Argentum

Capítulo 44

Ela não se recordava de ter dormido, mas sabia que estava de olhos fechados então acreditava que havia cochilado em algum momento. Também não saberia dizer que horas da madrugada eram, não estava consciente o bastante para abrir os olhos e procurar seu celular no bolso da calça de moletom. Sentia apenas o grosso cobertor ainda por cima de suas pernas e parte de seu abdômen. Percebeu que estava deitada e não mais recostada sobre os travesseiros. Ao abrir os olhos encarou o teto do quarto e levou alguns segundos para ficar realmente consciente. Quando pode se considerar realmente acordada se deu conta do cheiro de um sabonete que não era o seu vindo de algum lugar muito próximo de si.

Havia um peso desconhecido sobre sua cintura e outro sobre seu ombro direito. A luz do abajur do quarto, que permanecera ligado depois que ela desligara as luzes para Alicia poder dormir, ainda iluminava parcialmente o ambiente escuro, o que informava a sua recém recobrada consciência de que ainda era madrugada e que a chuva continuava a cair do lado de fora. Foi então que, mais consciente ainda, sentiu uma respiração bater contra a lateral de seu rosto e se pescoço. Seu corpo travou ao se dar conta de que a veterinária estava deitada com o braço sobre sua cintura e com o rosto colado ao seu.

Virou rapidamente seu rosto enxergando as sombras do rosto de Alicia, mas travou outra vez ao perceber a proximidade em que se encontravam. Com seu rosto virado os rostos estavam tão perto que seus narizes se tocavam e Maia podia jurar que sentia o lábio superior da mais velha roçar no seu inferior entre uma respiração e outra. A veterinária estava deitada de lado abraçando-a e com o corpo colado ao seu. E tudo o que Maia conseguia fazer era encarar o rosto de traços fortes com os olhos fechados.

O pensamento de que, se uma delas se movesse, seus lábios iriam se tocar cruzou sua mente e, ao contrário do que sua consciência lhe gritava, ela simplesmente não conseguia se afastar. A ideia de seus lábios tocarem os da mais velha, ideia que deveria fazê-la pular para longe, estava fazendo justamente o oposto e prendendo-a ali. Mas nada em Maia faria com que ela se aproximasse mais do que já estava, ela apenas não conseguia nem queria se afastar. Era agradável sentir o cheiro de Alicia tão próximo, como nas vezes em que havia estado nos braços da veterinária. A sensação de conforto, segurança e proteção era idêntica, mesmo com Alicia completamente inconsciente.

Sem que pudesse ter controle de seus pensamentos a imagem dos lábios das duas se tocando preencheu a mente da mais nova. Uma estranha curiosidade sobre como seria a sensação surgiu junto a sua imaginação trabalhando na rápida cena, mas foi afastada. Para tentar não pensar nisso sua mente traiçoeira a fez se recordar de quanto tempo fazia que não era beijada, o que apenas a levou de volta ao pensamento de como seria a sensação de ter os lábios da veterinária sobre os seus. Maia nunca seria capaz de descobrir se teria coragem para sanar essa curiosidade porque antes que decidisse por seguir em frente ou retroceder de vez Alicia se moveu ajeitando-se na cama. O braço em sua cintura puxou-a para mais perto ainda e a cabeça da maior se moveu chegando ainda mais próxima dela.

Os seus lábios estavam colados, ela podia sentir como o lábio inferior da veterinária parecia um tanto ressecado por conta da febre. Os olhos verdes arregalados não conseguiam acreditar no que estava acontecendo. A veterinária estava completamente inconsciente enquanto juntava os rostos de ambas e antes que Maia notasse seus olhos se fecharam. Seus lábios se pressionaram levemente contra os de Alicia por alguns segundos, o cheiro da mais velha preenchendo todo o ambiente, o calor do corpo maior colado ao seu.

Mas, com um estalo, Maia se deu conta do que estava fazendo e afastou o rosto. Seus olhos arregalados e ela tentando não se mover demais para não acordar a veterinária. Havia acabado de beijar Alicia enquanto a mesma estava dormindo e sua consciência estava lhe gritando o quanto aquilo era errado. Sentia-se, naquele momento, como uma aproveitadora e isso a fez começar a se afastar o mais discretamente possível para não acordar a mais velha que continuava num sono pesado por conta do antitérmico e do antinflamatório.

