ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 14. Mademoiselle

ERIS

— Residente em cirurgia cardiovascular? — Misha nem faz questão de esconder seu espanto — você vai ser uma cirurgiã!  

— Eu já sou uma, gatinha, mas no final do ano você poderá me chamar, oficialmente, de Cristina Yang — aproxima-se da maca em que Misha está enquanto pega duas luvas descartáveis na caixinha de papel — sei como cuidar de um coração, gata — pisca um dos olhos para a morena. 

— Ela precisa de uma radiografia de inferiores, um anti-inflamatório e limpar esse machucado do joelho — falo com Haru, mas olhando para Misha. 

— É? — Haru nem me olha — e o que mais, médica? — ela estala a língua.

— Gatinha, vamos dar uma olhada nessa perna — ela segura um frasco com um líquido transparente — isso aqui é soro para limpar o machucado, você vai sentir um geladinho, tudo bem?

Misha apenas balança a cabeça e tenta ignorar o desconforto que está sentindo enquanto olha para seu ferimento. Puxo seu rosto, sutilmente, chamando sua atenção para mim. Meu polegar passeia pela extensão de sua bochecha e isso parece surtir um efeito positivo. 

— Vocês querem me contar como isso aconteceu? — Haru pergunta sem nos olhar enquanto procede com o curativo.

— Estávamos na cachoeira, eu acabei escorregando e caí por cima do meu pé — Misha encara a ferida mas puxo seu rosto de novo para mim, ô garota teimosa. 

— Estavam? — Haru pergunta para Misha mas sei muito bem que a pergunta foi direcionada para mim, sonsa — interessante. 

— A culpa foi minha, eu não tinha me ligado na chuva e no estado da cachoeira… me empolguei com o sol. E aí a sua amiguinha ranzinza apareceu — ela me dá a língua como uma criança mimada e eu rio. 

A facilidade que essa garota tem de me tirar risadas me assusta. 

— Eris em uma cachoeira… — já pode parar com a encenação, Glória Pires — milagres realmente acontecem. Bom, você não vai precisar de pontos — Haru falou, terminando o curativo do joelho e tirando as luvas de suas mãos.  

Todo mundo sabe que eu não sou a maior fã de mato que existe.

— Vamos tirar uma foto desse pé para eu saber o que tem nele — ela olha para o relógio em seu pulso — o plantonista que vai me cobrir já deve estar chegando, ele vai terminar seu atendimento mas quero deixar tudo certinho.

Misha foi encaminhada para a sala de radiografia e como é protocolo eu não entrarei junto. 

— Eris, enquanto esperamos a gatinha sair daí de dentro, pode me ajudar aqui na outra sala? — ela abaixa e olha para Misha — vou roubar nossa amiguinha zangada só um pouco, já voltamos — e deixa um beijo no topo de sua cabeça.

Haru e essa mania de beijos. 

Entramos na sala de convivência da equipe médica, caminhamos até o final do corredor e entramos em um quarto. Haru fechou a porta. E o interrogatório vai começar em 3, 2, 1…

— Eu vou nos poupar tempo — ela disse, abre o armário de metal à sua frente e retira uma blusa de dentro — Misha sabe quem dormiu lá em casa essa noite? 

— Ainda não — respondo já sabendo o rumo final desse diálogo. 

Haru me joga a peça de roupa, coloca uma mão em sua cintura e a outra espalma no armário de metal. 

— E você já descobriu porque a perua mimizenta voltou? — me olha sob os ombros. 

*

Ateliê, ontem a noite 

No segundo toque ela me atende.

Preciso de uma razão muito boa para você me ligar essa hora — estala a língua, eu falo quem acabou de me fazer uma visita de natal e o timbre de sua voz muda na mesma hora — chego em 10 minutos — Haru desliga. 

— Vai me jogar na casa da Vauss? — solta uma risada seca — essa garota me odeia, Eris. 

— Eu me pergunto quem nesta cidade não te odeia, Paloma. 

— Pelo menos você continua simpática como sempre — falou em tom sarcástico mas eu não esbocei uma reação se quer.

Haru não ficou nada feliz com o meu pedido mas eu não tinha o que fazer. Depois que o furacão passou voltei para minha casa, porém Misha estava dormindo. Desliguei a TV, peguei uma colcha para cobri-la e desci para o único lugar que acalma as vozes dos meus pensamentos: o ateliê. 

Eu me permito fumar em duas ocasiões: quando eu bebo ou quando preciso extravasar alguma questão, quase sempre referente a tomadas de decisões importantes. Levo assim para que o meu costume não se torne um vício.

Não gosto muito da ideia de ter um vício.

Pego a carteira de Marlboro que mora em cima da estante, rente a sacada do ateliê, e que só é utilizada em casos extremos. 

