Argentum

A estadia dos gêmeos no Rancho Aureus foi a melhor que Maia poderia proporcionar. Alicia conseguiu ficar com eles os dois dias seguintes a partida de Otávio, mas precisou atender algumas consultas marcadas e um chamado em uma das pequenas propriedades rurais da região nos outros dias. Apesar das ocupações a veterinária conseguiu estar com Maia na hora de levar os mais novos ao aeroporto. Ao se despedir dos irmãos ela prometeu que tentaria conversar com a mãe deles, o que os dois também garantiram que fariam, para que eles pudessem voltar em férias ou outros feriados maiores.

Depois disso a rotina das duas voltou ao que estava se tornando comum. Consultas com Bernardo continuam a acontecer no mesmo sistema o que permite que Alicia e Maia fiquem dias juntas já que a veterinária precisava levar a namorada a outra cidade além de estar com ela nos dias em que teriam as sessões leves em casa. Enquanto isso a preocupação mais geral de todas, incluindo-se nisso Talitha e as mães das duas amigas, era o que seria feito do processo contra Renato. Não haviam notícias recentes, o que aconteceu no início do mês seguinte foi a chegada da intimação para que elas comparecessem no fórum da cidade.

Márcio explicou que seria uma audiência apenas para que o juiz da cidade conversasse com a acusação, segundo o que ele ficou sabendo a defesa seria chamada no dia seguinte a comparecer. Entre os nomes chamados estavam o das três, Talitha, Maia e Alicia, e o de Carlos assim como o Delegado e o policial que o acompanhou no dia da prisão. Alicia ficou aliviada ao saber que não correriam riscos de encontrar com Renato ainda. Parte dela não sabia como reagiria a presença do homem porque apenas considerar todas as coisas que ele disse e fez a irritava numa dimensão que ela, tão calma como sempre foi, não conseguia compreender.

Márcio explicou que elas, provavelmente, não encontrariam com o rapaz em nenhuma das audiências, algo que ele pretendia garantir, mas que ele compareceria a todas, inclusive aquelas em que apenas Renato seria convocado para depor. Naqueles primeiros dias de setembro as coisas pareciam que demorariam demais a acontecer. O advogado estava supondo que, pelo andamento das coisas, a primeira audiência aconteceria só no mês seguintes, mas não foi bem isso o que aconteceu. Era sexta e Maia e Alicia haviam acabado de chegar na clínica, naquela manhã haviam levado os irmãos de Maia até o aeroporto em Porto Alegre. Almoçaram em uma das cidades no caminho e chegaram no meio da tarde à cidade.

As duas estavam descansando um pouco porque Alicia teria uma consulta dali alguns minutos quando o oficial de justiça entrou na clínica. Ele havia entregado a intimação à Talitha poucos minutos antes. Todas elas estavam sendo intimadas como testemunhas do caso, mesmo Alicia e Maia que também eram vítimas. Logo após a saída do oficial, Maia ligou para seu advogado perguntando como seriam as coisas. Márcio havia sido avisado naquela tarde também e havia ido se informar antes da ligação dela. Ele garantiu que Renato não estaria presente no dia, explicando que o rapaz receberia uma intimação para ser interrogado no dia seguinte; Carlos também seria intimado como testemunha naquele sábado e a audiência onde seriam ouvidos aconteceria naquela quarta.

Maia conversou longos minutos com o advogado; em certo ponto ela perguntou como ele procederia ou o que iria acontecer quando fossem testemunhar. Depois dele explicar sua estratégia ela perguntou se seria possível que Alicia estivesse na sala junto com ela. Márcio acabou explicando que ele havia conseguido anexar todos os processos contra Renato em um só, sendo assim ela, a veterinária e Carlos estariam todos presentes nessa audiência da acusação. Ele explicou também como a defesa de Renato pretendia diminuir o tempo de condenação dele. Márcio estava estruturando a acusação contando quatro crimes, duas lesões corporais, uma lesão verbal e danos morais, respectivamente contra Carlos e os dois últimos contra Maia. A defesa do ex bancário defendia que houveram apenas uma agressão e uma tentativa, desconsiderando os crimes contra Maia e considerando a acusação de Alicia como “tentativa” e não uma agressão propriamente dita.

