou minha mão e me guiou conforme sinalizava. Corremos até o portão de madeira, passamos por uma espécie de galpão ou algo assim e, por fim, subimos em uma escada de metal que não me parecia nada segura.

Estamos totalmente ensopadas de água porque a chuva só aumentou. Assim que subimos todos os lances de escada, paramos em uma varanda apertadinha que possui um mini jardim de fora a fora. Ela abriu a porta de vidro e me deu passagem para entrar no local.

A primeira coisa que olho é a enorme prateleira que cobre a parede inteira, toda de metal e recheada por peças de… cerâmica? Tem mais outras duas num cômodo ao lado. O chão é todo branco, as paredes são de tijolinhos vermelhos, bem como os do Quimera, há uma enorme janela e um…

— Uau — esse lugar é lindo — de quem é esse lugar?

— Meu — ela diz, fechando a porta atrás de nós.

— Como assim, seu? Vai me dizer que você trabalha com cerâmica?

— Bom, é o que eu faço — ela me respondeu meio sem saber se era a resposta certa. — Olha, esse não era o plano inicial, não planejei te trazer para cá mas, infelizmente, a chuva nos pegou e vamos ter que ficar por aqui… pelo menos estamos seguras.

Mas continuo hipnotizada com as peças sob a prateleira, uma mais linda que a outra. Nem brincando que foi ela que fez isso… quanta perfeição, que lugar encantador e… curiosamente muito legal.

— Está ótimo para mim — dou mais um passo, olhando o cômodo ao lado — isso é lindo, Eris.

— Quer conhecer o restante?

Balanço a cabeça em afirmação e ela me leva pela mão até o outro cômodo onde deduzo ser o local que ela usa para fazer as cerâmicas. Há uma mesa alta enorme que corta o cômodo todo, além de mais prateleiras e uma roda de cerâmica mais ao fundo, pertinho de outra janela enorme. 

Estamos em uma espécie terraço, pelo menos é a sensação que eu tenho, estava chovendo tanto que não sei se tem mais alguma construção em cima.

Aqui é tão…

— Misha?

— Me perdoe — volto para a realidade, piscando meus olhos — cara, isso é incrível. Então é com isso que você trabalha?

Ela me balança a cabeça em tom afirmativo. Os pincéis que ela ganhou de natal… claro! Eles são profissionais, são para o trabalho dela, lógico. Vi algumas peças pintadas sob a primeira prateleira.

Mas logo me bate um frio enorme, encaro meu vestido todo encharcado e as roupas dela bem parecidas com a minha. Isso não é nada bom, porque eu sinto que já já vou começar a

Soltei um espirro.

— Desculpe — mais um, e outro, e outro.

— Isso não é nada bom — ela estendeu a mão para mim — vem.

— Onde estamos indo?

— Para o segundo andar, preciso te dar roupas secas e algo quente para te aquecer, não queremos ninguém resfriada aqui.

— Vai me dizer que tem uma cozinha ou algo do tipo?

— É, ou algo do tipo.

Segui a Eris até os fundos do ateliê e ela abriu outra porta de vidro, igualzinha a da frente e muito parecida com as janelas. Subimos mais um lance de escadas e, dessa vez, nas paredes, há uma infinidade de fotos, muitas mesmo. Esse lugar é muito estiloso, pelo amor da Deusa.

Assim que ela abre mais uma porta, dou de cara com uma espécie de loft com as paredes de tijolinhos vermelhos assim como o ateliê, em estilo industrial.

— Essa é a sua casa? — ainda olhando para tudo que está na minha frente, uma estante de livros, uma mesa com bancos altos, uma cozinha sutil, um mezanino com uma cama, uma TV… tudo aqui é muito funcional, não é um espaço grande, mas por algum motivo me passa muito conforto e… Eris. Esse lugar pulsa o jeito de Eris. A começar pelo cheiro dela que está em todo o canto.

— Sim, dona Misha, essa é a minha casa.

*

Eris me deu uma de suas blusas, um short bem parecido com o que estava usando hoje e duas toalhas secas. Disse para que eu tomasse um banho quente porque dessa forma meu corpo esquentaria e os riscos de ficar gripada seriam menores. Isso faz sentido? Eu não sei, então só segui. 

Assim que saio do banheiro dela, um cheiro de limão e gengibre tomam todo o lugar.

Eris me estendeu uma caneca de cerâmica com

— Você fez chá? — pergunto, desacreditada, enquanto sento em um banco alto.

— Eu gosto de chá — me estende a caneca e morde um sorriso.

Inferno de duplo sentido. 

Ela volta para a bancada para pegar outra caneca. Foi só então que eu percebi que ela também está com roupas diferentes. Agora, ela esta com uma blusa parecida com a minha mas de cor preta, um short também parecido com o meu e os cabelos caóticos de sempre. Alguém retocou o perfume? Alguém retocou sim.

— Obrigada, pelo chá — assopro um pouco o líquido antes de prová-lo.

— Não por isso — ela me responde, batendo a colher no fundo da caneca.

— O que vamos fazer agora? — e bebo um pouco.

— Eu tenho uma ideia — me solta um sorriso de lado.

Meu Deus, esse sorriso.

Meu Deus, que chá bom.



Notas:



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