Por sorte sua perna não estava mais doendo insuportavelmente e ela conseguiu se firmar em pé com facilidade. Pegou parte de suas coisas que conseguiria segurar com uma mão só e se virou para o abajur na intenção de apaga-lo. Mas seus olhos se voltaram para a cama onde Alicia continuava deitada, agora com o braço direito jogado sobre o cobertor ainda na mesma altura em que sua cintura havia estado antes dela levantar. O rosto calmo como se estivesse tendo bons sonhos. Sabia que a temperatura dela estava normal, mas recordar o motivo por saber dessa informação lhe fez corar e levar os dedos da mão esquerda até sua própria boca enquanto olhava para os lábios semiabertos da veterinária.

Sua respiração acelerou e ela balançou a cabeça tentando afastar aqueles pensamentos. Desligou o abajur e caminhou para fora do quarto o mais rápido que sua condição permitia sem fazer barulhos demais. Deixou a porta encostada e seguiu para seu quarto fechando a porta do mesmo, largando as coisas que tinha nas mãos sobre a mesa logo ao lado. Se deixou encostar a testa contra a parede ao lado da porta espalmando a mão esquerda contra a madeira. Sua respiração ainda estava irregular e também sentia que ainda estava corando. Não conseguia acreditar que havia beijado Alicia, mesmo que houvesse sido apenas um selinho unilateral.

Quando se deitou e olhou as horas no celular antes de colocá-lo sobre o criado mudo viu que já passava das 30 da manhã. Mesmo assim não conseguia dormir pensando na mulher que ressonava baixinho no quarto ao lado. A veterinária que vinha se tornando sua primeira amiga de verdade em anos. A mesma que já havia demonstrado ser uma pessoa integra e de confiança. Era a mesma que ela havia beijado sem o seu consentimento e isso fazia seu peito doer por sentir que havia traído a confiança da maior.

Por mais que naquele instante, enquanto tentava dormir e lutava com seus pensamentos, ela tenha se sentido culpada e com medo, Maia ainda não era capaz de esquecer ou parar de pensar na textura dos lábios de Alicia contra os seus. Adormeceu lutando com as contradições de sua situação. Por um lado o medo de Alicia não ter estado completamente inconsciente, recordar do selinho e odiá-la no dia seguinte. Por outro a sua incapacidade de parar de reviver e repassar cada milésimo de segundo em que teve seus lábios juntos dos da veterinária. E tudo o que ela conseguiu não se permitir fazer foi raciocinar sobre o fato de ter gostado.

Seu cansaço por ter adormecido após as quatro da manhã a impediriam de se recordar no dia seguinte, mas em seus sonhos ela repetia aquele selinho com Alicia acordada. Tudo o que sentiu quando acordou perto das sete horas do dia seguinte foi que lhe faltava algo. Demorou minutos para conseguir se sentar na cama. Olhou em volta tentando assimilar porque estava tão cansada logo após acordar e, como um soco, as memórias lhe retornaram a mente. Seu rosto corou e ela levou as mãos aos lábios. Apenas para, no segundo seguinte, sacudir a cabeça afastando aqueles pensamentos.

Maia se levantou e, com a ajuda da bengala, foi até o banheiro. Fez sua higiene e se trocou por um moletom mais novo, um tênis confortável, uma camisa de algodão e um agasalho de lã branco. Saiu de seu quarto e pensou em ir até o da veterinária, sentia a forte necessidade de verificar se Alicia não estava mais com febre ou algum outro sintoma do resfriado da noite anterior, mas se controlou e seguiu para as escadas. Encontraria Maria na cozinha e pediria que a senhora preparasse algo para levar à veterinária. Era mais sensato, pensou ela, não ficar sozinha com Alicia por algum tempo até que ela conseguisse entender que motivo a levou a fazer o que havia feito na noite anterior. Não queria correr o risco de destruir a grande amizade que tinha com a mais velha.