O que o advogado da dona do Rancho pretendia naquela primeira audiência sustentar a acusação contra os quatro crimes cometidos. Era com essa finalidade que os quatro estavam naquela sala às 15h em ponto. Sentados de um lado da longa mesa estavam Márcio, Maia, Alicia e Carlos. Do outro lado da mesa o advogado de Renato se sentou à frente de Maia e Márcio. Na ponta próxima a Carlos havia uma cadeira e na outra, próxima ao advogado do trio estava o juiz em outra mesa junto de alguns assistentes. Em frente a eles haviam dois microfones, um entre Maia e seu advogado e outro entre Alicia e Carlos, o advogado de defesa também tinha um microfone a sua frente e na ponta onde estava a cadeira vaga havia outro.

O primeiro a ocupar a cadeira vazia foi Carlos. Nos quase 30 minutos em que permaneceu ali ele relatou todos os acontecimentos desde que saiu do Rancho, como encontrou um carro na estrada que veio atrás dele e o perseguiu e como ele acabou sofrendo o acidente por conta do motorista do dito carro. Márcio, o Juiz e o outro advogado lhe fizeram diversas perguntas, principalmente Márcio que conduziu o depoimento para que Carlos conseguisse relatar todos os fatos.  Depois disso foram apresentadas as imagens das perícias pelas quais passaram o carro que Carlos estava dirigindo naquele dia e o carro de Renato. Márcio apontou que o carro de Renato tinha marcas condizentes com o depoimento de Carlos, além de conter marcas de tinta da cor do veículo pertencente ao Rancho, além do modelo, cor e a placa do Vectra, serem compatíveis com o depoimento que Carlos havia prestado na delegacia após o ocorrido.

O advogado de defesa não teve muito o que dizer a respeito daquela acusação; era impossível argumentar contra a evidência da placa e de que Renato havia sido encontrado com o carro pelos policiais que o prenderam. Acabaram passando direto para a acusação sobre a lesão corporal contra Alicia. A veterinária passou pelo mesmo procedimento que Carlos e, enquanto estava sentada na cadeira da ponta, foi questionada por seu advogado de maneira a relatar os acontecimentos daquela tarde, quando Renato apareceu na Clínica. Em seguida Márcio apresentou os exames aos quais Alicia foi submetida mediante a apresentação e formalização da queixa contra Renato.

O argumento da defesa era de que, propriamente esses exames, eram inconclusivos. Para o advogado de defesa, que apresentou o exame realizado em Renato, não se poderia caracterizar a lesão corporal da forma que a acusação pedia. Segundo ele, Renato era quem poderia ter prestado queixa contra a veterinária por lesão corporal tendo em vista que o exame de perícia realizado em seu cliente apontava diversas lesões. Carlos e Maia foram os que mais se exaltaram com aquela afirmação do advogado e tiveram de ser acalmados por Márcio. Alicia apenas riu incrédula em seu lugar, ainda na ponta da mesa. Como que prevendo aquela ação da defesa, Márcio apontou o fato de que os outros depoimentos realizados em delegacia atesavam que a intenção de causar ferimentos em terceiro havia sido de Renato.

– Existem testemunhos, Excelência – afirmou ele – A Senhorita Talitha Borges assim como a Senhorita Maia Augustus em seus depoimentos, na data em questão, afirma categoricamente que o Senhor Borges assumiu uma postura extremamente agressiva para com a minha cliente, Senhorita Alicia Ferraz. É possível notar nos ditos pelas testemunhas oculares como o acusado entrou em confronto corporal com a Senhorita Ferraz na clara intenção de lhe causar uma agressão severa.