Esse é um caso extremo. 

Abro a porta, sento-me na poltrona suspensa da varanda que tem a vista para os fundos do Quimera e também a grande floresta da cidade. 

Depois que deixei Misha na fazenda, voltei para a cidade determinada a fechar de vez essa porta aberta há quase dois anos. 

Estacionei a picape em frente ao ponto marcado para a nossa conversa. Um café que fica bem na Praça Central. Consigo avistar a morena sentada com classe em uma mesa ao lado de fora do café. É claro que ela precisou escolher o lugar mais mimimi da cidade para nos encontrarmos. 

— Pontual como sempre — Paloma diz enquanto abre um sorriso largo — alguns hábitos não mudam mesmo, bom dia — ela retirou o óculos de grau. 

— Bom dia — respondo e sento-me à sua frente. 

— Escolhi um brunch para duas pessoas, não é como o dos ingleses, mas até aí nenhum é, não é mesmo? — Paloma dobra o óculos de grau ao lado de sua xícara e bloqueia a tela do iPad que estava lendo, provavelmente o jornal do dia — solicitei geleia extra, como você gosta. 

Laranja, Rosa e… Patchouli, o  âmbar floral de Coco Mademoiselle nos toma assim que o vento aparece, ela e esse inferno de perfume. Não consigo ignorar a sensação nostálgica de toda a cena: nós duas aqui, ela escolhendo o que vamos comer e eu… 

— Serei direta, por que você voltou, Paloma?

— Nossa, você costumava gostar de conversar comigo enquanto tomávamos café juntas. 

— Conjugou o verbo no tempo certo, eu costumava. 

— Ensaiei essa conversa muitas vezes, mas parece que… bom, eu não sei como começar essa conversa sem um pedido de desculpas — fala em um tom sereno e despreocupado, não há aflição em sua fala — me desculpe. Voltei porque estou de férias e preciso resolver umas pendências por aqui… fiquei com saudade de vocês, resolvi fazer uma visita. 

Eu não consigo distinguir se isso é algo sincero, eu não sei mais nada referente a essa mulher. Me pergunto se algum dia eu já soube. 

— É mesmo muita cara de pau da sua parte aparecer aqui depois de tudo o que você fez — mas apenas o meu ressentimento responde. 

— Você está mais áspera que o usual. O que foi, é a namoradinha nova?

O jeito como Paloma articula as palavras soa como se ela não tivesse feito nada de errado. Como ela consegue não ter peso na consciência?

— O que se passou pela sua cabeça? Que você apareceria naquele temporal, bateria em minha porta e.. o que? Voltaríamos no tempo? 

— Você quer dizer em nossa porta, querida. Você trocou as chaves… me impressionou. 

— Aquela casa deixou de ser sua a partir do momento que você largou tudo e foi embora.

— Posso não ser a proprietária no papel, posso não ter a escritura daquele terreno… mas sou tão dona quanto você, construímos aquilo juntas, Eris. Era o nosso lugar…  

É mesmo muita cara de pau. Solto uma risada seca porque é a única coisa que consigo expressar. Ela não pode estar falando sério.

— Sete palavras, uma vírgula e um ponto — eu falo e o peso nos abraça.

Mas ela não fala nada. 

— Um relacionamento não cabe em um bilhete amassado, muito menos em sete palavras, Paloma. 

— Eu sei que errei com você e nada apagará isso. Mas eu precisei fazer isso por… estou disposta a consertar esse erro, se você me permitir, estou com saudade de você, Eris. 

— Saudade de que, Paloma? Dos presentes que eu te dava, dos jantares que tínhamos, das mil e uma viagens que fizemos ou da vida dupla que você tinha comigo? De viver escondida comigo? De não me assumir pros seus amigos do trabalho, para a sua família? Ah, a minha parte preferida, de continuar casada no papel com o seu ex marido… 

— Está me ofendendo falando assim, você não era assim, Eris. 

— Você tem razão, eu não era, mas eu me tornei. Realmente achou que isso funcionaria? Em que mundo você vive? 

— Em seu mundo. Em nosso mundo. Tudo o que vivemos foi verdade, nós existimos… Você ainda lembra… eu sei que você ainda lembra da gente. Sua primeira noite naquele lugar foi comigo. Não tínhamos nem janelas… você colocou a estante de metal, que tínhamos acabado de comprar, para tapar o vão entre a varanda e a sala… dormimos em um colchão de ar que posso me recordar furou naquela mesma noite de tanto que nós… fomos tão felizes juntas, Eris. 

— Você nunca validou nosso relacionamento, Paloma. Sabe quanto tempo eu passei me perguntando antes de dormir o que eu tinha feito de errado? Você pode tentar reviver quantas memórias quiser, nenhuma delas justifica nada do que fez. 