O que ela não esperava era encontrar a única pessoa que não estava pronta para ver ainda justo no primeiro lugar que precisava ir. Ao entrar na cozinha a primeira pessoa que Maia viu foi a veterinária sentada no banco comprido da enorme mesa que ficava no centro do lugar. Alicia ainda usava o mesmo conjunto de moletom que ela lhe havia emprestado na noite anterior e estava sentada com um dos pés, descalços, sobre a madeira do banco enquanto apoiava a cabeça no joelho e ouvia Maria contar sobre a força da tempestade da noite anterior. Os cabelos estavam presos num coque frouxo, os olhos ainda sonolentos e um sorriso nos lábios enquanto levava uma xícara velha de metal cheia de café a boca.

– Bom dia, Maia – disse a veterinária quando a notou parada na porta de entrada da cozinha, onde estava já a alguns segundos – Venha, Maria acabou de passar um café. Eu lhe sirvo um pouco – continuou se levantando para buscar uma xícara para a mais nova.

Maia apenas caminhou até o outro lado da mesa se sentando no banco oposto e esperou Alicia retornar com a xícara cheia do café servido do bule que estava sobre o fogão a lenha próximo à Maria. O sorriso da veterinária era largo quando ela colocou a xícara em frente à mais nova. Maia não conseguiu não sorrir de volta e encarou a mais velha dar a volta na mesa até sentar-se novamente no mesmo lugar de antes, voltando a erguer o pé direito sobre a madeira do banco, mas virando-se para Maia.

– Como você está? – perguntou a mais nova encarando os olhos castanhos com curiosidade – Dormiu bem?

– Maravilhosamente bem – contou Alicia com outro largo sorriso e bebeu um gole de seu café antes de continuar – Acordei um tanto cansada por causa dos remédios, mas sem sinais de febre ou da irritação na garganta.

– Fico aliviada. Estaria muito triste se houvesse adoecido por conta dessa sua trajetória para me trazer em casa – falou Maia com um sorriso sem graça erguendo sua xícara também.

– Alicia não seria Alicia se não houvesse lhe trazido, Senhorita Maia – comentou Maria rindo e levando para a mesa uma vasilha de cerâmica cheias de pães de queijo, que Maia adorava, e outra com um pão recém saído do forno – Posso montar a mesa para vocês aqui ou vão até a sala de jantar.

– Aqui mesmo, Maria, por favor – pediu Maia rindo do jeito afobado da senhora.

– Pois acredite em mim – falou a senhora começando a colocar tudo sobre a mesa em frente a elas – Alicia não lhe deixaria sozinha naquela chuva de ontem. A menina Alicia é prestativa demais para isso. Sempre faz dessas coisas e já me cansei de vê-la se machucar para ajudar outra pessoa, mas ela nunca se arrependeu – contava Maria enquanto andava de um lado ao outro – Principalmente quando criança. Nunca deixava os outros correrem os riscos, mas estava sempre feliz em ajudar ao próximo.

A veterinária escondeu um sorriso sem graça por detrás da caneca de café, mas seu rosto corado não pode ser escondido o que fez Maia sorrir pelo jeito desconcertado da mais velha.

– Não seja exagerada, Maria. Eu não me machucava tanto – retrucou Alicia tentando não fazer uma expressão emburrada, mas quase falhando.

Maria gargalhou e foi acompanhada por Maia deixando Alicia sem escolha além de rir também. O resto da refeição transcorreu da mesma forma, entre brincadeiras e risadas. As duas mulheres comeram o máximo possível enquanto a mais velha não parava de preparar coisas para ambas. Quando já estavam satisfeitas Maia pediu para que Maria retirasse a mesa e as duas se levantaram. Alicia pediu licença para subir e se trocar e correu pelas escadas até o andar superior enquanto Maia andava até a sala.

Quando desceu Alicia usava as roupas da noite anterior, ainda um tanto úmidas. Ambas conversaram mais alguns minutos sobre a festa da noite anterior, mas Alicia recebeu uma mensagem de Talitha dizendo que uma consulta havia sido agendada para as últimas horas da manhã. A veterinária teria que se retirar imediatamente e percorrer a estrada até a cidade para não se atrasar. Maia a acompanhou até a varanda da casa e, antes de descer os degraus Alicia se virou ficando frente a frente com a mais nova.