– Se me permite a palavra, Excelência – interpôs a defesa, por sua vez, modulando seu discurso – O Senhor Renato Borges, efetivamente, teve a intenção de agredir fisicamente a Senhorita Ferraz. Não se pode negar e o próprio registrou por meio de seu depoimento. Entretanto, essa intenção não foi concretizada, não podendo, dessa maneira, ser caracterizada como lesão corporal, mas sim como tentativa. Ponto ao qual sustenta a defesa a respeito dessa acusação.

– O fato do acusado ser fisicamente ineficiente na execução dos atos da agressão não justificam a solicitação da defesa – Márcio falou se voltando ao juiz que ouvia os dois – Os exames realizados pelos peritos na minha cliente e no acusado mostram que as lesões sofridas por ele foram decorrentes dos atos praticados por Alicia Ferraz na sua tentativa de autoproteção!

Quando os advogados começariam a entrar em uma ida e vinda de argumentações e dialética o juiz interrompeu erguendo uma mão e pedindo silêncio. Ele havia notado a expressão desacreditada no rosto de Alicia e o riso baixo que ela tentava controlar e se virou para ela.

– A senhorita tem algo a declarar sobre o pedido da defesa? Ou sobre as afirmações proferidas? – ele perguntou.

– Honestamente, Meritíssimo – ela começou – Eu me pergunto se o senhor advogado de defesa explicou ao cliente dele que a justificativa dele para que a acusação que eu faço contra ele passasse de Lesão corporal para uma tentativa faria com que Renato, em termos, tivesse de se alegar fisicamente não competente para me causar uma lesão. Afinal, toda a motivação dele para causar tudo o que fez foi a masculinidade frágil dele e a total crença de que Maia e eu, como duas mulheres, deveríamos estar em um relacionamento amoroso com um homem e não uma com a outra. O que Renato praticou se chama lesbofobia. Entretanto, nosso país ainda não parece considerar esse tipo de discriminação como um crime real, já que, diferente do racismo, a lesbofobia, homofobia, transfobia entre tantas outras ainda não foram criminalizadas. Se já fosse possível seria essa a acusação que Maia estaria atribuindo a Renato. Porque foi isso o que ele praticou, isso tudo foi um crime de ódio que não podemos classificar assim porque o enquadramento não existe ainda – a veterinária respirou fundo antes de continuar – Mas se o senhor quer realmente saber a minha opinião. Eu digo que foi uma agressão sim, mas ele apenas acreditou tão cegamente que por ser homem seria mais forte e mais capaz de me causar uma lesão que não parou para pensar que eu poderia me defender por mim mesma. Eu não protegeria uma atitude como a de Renato apenas porque ele enfrentou um oponente a sua altura, mas o entendimento não é meu.

Um longo silêncio pareceu encher a sala e fez calar a todos os presentes. Nem mesmo Márcio soube o que dizer depois da declaração de Alicia que fez todos pensarem profundamente algumas questões. Mas haviam dois pequenos sorrisos orgulhosos que surgiram naquele silêncio. O primeiro e o maior era o de Maia que encarava a namorada com um brilho apaixonado nos olhos verdes. O segundo era discreto de um par de olhos que evitava se erguer e pertenciam a uma jovem que usava um crachá dizendo “Estagiária” pendurado ao pescoço e estava organizando os papéis referentes a audiência num pequeno canto da sala atrás da mesa do juiz.

N/A: Antes de tudo(principalmente antes de querer matar a autora pelo atraso)!!! Eu queria desejar Feliz Aniversário (de novo hehe) pra Raffa que é uma das minhas leitoras fofas e que está fazendo aniversário hoje =] Esse capítulo vai de presente pra ela. Espero que tenha gostado do cap mesmo ele sendo menos fofo do que os anteriores.