— Você ainda não me esqueceu e eu sei disso. Vai precisar de um bom tempo com a namoradinha da vez para me esquecer, Eris. Falando nela… como ela é, em? — impressionante. 

— É incrível como você não tem nenhuma noção do que fala. 

— Ela é novinha, assim como você? Ou se parece comigo? Eu sei que você prefere mulheres experientes. Faz com ela o que você fazia comigo? — aproxima-se do meu rosto e fala baixinho, quase sussurrando. 

Agora seus olhos me analisam de forma meticulosa e há um pouco de revolta neles… Eu sabia que esse discurso de cachorrinho abandonado não seria sustentado por muito tempo, Paloma Sartre is back. 

— Você a fode do jeito que costumava me foder? — pergunta de um jeito frio e me olha como se estudasse minha linguagem corporal, assim como um jogador analisa o tabuleiro de xadrez antes da próxima jogada. 

Mas a garçonete chegou com o pedido, serviu a mesa, e foi para dentro. 

— Essas são as suas armas? Joguinho psicológico não vai rolar — respondo no tom mais calmo que consigo encontrar. 

— Vejo que alguém está com a terapia em dia, estou mesmo impressionada. E eu tenho lugar de fala, não é mesmo? Mas conta para mim, Eris, o que vocês fizeram? Ah, deixa eu adivinhar… você a levou para conhecer o ateliê, escutaram alguns discos, beberam algo na sacada enquanto vocês conversavam sobre a vida uma da outra e treparam ali mesmo? — Paloma alisa a borda da xícara de louça com os dedos indicadores — Não, melhor… o terraço, claro, levou a namoradinha nova para ver as estrelas e acabaram fodendo no terraço. 

Mas eu não falo nada, apenas escuto-a. Paloma soltou um riso acre, de canto, como quem faz uma grande descoberta.

— Você está tensa — seus olhos fitaram os meus — dobrou os braços, não parou a sua perna esquerda desde que chegou aqui… não treparam — ela fala com tanta certeza que o seu sorriso fica mais largo — vocês não transaram ainda, que lindinhas, quanto amor. 

Amor… você sabe o que é isso, Paloma? 

— Eu te ensinei o que é isso como a boa professora que sou. Você já provou muito dessa palavra em minha boca. O que nós temos e sentimos é amor e você não pode negar. 

— A única coisa que eu sinto por você é desprezo — nossos olhos encontram-se mas ela desfoca toda a comida que está servida sob a mesa — e só para não deixar dúvidas, isso aqui é um término, eu não tenho mais nenhum assunto em aberto com você — tiro o óculos da minha camisa e coloco no rosto. 

— Vejo que ainda usa o nosso anel. 

— Esse anel é meu.

— Compramos juntas — ela ergueu a mão delicada que revela um anel de prata, em seu anelar. Um anel do mesmo modelo que uso no meu indicador. 

— Nem tudo é sobre você, Paloma. 

— Você está certa, nem tudo é sobre mim, mas no seu mundo… eu ocupo uma parcela enorme. Não tem como passar uma borracha nisso, minha deusa.

— Eu só me ocupei em terminar o trabalho que você deixou pelo caminho, quem começou isso foi você. 

— Eris — ela estende a mão sob a minha mas retiro antes mesmo que ela pudesse tocá-la. 

— A nossa conversa terminou aqui, Paloma. 

*

Haru me escutou com uma cara de poucos amigos. Se antes ela já não simpatizava com a minha ex, agora eu tenho certeza que ela odeia a Paloma. 

— Então… eu posso deduzir que ela não sabe quem é a dona deste hospital — ela estala a língua.

Balanço a cabeça novamente.

— Nem preciso perguntar se ela sabe do porquê de você ter largado sua vida em São Paulo. Ela também não sabe sobre isso, não é? 

— Eu só estou trazendo a Misha para ver o pé dela, não precisa desse show da Xuxa, Haru. 

— Olha só, eu sei que eu tô dando força para esse casal aqui, aquela coisa toda de amante das causas perdidas… mas a garota que está ali batendo o raio X não merece entrar nessa confusão sem saber, Eris — não há tom cômico na voz da Haru — converse com a Misha, antes que o encosto mor apareça de novo. E vê se coloca a porra dessa blusa ou vou ser obrigada a te expulsar daqui.

— Não existe casal nenhum aqui, Haru. 

— Se você pudesse ver o jeito como olha para ela, não estaria falando isso — mas não deu nem tempo de falar nada, ela saiu me dando ombros até o banheiro. 