– Está tudo bem? – perguntou a veterinária em tom baixo e inclinando levemente a cabeça na direção da mais nova – Você esteve mais calada que o normal durante todo o café.

– Está tudo bem sim – disse a mais nova surpresa com a pergunta e lembrando que havia passado a manhã toda se policiando para não encarar os lábios da mais velha e não lembrar da noite anterior.

– Tem certeza? – questionou a veterinária colocando a mão sobre o antebraço da menor levemente e demonstrando toda sua preocupação em seus olhos.

– Sim – Maia respondeu sorrindo e colocando a mão esquerda no cotovelo da maior – Não se preocupe, eu estou bem. Apenas um tanto cansada por ter dormido muito tarde.

– Eu realmente não lhe vi saindo do quarto – murmurou Alicia ainda com a mesma expressão – Os remédios me fizeram dormir mais rápido do que eu imaginava.

– Eu não demorei muito – afirmou Maia sem perceber que seu polegar fazia movimentos sobre o tecido da camisa da veterinária – Acabei cochilando por alguns momentos, mas quando acordei voltei ao meu quarto. Sua febre já havia baixado.

– Obrigada por cuidar de mim ontem – agradeceu Alicia com um sorriso no canto dos lábios encarando os olhos verdes com admiração.

– Não fiz nada além do que qualquer outra pessoa faria. Você enfrentou toda aquela chuva para me trazer, nada mais justo que eu cuidar da sua saúde quando ela foi posta em risco por minha causa – disse Maia em tom de brincadeira e sorrindo provocando o sorriso de Alicia – Você precisa ir para não se atrasar, a estrada provavelmente estará péssima – continuou ela mantendo o sorriso – Vá com cuidado. E, por favor, avise-me quando chegar para que eu saiba que já está em casa.

– Prometo ligar assim que chegar em casa – respondeu Alicia com um sorriso gentil se inclinando e deixando um beijo leve na testa da menor que fechou os olhos rapidamente durante o ato – Até outro dia, Maia. Cuide-se você também e não hesite em me chamar se precisar de algo.

– Não o farei – respondeu a menor com um sorriso sentindo o antebraço da veterinária escorregar por sua palma até que ela se afastou completamente, seus dedos foram as últimas coisas a se tocarem antes de Alicia se virar e descer a escada.

Ela viu a veterinária lhe sorrir no final dos degraus, entrar no carro e sair em velocidade baixa. Só então soltou um suspiro longo já sabendo que sentiria falta da presença da mais velha. Um flash do momento ocorrido na madrugada percorreu sua mente e Maia sentiu seu rosto esquentar. Franziu o cenho e esfregou uma mão no rosto antes de deixar seus dedos sobre os lábios. Virou-se e entrou em casa indo direto para seu quarto. Tinha coisas nas quais pensar. Coisas que tinham nome, sobrenome e uma das profissões mais lindas que ela conhecia.

 

 

N/A: 

Espero que gostem desse capítulo e tenham paciência comigo porque as coisas vão começar a acontecer um tanto mais tápidas agora. 

Já deixo um aviso (spoiler) de que no cap 45 Maia vai ter uma pequena ajuda para entender e aceitar seus sentimentos.

Amanhã eu volto com alguns avisos também. 

Bjs pessoinhas 

;] 



Notas:



O que achou deste história?

6 Respostas para Capítulo 44

  1. Beijo roubado! :0 maia se aproveitou da Alicia! kkk Adorei! Bem acho que ela ja esta começando a Vê o o sentimento dela vai além de amizade por Alicia!
    Agora so falta Alicia enxergar isso também!
    Adorando cada capitulo!
    beijos
    Fica na Paz
    Mascoty

    • SIM! KKKKKK Garanto que por essa ninguém esperava hehe
      Alicia vai ser difícil, se não jogar na cara dela acho que a veterinária não iria acreditar nunca que Maia sente algo mais que amizade por ela kkkkkkkkk

      Bjs
      ;]

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