Tomou uma ducha em menos de 5 minutos e voltou com os cabelos soltos e molhados. Tirou seus óculos de grau e trocou pelo de sol estilo aviador, uma calça de alfaiataria branca, blusa social, mocassim de grife nos pés… está para nascer mulher mais chata com roupas que essa gaúcha. Saímos do quarto em direção a máquina de café da sala de convivência. 

— Qualquer coisa estou no celular. Tô com um paciente no hospital da serra que eu tenho certeza que volta para a mesa de cirurgia ainda hoje a noite e eu não tô afim de sair daqui às pressas.

Haru coloca as cápsulas de café expresso na máquina.

— Você está virada, Vauss. 

— É por isso que estamos tomando café, coisinha rica.

— Você ainda vai fazer uma merda muito grande levando a vida dessa forma. 

— Eu basicamente tomo conta de dois hospitais, estou no meu último ano de residência e ainda resolvo a vida amorosa das minhas amigas, porque até isso eu preciso fazer. Você quer que eu durma como, anjo lindo? 

— Haru, por favor… 

— Pode deixar, eu sei o que estou fazendo. Te prometo que pegarei folga no final de semana para a virada de ano.

Ainda tem muita água para passar por debaixo dessa ponte até lá. Haru me entrega a xícara de café. 

— Paloma é uma mulher perigosa, De Mori. E você — apontou o indicador no meu peito — a deixou com raiva. Uma mulher contrariada vale por dez, vai por mim, eu sei o que estou falando. 

— Converse com a nossa gatinha antes que uma merda federal aconteça — ela me roubou um selinho rápido e saiu corredor a fora — amo você, anjinho ranzinza.  

Ela não é nossa gatinha, Haru. 

*

Chegamos à fazenda. Miranda nos recebe na porta de casa, ela disse que fez um jantar forte para que Misha se recupere, Misha tenta dizer que só torceu o pé mas é a mesma coisa que falar nada. Essa mulher de um metro e meio e que manda se bobear até em Deus. 

Depois do jantar Misha foi para o quarto e eu fui para a área externa da casa. Puxei a manta e fiquei deitada no sofá da varanda, escutando as músicas vindo da casa de Raimundo. Era a minha terapia diária, sentar nesta varanda com minha caneca de chá e Zeca, nós dois em silêncio apenas escutando as músicas que eles cantavam e tocavam. 

Abelha fazendo o mel

Vale o tempo que não voou

A estrela caiu do céu

O pedido que se pensou

O destino que se cumpriu

De sentir seu calor

E ser todo

Todo dia é de viver

Para ser o que for

E ser tudo

Fecho meus olhos e posso escutar a voz mais bonita que eu já escutei na vida, cantando, enquanto me coloca para dormir. 

— Canta aquela de novo? 

— Qual?

— Aquela da abelha e do mel… 

Se fecho os olhos posso sentir as mãos macias da mulher que eu mais amei na vida. As mãos femininas com unhas quadradas sempre pintadas e um cheiro só dela. Posso sentir suas mãos pelos meus fios longos e infantis. 

No inverno te proteger

No verão sair pra pescar

No outono te conhecer

Primavera poder gostar

Consigo me lembrar de ficar embalada em seu peito, o mais perfeito que eu já tive contato, enquanto enrosco meus dedos em seus longos cachos. Minha outra mão segura o pingente de seu colar. Posso lembrar dela terminando a canção e me olhando do mesmo jeito de sempre. 

— Quando eu crescer vou ter os cabelos da senhora? 

— Nossos cabelos já são parecidos, olhe nossos cachos. Seus fios são apenas mais finos que os meus. 

— Mas eu quero ser mágica como a senhora. 

— Como assim, meu amor?  

— Eu quero ser cheirosa e inteligente e ter seus cabelos mágicos. A senhora é uma deusa. 

A primeira coisa que eu fiz quando minha mãe morreu naquele quarto de hospital foi cortar meu cabelo. Eu raspei na máquina 1, nem preciso dizer que meu pai só relevou porque tínhamos acabado de perdê-la. Eu tinha acabado de perder uma mãe. E, ele, a mulher de sua vida: Andrea De Mori. 

Seguro a corrente que eu nunca tiro do pescoço, ergo meus olhos para o céu e procuro a estrela mais brilhante da noite.

— Eu não sei o que fazer, mãe — desabafo quase um suplício na esperança dela me escutar — por favor, fale comigo.

Um vento gelado ataca meu corpo sem pudor algum, encolho-me no sofá e volto a encarar a casa de Raimundo. Que seja. Ao longe, consigo sentir o aroma amendoado da carioca… Eu devo estar ficando maluca. Eris, você está ficando maluca.

— Falando sozinha? — a dona da voz aparece, sutilmente, na varanda, engolida em um casaco enorme que mais parece um vestido e que eu conheço muito bem.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2024 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.